No momento em que escrevo mais este Macroscópio há poucas certezas. Ou,
para ser mais exacto, só sabemos o que não está a acontecer. E o que não
está acontecer é qualquer negociação entre a coligação e o PS, porque
se confrontam duas vontades muito distintas: de um lado a da PàF, que
fez a única real tentativa de aproximação a um programa de compromisso;
do outro lado, a de António Costa que desde o primeiro minuto deu total
prioridade às negociações à sua esquerda e nem sequer simulou qualquer
tentativa de compromisso com a coligação. Sobre o que se está realmente a
passar à esquerda as informações são contraditórias e o terreno
escorregadio. E instável. Por fim também não sabemos o que fará
exactamente o Presidente da República, apesar de muitas tentativas de
adivinhação. Não surpreende por isso que aquilo que se discute nos
espaços de opinião continue a ser o cenário de um governo de “maioria de
esquerda”, mesmo que não se saiba que forma, programa ou prazo de
validade ele possa vir a ter. Sinto-me por isso obrigado a voltar a este
tema, recuperando o que de mais relevante se escreveu nos últimos dias.
Vou começar por uma discussão com o seu lado de adivinhação: saber o que
queriam realmente os eleitores quando votaram da forma que votaram a 4
de Outubro. Vou usar como ponto de partida um post de Pedro Magalhães no
Margens de Erro, O que os eleitores “querem”,
pois ele ajuda a perceber como é difícil identificar o que querem
realmente os eleitores – e como aquilo que preferem pode não coincidir
com a imagens e os programas dos partidos onde votam. Pedro Magalhães
recorre para isso a um estudo pós-eleitoral de 2011
em que se inquiriram os eleitores sobre vários temas e se verifica, por
exemplo, que na maioria dos temas há pouca diferença no que desejam
votando à esquerda ou à direita. Isto é, está tudo muito amontoado ao
centro. Mas com algumas surpresas: os eleitores do Bloco “são menos desfavoráveis ao privado na educação”
e os que mais discordavam de uma saída do euro; os do PS os que menos
desejam privatizações; e os do PSD os menos favoráveis ao aborto legal.
Por isso aquele cientista político diz que, numa altura em que “toda
a gente sabe o que os eleitores de cada partido queriam e preferiam
quando votaram, o que significa o voto e que preferências transmitiu”, ele, relativamente a 2015, não sabe.
Admitindo que é este o nosso ponto de partida – mas pode haver outros –
não deixa de ser relativamente atrevido o exercício a Paulo Trigo
Pereira )um dos autores do programa económico do PS) realiza no Público
em E se compreendêssemos a democracia? Nesse texto o economista elabora sobre o “teorema do votante mediano (VM)” para chegar à conclusão que “Quando
quem ganha está num dos extremos da distribuição, o líder desse partido
não é o mais representativo das preferências do VM. Um partido mais
central, mesmo que mais pequeno é mais representativo. Este é
precisamente o caso do PS.” Mesmo assim acaba por reconhecer que “Um acordo à esquerda apenas para programa de governo e OE2016, será claramente insuficiente, porque instável.” Ora este momento nem um compromisso desse tipo sabemos se é possível.
Mais prudente é, pelo menos neste esforço de adivinhar o que cada
eleitor realmente queria quando foi votar (sobretudo quando algumas das
alternativas que agora estão a ser discutidas, como a de um governo de
“maioria de esquerda”, não estavam claramente sobre a mesa), foi Paulo
Ferreira no Observador em O que há num voto? Água (quase tudo) e cloreto de sódio.
Depois de enumerar as múltiplas, e interesseiras, interpretações que
têm sido feitas a propósito do sentido profundo de voto dos eleitores,
Paulo Ferreira acaba por sugerir que, mais modestamente e “na
dúvida, o melhor é ler nos resultados o que eles reflectem sem margem
para ambiguidades: houve uns partidos mais votados do que outros. Não
sabemos muito bem porquê, mas esses dados são objectivos. Ir além disto,
para um lado ou para o outro, é tentar torturar os dados até eles
dizerem o que queremos.”
Naturalmente que este debate não surgiu por acaso: apareceu na sequência
da discussão sobre a legitimidade de um partido que perdeu claramente
as eleições – o PS, nisso todos convergem – querer mesmo assim formar
governo. É um cenário que Gonçalo Almeida Ribeiro não considera
inconstitucional, mas ataca como ilegítimo. Eis como argumenta em Fiat Costa et Pereat Mundus, publicado no Observador: “[existe]
uma prática reiterada no nosso regime segundo a qual cabe ao líder do
partido mais votado, ainda que sem maioria absoluta no Parlamento,
liderar o executivo. É assim porque entre PS e PSD sempre houve um
entendimento tácito no sentido da não rejeição do programa de Governo
apresentado pelo partido com maior número de mandatos e abertura para
negociar os compromissos necessários à aprovação do Orçamento do Estado.
Esta prática é uma parte integrante do regime tal como os cidadãos o
concebem, e não pode deixar de se reflectir na sua concepção do que seja
um governo legítimo.”
Em sentido completamente diverso pronunciou-se, também no Observador, Pedro Coelho dos Santos, um líder concelhio do PS, em A apoplexia nervosa da Direita portuguesa. Para ele, e para “uma
solução governativa estável e duradoura, os partidos da esquerda
parlamentar são os únicos com possibilidade de a oferecer no atual
quadro parlamentar”.
Poderia citar mais textos de vários autores a contestar essa ideia, mas
antes de passar ao tema da viabilidade (e estabilidade) de um governo
minoritário do PS com apoio nos partidos à sua esquerda, tenho ainda de
citar Sérgio Figueiredo que, no Diário de Notícias, em A porta dos fundos, manifesta a sua total discordância com tal forma de tentar chegar ao poder: “Costa
perdeu o país e insiste na carga de ombro. À segunda já não há dúvidas:
o "chega para lá" é o método Costa para lá chegar. Independentemente de
tudo o resto, isto não é aceitável. Costa quer entrar pela porta dos
fundos, sim. E não há uma forma delicada de classificar aquilo a que
estamos a assistir.”
Passemos então agora à viabilidade de um casamento entre o PS, o Bloco e
o PCP assente na premissa de que os eleitores “votaram contra a
austeridade”. Digamos que é um cenário visto com muito cepticismo um
pouco por todo o lado:
- Cinco (grandes) obstáculos ao governo das esquerdas, de Bruno Faria Lopes, no Diário Económico: “1. A esquerda dura não está preparada para o pragmatismo nórdico; 2. O ciclo económico não é para esta esquerda dura; 3. PCP e Bloco não se responsabilizariam pela governação; 4. António Costa tenta uma ruptura numa posição frágil; e 5. O Presidente da República não serve só para pôr o carimbo.”
- Os impassíveis não fazem puzzles, de Helena Matos, no Observador: “É
dos livros: primeiro o PCP e o BE deixaram António Costa anunciar o
melhor dos mundos nas negociações que tinham encetado. A partir daí caso
não exista acordo, tudo será um recuo, uma traição, um desfazer do
sonho. De Costa, claro. Porque eles continuarão na sua terra da utopia.
(...) Esta nossa crise é uma espécie de crónica antecipada da destruição
do centro-esquerda pelos radicais. Ou se quisermos, vivemos o problema
de o PS ter à frente um homem que gosta de puzzles e olha para a
política como se estivesse a construir mais um puzzle enquanto negoceia
com gente que joga xadrez.” - O regresso do Prior do Crato, de Viriato Soromenho Marques, no Diário de Notícias: “Portugal
está exangue, mas pode ainda ficar pior, como o exemplo grego o mostra
num outro registo, se trocarmos a verdade dos factos pela ambição menor
de quem parece não ser capaz de aceitar uma derrota. (…) Infelizmente, a
poeira no caminho para São Bento está a ser levantada por um bizarro
tropel de órfãos do assalto ao Palácio de Inverno, comandados por um
avatar do António Prior do Crato. Portugal precisa de tudo, menos de ser
humilhado outra vez, como o foi pelo duque de Alba na Batalha de
Alcântara, em 1580.” - “PS arrisca-se a ficar refém do BE e da CDU”, entrevista com Marina Costa Lobo no Expresso (para assinantes): “Se
António Costa rejeitar um governo minoritário do PàF, estará criado um
precedente para a não-cooperação no futuro, ficando o PS refém, em
futuros governos, de acordos com a CDU e o BE. Isso só faria sentido se
houvesse grande diferença ideológica nos temas centrais, que são os
económicos, entre o PS e o PSD, e uma grande proximidade do PS à CDU e
ao BE. Que simplesmente não existe.” - Propostas irrecusáveis, de Pedro Santos Guerreiro, no Expresso (para assinantes): “Um
governo do PS apoiado pelo PCP e pelo BE tem cabeça tronco e membros,
mas a cabeça não manda no tronco e os pés darão pontapés no cachaço. Uma
mão só consegue agarrar um punhado de areia se ela estiver molhada, ou
ela esvai-se entre os dedos. Não há água entre os três partidos, só
areia. Não há posição sobre a Europa, sobre a economia, sobre o mundo
que coincida. O que a oposição pode unir o poder desunirá e, nessa
desunião, perde a mão que ousou agarrar areia. O primeiro perdedor seria
o PS.”
Podia continuar com mais alguns exemplos (O muro não caiu, de Alexandre Homem Cristo no Observador, Manual de ética política,
de Henrique Monteiro, no Expresso), mas este Macroscópio já vai longo e
há ainda dois textos noutro registo que vos quero referir.
O primeiro é de Rui Ramos, aqui no Observador: Porque é que eles não se preocupam.
Ao interrogar-se sobre o porquê de o cenário de um governo de “maioria
de esquerda” não estar a preocupar muitos daqueles que habitualmente
tratamos como integrando "as nossas elites", ele encontra para isso uma
razão: “A oligarquia do regime julga que Bruxelas lhe garante tudo, e
que portanto não há perigo em jogar sem regras e em experimentar todos
os golpes. É o efeito perverso da integração europeia: em vez de ser
concebida como um factor de exigência, continua a ser encarada pelos
nossos oligarcas como uma autorização de desleixo e complacência.”
O segundo é de João Carlos Espada e saiu no Público: “Centro Vital”, alicerce das democracias.
É um texto onde se recorda como as democracias foram destruídas na
Europa continental no período entre as duas grandes guerras e se compara
essa evolução com a capacidade que as democracias de língua inglesa
(Reino Unido, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e EUA) tiveram para
resistir à erosão dos seus partidos centrais e democráticos. Na sua
interpretação essa capacidade de resistência derivou em grande parte de
esses partidos “nunca [terem deixado] de denunciar a natureza
autoritária e anti-democrática do comunismo ou do fascismo. Nunca
aceitaram a “normalização” ou “banalização” dessas ideologias
revolucionárias. Por outras palavras, nunca houve “frentes populares”
(ou “maiorias de esquerda”), nem “frentes nacionalistas” nas democracias
de língua inglesa — e estas nunca caíram.”
(O paralelo com o que hoje se passa em Portugal é evidente, mas sem
entrar em qualquer paralelo desse tipo, antes limitando-se a explicar a
forma de actuação dos comunistas, Jaime Gama deu no último Conversas à
Quinta, em que se falou muito dos sobressaltos do nosso PREC de há 40 anos (aqui em podcast), uma saborosa lição política com bons motivos de reflexão. Recuperamo-la por isso em peça autónoma, intitulada Manual da tática do PCP explicada por Jaime Gama)
Com a esperança de vos ter sugerido leituras interessantes, e com a
angústia de perceber que o processo de formação do próximo governo se
pode prolongar por muitas semanas, talvez um mês e meio, despeço-me por hoje.
Bom descanço e boas leituras.
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