Macroscópio – Regresso à “lista VIP” (e também a Herberto Helder)
Macroscópio – Regresso à “lista VIP” (e também a Herberto Helder)
Portugal é Portugal e os Estados Unidos são os Estados Unidos. Mas sabia que nos Estados Unidos todos os anos são abertos cerca de quinhentos inquéritos a funcionários da administração fiscal por acesso não autorizado aos ficheiros dos contribuintes? E que, em 2008, um funcionário que tinha acedido às declarações de mais de duzentos actores e desportistas foi condenado a três anos prisão com pena suspensa? Pois é. Eu também não sabia, descobri-o ao ler hoje João Taborda da Gama no Diário de Notícias, num texto com um título relativamente críptico: 2 128 419,00 euros.
Para o colunista do DN, e professor de Direito na Universidade Católica, há uma razão para esse título: é quanto ganhou em 2005 Umberto Eco. Isto porque, nesse ano, “o tonto do Prodi em 2008 [pôs] na internet 38 milhões de declarações de IRS”. Estiveram lá por pouco tempo, mas ainda há por aí cópias a circular. O suficiente para que o autor se sirva do caso como pretexto para tentar colocar algum bom senso numa discussão onde este não tem abundado. Recomendo a leitura de todo o texto, mas deixo-vos mais este aperitivo, até porque ele contém mais informação:
Se tiver tempo, desculpe maçá-lo com isto, mas sei que gosta deste tipo de coisas, se tiver tempo, dizia, veja as regras UNAX (unauthorized access to taxpayer data) em vigor desde 1997 e a "Publication 1075" do fisco norte-americano, de outubro passado. Estas são 160 páginas sobre a segurança da informação fiscal dos contribuintes. Nos EUA é um assunto sério, como sabe2C já levou a muitos despedimentos e condenações, e ainda por cima com o escândalo de 2013 em que se suspeita que o fisco perseguiu deliberadamente organizações e empresas ligadas aos setores mais conservadores. Mas nesse documento, precisamente, sugerem a criação de uma "Do Not Acess List" em que um conjunto de pessoas, capazes de despertar maior curiosidade, tenham uma maior proteção. Mas em Portugal a coisa foi logo boicotada, porque, naturalmente, não estamos na América...
Por isso repito: Portugal é Portugal, e em Portugal há regras políticas e mediáticas que, por vezes, assustam. Tanto que Francisco Assis decidiu escrever, no Público de hoje, sobre a A coragem de desagra dar. O seu ponto de partida é de novo este caso porque entendeu que “Um acontecimento aparentemente banal pode ter o condão de revelar o verdadeiro estado de saúde mental e moral de um a sociedade”. Isto por causa de um mal, “o terror mediático reinante”, um diagnóstico que recupera de um texto já citado no Macroscópio, o de Miguel Sousa Tavares no último Expresso. Para Assis, há entre nós “escasso amor pela liberdade, doentia tendência para a confusão entre o valor primacial da igualdade e a sua forma degenerada que constitui o igualitarismo, vertiginosa atracção por um discurso moralista de baixíssima qualificação ética”. Isso levou o Governo a andar à deriva, “numa permanente hesitação e num passa-culpas impróprios de quem tem a obrigação de assumir em toda a plenitude a responsabilidade pelos actos da administração que tutela”, ao mesmo tempo que “As oposições, num coro beat&iacu te;fico e desproporcionado, lançaram-se em absurdas invocações de um supostamente ofendido princípio da igualdade que em nada abona a favor do seu sentido de responsabilidade institucional.” O seu veredito sobre a generalidade dos comentadores não é mais meigo: preocupam-se mais em “atender àquilo que julgam ser os preconceitos das suas audiências do que em obedecer aos imperativos das suas consciências”.
Mas se comecei por destacar estes dois textos, devo sublinhar que não foram os únicos a distanciarem-se do registo de uma polémica que, induzida por um sindicato, acabou afinal por colocar em segundo plano o que nos devia preocupar: a ausência de respeito pelo mais elementar sigilo fiscal. Hoje, por exemplo, soubemos que o Processo fiscal de Passos teve 106 acessos indevidos em menos de um ano e que a maior parte dos funcionários alegou “curiosidade” para o fazer, um voyeurismo (no mínimo) que pareceu não incomodar ninguém. Talvez por isso, durante todo o dia de hoje, a auditoria de que resultou essa constatação foi praticamente ignorada nos noticiários, que preferiram sempre privilegiar a informação – de origem sindical – de que apenasPassos, Portas, Cavaco e Núncio na Lista VIP.
O que não quer dizer que exista uma unanimidade mediática. O jornalista Bruno Faria Lopes, no Diário Económico, em Lista VIP é um mau nome para uma medida razoável, defende aí o seguinte:
Se considerarmos que a informação fiscal é um bem sensível e valioso para qualquer cidadão - porque, além de poder revelar infrações e afins, pode conter um grande manancial de dados sobre o padrão de consumo, a saúde, etc. - então concordamos que cai num campo cujo acesso deve ser controlado. Se considerarmos que há diferenças entre um titular de cargo público e um cidadão anónimo então concordamos que deve ser criado um nível qualquer de escrutínio do acesso. A admissão por parte de dirigentes do Fisco de que não se consegue prevenir acessos indevidos para a generalidade dos cidadãos - uma das ilações que podemos tirar deste caso - é precisamen te uma razão para criar um filtro para os titulares de cargos públicos (a par do dever de melhorar o controlo para todos os contribuintes).
Mas deixemos agora este tema para passarmos a Herberto Helder, já que é dever do Macroscópio chamar a atenção para três textos em especial, dois do Observador e um do Público:
- Começando precisamente pelo Público, a minha referência vai para Miguel Esteves Cardoso e o seu belíssimo Morreu alguém: “A beleza e o poder, a mentira, a invocação, a propaganda da poesia, a abertura da cabeça para o corpo: todas estas magias só eram humanas nele. Para ele apenas faziam parte da prática de viver. Para ele - apetece-me exagerar, como ele exagerará sempre - eram apenas pela poesia.”
- Sigo para o Observador e para Rui Ramos e o seu sensívelAprender a ler com Herberto Helder: “O resultado de todas estas tentativas de compreender a poesia foi uma certa maneira de fazer poesia, de modo que toda a poesia portuguesa de hoje, com duas ou três excepções (uma delas, para ter nome, é Adília Lopes), parece escrita pelo mesmo autor: escrever poesia é escrever à maneira de um poeta. Herberto Helder não é isso. A prova é a bilha de gás. Há aqui uma desenvoltura a que nenh um poeta de doutoramento se atreveria.”
- Ainda no Observador, termino com Paulo Tunhas e o seu emocionado Herberto Helder, o poeta: “a poesia de Herberto Helder, sendo grande poesia, nada deixa intacto. Desorganiza, porque o caos é necessário para a criação, e a partir dessa desorganização surge um organismo composto por sentidos transformados e como que magicamente coerentes entre si, onde, no entanto, se encontra sempre, presente e não recalcado, o caos inicial, espécie de advertência da vida. A grande poesia não se pode dar ao luxo da gentileza, e a poesia de Herberto Helder é tudo menos uma poesia da gentileza, exceptuando aquela gentileza feroz que olha de frente a vida do enigma e procura – e co nsegue – dar forma a um espanto informe.”
Antes de terminar sinto-me obrigado a passar por mais três textos de hoje, até porque são textos de autores que suscitam amores e ódios (e sabemos como os ódios, em Portugal, são por regra mais intensos).
O primeiro é uma paródia de João César das Neves em torno do tema de hiper-regulação das nossas vidas, empresas, até hábitos vulgares. Chama-se A lei dos pobres e dele vos deixo a seguinte passagem: “Imagine que alguém ousa vender produtos alimentares. Nada mais perigoso, nocivo e prejudicial do que esse terrível desplante. Ter um restaurante ou café é hoje um descaramento mais severamente vigiado, regu lado e castigado do que a maior parte dos ladrões ou meliantes. Se os comerciantes são perseguidos, os produtores ainda serão tolerados, desde que não se atrevam a vender fruta, legumes, lacticínios e outros produtos perigosos sem as devidas cautelas. Se não se sujeitarem a inúmeras regras, processos, custos e licenças, tais substâncias só servem para consumo próprio ou ofertas a amigos. É mais complicado vender pão do que pornografia ou armas de fogo.”
O segundo é o delicioso (e fundamentado) texto com que João Miguel Tavares, no Público, desfaz a forma como José Lello reagiu ao anúncio da candidatura presidencial de Henrique Neto. Aqui fica um pouco de O irmão Lello:
“José Lello foi consultor da Capgemini entre Setembro de 2006 e Novembro de 2012 e administrador da DST entre Janeiro de 2007 e Fevereiro de 2012. O Governo Sócrates caiu em Junho de 2011, e com ele parecem ter caído também — curiosa coincidência — as notáveis capacidades administrativas de José Lello, um homem cujo talento insiste em manifestar-se apenas na órbita do Estado socialista. E é este pobre Lello que vem agora chamar Beppe Grillo a Henrique Neto, que enriqueceu no privado, tomou posições corajosas e tem um pensamento estruturado sobre o país. Caro porteiro Lello: não dá para gerir a clientela com a boca fechada?”
O terceiro é de Camilo Azevedo e, contra a conrrente, ele trata de explicar no Jornal de Negócios – não só à opos ição, mas também ao Governo, o sentido de “ter os cofres cheios”. O título já diz muito - Os cofres estão cheios… de dívida! – mas a argumentação vai mais longe:
A ministra das Finanças quis assinalar a diferença entre 2015 (todo o mundo nos empresta dinheiro) e 2011 (ninguém se chegava à frente). Mas cometeu um deslize: não realçou que os cofres estão cheios... de dinheiro alheio. Que tem de ser devolvido. Com isso estimulou a oposição a explorar a questão num registo vergonhosamente eleitoralista. Com argumentos idiotas como: "O país tem os cofres cheios, mas as pessoas continuam desempregadas". Quem o fez (Costa, Galamba...) sabe perfeitamente que cofres cheios de dívida não resolvem o problema do desemprego.
Por aqui me ficaria por hoje, desta vez com um Macroscópio excclusivamente em português, mas não posso deixar de vos chamar a atenção para mais um Conversas à Quinta, com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, que hoje foi dedicado a um centenário que se assinalava precisamente hoje: o da revista “Opheu”. Como sempre, a sua conversa - Porque foi tão importante a revista “Orpheu”? - é uma delícia e uma fonte de saber. Também, se preferir, pode ouvir o Podcas t do programaaqui. (E, claro, ler o muito completo Especial da Rita Cipriano,"Orpheu acabou. Orpheu continua").
Boa noite, boas leituras e até amanhã.
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ANTÓNIO FONSECA