Serenamente enérgica, loucamente tranquila. Cambridge é dona de si e senhora de quem a quer. Em boa verdade, ninguém lhe é indiferente.
Contas feitas, já lá vão quatro as vezes que a visitei. Umas mais longas que outras. Todas elas igualmente diferentes.
A primeira, lembro-me de ter ido com ela à procura de trabalho. Ficámos hospedados algures, com a estação de comboios a jeito. No quarto só cabia a cama, e não era nada mau. Tinha sido o mais barato que havíamos conseguido, bem mais caro que uma dormida em Londres com pequeno-almoço à inglesa. Cambridge fez-se assim cumprir. Uma cidade em ponto de aldeia, com vícios urbanos e predicados burgueses.
Era Novembro. Desbravar a cidade a pé dimanava numa peleja que quisemos alinhar. Os casacos encrespados pelo frio tornaram-se verdadeiros aliados. Em frente de guerra lá ia, arrastando-a pela mão. Ela, passos atrás, tentava memorizar tudo aquilo que era para saber. Eu, despretensioso, tinha por sabido que o trabalho era dela. E foi.
Descemos toda a Hills Road que, embrenhada no ritmo frenético que a acompanha, vem desembocar à Lensfield Road, a sudeste de Cambridge. Aí, num cruzamento desordenado, impera uma sincronia quase perfeita dos semáforos que o acompanham - não fossem eles tão demorados - e, mesmo com um olho no burro e outro no cigano, percebemos que em Cambridge existem mais bicicletas do que "Marias" na Terra. É honrada a sua força na cidade muito mais que a honradez. São elas o movimento das ruas, a vida dos becos que lhes servem de abrigo e, até mesmo, o regalo aos olhos de quem não tem mais nada para ver passar. São a singularidade de um sítio por si só singular. A força da fraqueza de um sítio suficientemente forte.
Hills Road
Ali, à esquerda, no recato que lhe é pedido, ergue-se uma das maiores igrejas católicas do Reino Unido, a Our Lady and the English Martyrs Church. Do século XIX herdou o revivalismo gótico e, doutros tempos, passou a ostentar um relógio de esquina que vai marcando as horas numa cidade onde o tempo não conta, mas importa.
Our Lady and the English Martyrs Church
Seguimos caminho pela Lensfield Road. O The Polar Museum não passou despercebido - a estátua dos jardins da frontaria não deixara que tal acontecesse. A exploração das regiões polares e a sua importância para o futuro da humanidade, os diários dos exploradores, os pinguins, os ursos e os meios de sobrevivência nos extremos da Terra poderiam ter sido temas sugestivos de uma visita em tudo proveitosa, contudo a figuração, à porta do museu, de um homem nu, de braços abertos, a olhar para o céu foi sobejamente intimidante para não termos entrado. Ou talvez não.
The Polar Museum, Lensfield Road
O Fitzwilliam Museum estava na mira desde à muito. Apressámos o passo e chegámos à Trumpington Street, lugar que o viu aclamado, pela Britain's Best Museums and Galleries, como uma das casas detentoras de um dos maiores tesouros da Grã-Bretanha. Fundado em 1816, o museu alberga quase meio milhão de objectos, numa esfera abrangente que vai desde túmulos egípcios a obras-primas do Impressionismo; de manuscritos a esculturas renascentistas; de moedas raras às artes asiáticas. Monet, Degas, Renoir, Cézanne e Picasso são apenas cinco dos muitos que pintam esta casa. O hall de entrada, da autoria de Edward Middleton Barry, é simplesmente arrebatador, na forma como se exibe e na forma como nos confronta. E é nele que uma velhota emperiquitada, sentada, lá ao fundo, numa secretária reduzida à sua pequenez, murmura: "A admissão é grátis!".
The Fitzwilliam Museum, Trumpington Street
Cripta do hall de entrada do Fitzwilliam Museum, da autoria de Edward Middleton Barry
Confesso que perdi - ou melhor, ganhei - 30 minutos na visita. Muito graças a ela. Ela é mais copos - e esses não são de graça.
Agradecida, assentámos arraiais na King's Parade, contemplando tudo aquilo que havia para ser visto. Longe fica a imagem de uma Cambridge deprimida e pantanosa, às margens do Rio Cam. O porto fluvial que na Idade Média acolhia embarcações de pequeno calado deu lugar, em pleno século XIII, a um dos mais prestigiados centros universitários do mundo.
À nossa frente, o King's College revela-se como a concretização, à época, de uma sede efervescente pelo conhecimento. A excentricidade que se arrasta desde a sua fundação, em meados do século XV, veio torná-lo um dos edifícios mais emblemáticos da cidade - como se a qualidade de ensino estivesse directamente relacionada com a ostentação em cada talhada na pedra que o ornamenta. Sem embargo, não deixando o certo pelo duvidoso, o King's College é considerado um dos maiores exemplos da arquitectura gótica inglesa arcando, desde à muito, uma capela com a maior abóbada em leque do mundo. E se quem vive só de esperanças, de desenganos morre, os últimos nem sempre são os primeiros - o Peterhouse College, esse sim, enraizado desde 1284, moldou todos os outros que se seguiram.
King's College visto da King's Parade
Num total de 31 colleges para homens e 2 para mulheres, muitos deles perfilados ao longo do rio, numa dualidade que finta densa vegetação e relvados infindáveis, Cambridge viu Erasmo ensinar teologia no Christ College e Sir Isaac Newton pelos bancos de sala de aula do Trinity College. Muitos deles abrem as portas ao público, a troco de alguns trocos. E, trocando por miúdos, as restrições de acesso são mais que muitas, durante a maior parte do ano. Eu, trocado, insisto em querer visitá-los. Ela, decidida, arrasta-me para as lojas ali ao pé, na iminência de ver perdidas as entradas do jantar - porque não há mal tão lastimeiro como não ter dinheiro. Enfatuado, sigo rua acima em direcção ao que quer que seja. A praça do mercado desvenda-se ao final da St Mary's Passage, uma cortada à direita daKing's Parade. Nele poderia ter regalado a vista e confortado as entranhas. Mas não. Brincos, anéis e pulseiras, isso é que era bom. Enfim, ao fim de quatro voltas ao bilhar, restaram umas libras para um pão de azeitonas mirradas - posso dizer que fui feliz.
Banca de pão na Market Square
Na volta, junto à Great St Mary's Church, um inglês novato - que sabia-a toda -, de cartaz ao alto, mete conversa com ela. Eu, desconfiado, amorfanhava as migalhas que tinham sobrado. Ele falava. Ela dava-lhe trela. Eu, rédea curta. Ele pede-lhe para fazer punting. Ela diz que sim. Eu ia-me engasgando. Ele diz-lhe que é um passeio de barco pelo rio. Ela diz-me que é como as gôndolas de Veneza. Eu disse-lhe pode ser. Ele do dinheiro não fez batalha. Ela, de braço longo, arrotou o que tinha a arrotar. Eu enfastiado pensava: "acabamos de perder as sobremesas do jantar".
Palavra pronunciada, flecha lançada - como quem diz, embarcação ao rio. Oportunidade tudo menos perdida. O marujo, pupilo de um college qualquer, contrabalançava o batel, frágil de tanta força, à medida que narrava as histórias da história de cada ponte passada e universidade perdida. A bordo contavam-se dez viandantes a segredarem entre si segredos desvendados. A panorâmica do rio sobre a cidade é absolutamente soberba - como que nos tivessem aberto a porta da cave para vermos desfiados testemunhos da verdade de um tempo que ainda é o nosso.
Punting ao longo do rio Cam
O King's College não tem senão a profundidade da sua pele. É, no entanto, o que mais se impõe e o que mais demora a passar.
King's College visto do rio Cam
A Mathematical Bridge, elo de ligação entre as duas partes que compõem o Queen's College, revela-se mais tarde no percurso. O passadiço de madeira projectado por William Etheridge e construído por James Essex em 1749 viu-se sujeito a pequenos reparos em duas ocasiões, em 1866 e em 1905 - todavia, a sua concepção global acabou por ser mantida. Embora pareça ser um arco, a ponte, estruturalmente, é composta por madeira em linha recta - um projecto de engenharia extraordinariamente sofisticado e raiz de lendas igualmente extraordinárias. Confabula-se que esta terá sido projectada e construída por Sir Isaac Newton sem recurso a quaisquer tipo de parafusos ou porcas e que os estudantes, embrenhados no espírito da coisa, passaram a ser submetidos a um teste: reconstruir a ponte totalmente desmontada. Nada obstante, a história invalida a lenda: Newton morreu em 1727, vinte e dois anos antes da construção da ponte, e o tamanho e o peso dos pedaços de madeira tornava inviável a sua reconstrução "à mão". Ironicamente, conservou-se até 1909 a tradição da entrega de um prémio para o aluno que obtivesse as notas mais baixas a Matemática. O prémio consistia numa colher de pau, de 1 metro de comprimento. Ainda hoje existe o registo de todos os vencedores e eu poderia ter sido um ganhador - da colher de pau, claro.
Mathematical Bridge
O Trinity College foi o que se seguiu. É o que embargou mais nomes renomados. O príncipe Carlos de Gales foi um deles. Ingressou em 1967 para estudar antropologia, arqueologia e história e, por questões de segurança, fazia-se acompanhar por um guarda que lhe guardava as costas - e não só. Iam para as aulas juntos, estudavam juntos e o marujo, impulsionado o barco em frente, questiona-se se terão dormido no mesmo quarto e partilhado a mesma casa de banho - talvez. A intimidade era de tal ordem que o guarda, já que tinha de lá estar, decidiu inscrever-se nas mesmas aulas que Carlos. Consta que acabou com notas bem superiores ao príncipe e, por piedade, ou melhor, por tradição, em 2 de Agosto de 1975, o Trinity College premeia Carlos com o grau de Master of Arts.
Para o final, o melhor: Bridge of Sighs, a ponte dos suspiros. Projectada por Henry Hutchinson e construída em 1831, esta ponte coberta de traçados pitorescos atravessa, deliciosamente, o rio Cam entre o Third Court e o New Court do St John's College. Com uma linha arquitectónica romântica, o charme desta ponte vai muito além da delicadeza em detalhes dos vitrais que exibe. Por ficar no meio do campus, unindo os alojamentos estudantis às salas de aula, a ponte tem na pedra marcados os suspiros que antecedem os exames finais - daí o seu nome. Foi lugar cativo da rainha Victoria e cativo é de quem a quer.
St John's College
Bridge of Sighs
E quem tudo abarcou, cedo acabou. Estava na hora de outras marés onde tudo que viesse à rede era peixe.
Charlie Chan, um dos restaurantes mais antigos de Cambridge, foi a escolha acertada para o culminar de um dia em cheio - a nossa paixão pela cozinha asiática levou-nos a tal. O Charlie, como carinhosamente o chamamos, oferece dois lados distintos: uma sala de jantar ao nível do solo, luminosa e arejada, ideal para uma refeição descontraída e, no andar superior, o Blue Lagoon Lounge, com luzes baixas, mesas finamente definidas e uma bar primado pela elegância. Optámos pelo estilo clássico chinês, da forma como deve ser feito. O menu apresentado é de uma selecção estimulante e altamente difícil. Lá nos decidimos. Os alimentos, recém-preparados, eram de uma qualidade indescritível e tornou-se inevitável pedir entradas e sobremesas - mas só uma de cada a partilhar.
Voltámos ao quarto que não era mau. Ela cheia de comida. Eu contente por aturá-la.
Para mim, Cambridge nunca deixará de ser um verdadeiro mistério. É das cidades que fica no passado, onde deve estar, com a certeza, porém, de torná-la presente uma vez mais na minha vida.
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Cambridge x 4 | Percurso
The Polar Museum
Aberto de Terça a Sábado das 10h00 às 16h00 | Aberto nos Feriados às Segundas | Fechado nos Feriados ao Sábado
Fitzwilliam Museum
Aberto de Terça a Sábado das 10h00 às 17h00 | Domingos e Feriados às Segundas das 12h00 às 17h00
Admissão Gratuita
Punting
As marcações podem ser efectuadas nos vários pontos ao longo da cidade, nomeadamente na King's Parade, Silver Street e Magdalene Bridge ou através de chamada telefónica:
- Cambridge Chauffeur Punts: 01223 359 299
- Scudamore's Punting Company: 01223 359 750
- Trinity Punts: 01223 338 483
- The Granta Boat & Punting Company: 01223 301 845
- Let's Go Punt: 01223 651 659
Com uma durabilidade aproximada de 45 minutos, o preçário é variável, podendo ir das £8 às £25, por pessoa (com guia). Existe ainda a possibilidade de aluguer de uma das embarcações para um passeio sem guia - custa, em média, £20 por hora.
The Colleges
- St. Jonh’s College | St John’s Street | Custo de entrada: £3 por pessoa
- Trinity College | Trinity Street | Custo de entrada: £3 por pessoa
- King’s College | King’s Parade | Custo de entrada: £5 por pessoa
Charlie Chan Restaurant