Drones, satélites, acordos secretos: como é que a Ucrânia sabe que a Rússia está mesmo a retirar-se de Kherson?
Numa transmissão altamente coreografada, a Rússia anunciou publicamente que ia abandonar Kherson, uma das quatro regiões anexadas por Vladimir Putin. Mas a Ucrânia não acredita nas palavras de Moscovo e insiste que a reconquista do território será cautelosa. De agentes secretos a drones comerciais, Kiev conta com alguns truques na sua manga.
Um deles já era uma tendência antes de a Rússia invadir a Ucrânia, mas a sua utilização aumentou com o início do conflito: a utilização de satélites comerciais de vigilância para obter informação e traduzi-la em ações concretas no campo de batalha.
Ainda antes da invasão, quando Vladimir Putin dizia em público ter dado ordem para acabar com os exercícios militares na fronteira com a Ucrânia, todas as provas capturadas pelos satélites diziam o contrário. Não só os números não diminuíam, como aumentavam. E, aqui, a situação não é diferente.
“As tropas russas que estavam localizadas na margem direita do rio Dniepre, na região de Kherson, estão a retirar-se já há vários dias. Foi verificado pela Ucrânia por via satélite. Praticamente todas as peças de artilharia e obuses já estão do outro lado do rio”, explica o major-general Isidro Morais Pereira.
Imagens de satélite analisadas pelo jornalista Benjamin Pittet pintam bem essa realidade que podia escapar a olho nu. Dias antes do anúncio da retirada russa, começaram a surgir imagens de satélite que mostram o outro lado da margem do rio Dniepre que denunciavam a construção de trincheiras e outras estruturas defensivas. Era uma prova de que os russos esperavam ter de defender território bem atrás das regiões que ocupavam.
Além disso, várias publicações feitas por militares russos nas redes sociais demonstravam a presença de bunkers pré-fabricados russos que formavam uma complexa rede de estruturas defensivas nos canais pantanosos da margem direita do rio. As fotografias captadas por satélite mostravam mesmo a presença de trincheiras junto ao mar negro, algo que os especialistas apontam que só faz sentido se os russos esperarem uma invasão naval. Tal significaria a admissão da perda do controlo marítimo da região.
Se estas imagens permitem deduzir que os russos estavam a organizar uma retirada antecipadamente, então, o cenário não é risonho para o exército da Rússia, uma vez que esta terça-feira começaram a aparecer imagens de dezenas de trincheiras a serem construídas no norte da Crimeia.
Drones e agentes infiltrados
Mas mesmo que os satélites demonstrem as intenções russas na retaguarda, é preciso ter capacidade para observar em tempo real e com alta definição as movimentações no terreno. Para isso, a Ucrânia utiliza aquela que tem sido uma das suas principais armas desde o dia 24 de fevereiro: os drones.
Existem dezenas de tipos de drones, que variam em tamanho, preço e capacidades. Uns são capazes de transportar mísseis, voar longas distâncias, captar imagens a dezenas de quilómetros de distância e outros até são utilizados como mísseis de precisão, ganhando com isso a alcunha de drones kamikaze. Mas o foco da Ucrânia é nos drones comerciais mais pequenos e que, por isso, são mais difíceis de detetar pelo inimigo.
Estes equipamentos pertencem à unidade “Aerorozvidka” – que faz o reconhecimento aéreo do terreno – e utiliza civis e militares treinados para encontrar todo o tipo de ameaças que a infantaria ucraniana possa encontrar no seu caminho. Estas unidades são absolutamente fundamentais nos dias que correm, evitando que o soldado que está a reconquistar terreno seja alvo de armadilhas.
Mas, no que toca a “colocar olhos no terreno”, os ucranianos têm ainda mais uma ajuda. “A Ucrânia pode utilizar dois tipos de meios de observação: os drones, e, naturalmente, os simpatizantes em Kherson, que atuam como agentes infiltrados. Pode também lançar operações especiais para verificar se, de facto, as tropas russas já estão do outro lado”, recorda Isidro Morais Pereira.
O papel dos civis que permanecem em território ocupado pela Rússia e fornecem informação à Ucrânia não pode ser desvalorizado. O próprio presidente ucraniano já veio a público agradecer as informações dadas por civis russos a algumas por algumas destas pessoas. “O nosso reconhecimento agradece esta informação e está a fazer o máximo uso dela", disse Volodymyr Zelensky num dos seus famosos discursos noturnos.
São precisamente esses informadores que fizeram saber que existem soldados russos a tentar fazerem-se passar por civis. “Kherson foi completamente pilhada. Desde hotéis a museus, os russos levaram tudo o que puderam. A cidade está completamente armadilhada e minada, a retoma de Kherson vai demorar algum tempo. Depende do número de tropas envolvidas, mas poderemos estar a falar de meses”, destacou o especialista.
Uma intervenção americana?
Ao contrário da contraofensiva ucraniana em Kharkiv, onde os soldados russos passaram um mau bocado enquanto retiravam debaixo de intenso fogo de artilharia ucraniana, o mesmo não parece estar a acontecer em Kherson. A retirada parece estar a decorrer de forma ordenada e pré-planeada. Para o major-general Agostinho Costa, isso pode significar a existência de um acordo entre a Rússia e os Estados Unidos da América.
“O presidente Biden teve um discurso límpido após as eleições intercalares e claro, que, pela primeira-vez fala em negociações. O cenário mais provável é que exista uma negociação de bastidores entre os americanos e os russos baseada em quatro pontos”, refere Agostinho Costa.
Esse acordo, acredita o perito em assuntos militares, passa em primeiro lugar pela retirada russa estruturada da região de Kherson. Depois, pelo restabelecimento da rede energética da central nuclear de Energodar e da ligação desta à rede ucraniana, bem como a entrega de 50 mil milhões de dólares americanos para a reconstrução da Ucrânia.
Este acordo permitiria aos russos retirar do território de Kherson sem a pressão dos ataques ucranianos e transferir estes soldados que a Rússia não se podia dar ao luxo de perder para outras frentes de combate mais vantajosas.
Os Estados Unidos detetaram esta quinta-feira alguns sinais de que as forças russas estão a planear a retirada da cidade de Kherson, já depois de isso mesmo ter sido anunciado pelo Ministério da Defesa da Rússia. O conselheiro nacional de segurança da Casa Branca, Jake Sullivan, referiu que a retirada não significa o fim da guerra, garantindo ainda que os Estados Unidos não estão a pressionar a Ucrânia para entrar em negociações com a Rússia.
“O discurso de Surovikin e de Shoigu não convenceu. Por isso, em troca a Rússia recebe aquilo que mais quer, que é o congelamento da frente de batalha. Permitindo manter as regiões conquistadas até agora no conflito”, conclui Agostinho Costa.
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