Macroscópio – Será que a Conferência de Paris salvou realmente o mundo?
Foi assim no passado sábado, logo pela manhã: Está fechado o acordo: proposta “equilibrada e ambiciosa” para limitar aumento da temperatura “abaixo dos 2 graus”. Em breve seriam conhecidosos pontos principais para um acordo logo classificado como “histórico”. Os líderes políticos rapidamente vieram elogiar o acordo, de Obama a Cameron, passando pelas autoridades chinesas. Mas a verdade é que enquanto os políticos festejavam,os cientistas dividiam-se sobre o real alcance do que se tinha conseguido em Paris. Vamos então recapitular o que se passou e ver que argumentos estão a ser utilizados, sendo que pode descarregar aqui o texto integral do Acordo.
Francisco Ferreira, professor do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Nova e membro da delegação portuguesa na COP21, fez de imediato um primeiro balanço em artigo escrito para o Observador, Paris valeu a pena?Ele achava que sim: “O texto final de proposta de Acordo de Paris é um marco histórico, pelo menos tão significativo como o Protocolo de Quioto assinado em 1997. (…) Mais do que um Acordo de um momento, trata-se de um processo que agora se inicia, que envolve todos os países dada a sua formulação legal cautelosa, mas vinculativa, e que prevê um aumento de ambição em cada revisão dos compromissos nacionais.”
O Observador fez dois balanços em que se deu voz a especialistas, um logo no sábado e outro no domingo, já com mais tempo para digerir os resultados da Cimeira e onde já se fazia um balanço menos eufórico, escrevendo-se que se estava perante “um marco histórico e uma oportunidade falhada”. Porquê? Precisamente por causa da forma como é, ou não, considerado “vinculativo”. Nesse texto já se escrevia que “as questões mais importantes não são vinculativas”. Pelo menos na opinião de Gil Penha-Lopes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenador do grupo de investigação CCIAM (na sigla em inglês para Climate Change Impacts Adaptation & Modelling), entrevistado pela Vera Novais.
O mesmo ponto de vista foi hoje desenvolvido por Viriato Soromenho Marques no Diário de Notícias, em Depois dos aplausos, onde comenta assim o facto de as metas de redução das emissões não serem vinculativas: “No direito internacional público, as convenções (como é o caso da do clima, de 1992) são como as leis, e os protocolos (como o de Quioto, de 1997) são análogos às portarias: indicam o "como" e o "quanto". No Acordo de Paris tivemos, sem dúvida, uma refundação alargada da Convenção de 1992, mas, em vez de uma nova e vigorosa "portaria"/protocolo, ficámos dependentes da mera boa vontade dos países. Infelizmente, a fé, na política internacional, não costuma ser nem a melhor aposta nem o método mais adequado.”
De facto tudo indica que o futuro do Acordo dependerá muito da forma como forem lidos os compromissos nele contidos, sendo que aparentemente só houve acordo porque em Paris não se previram mecanismos legais capazes de obrigar os países a cumprirem com as suas metas. De facto houve, como se contou no Observador, toda uma técnica de conversa que levou ao sucesso (o New York Times e a Reuters escreveram textos interessantes sobre o que se passou nos últimos anos e descrevendo o método francês para não repetir em Paris 2015 o fracasso de Copenhaga 2009), mas como se conta no Washington Post houve palavras cuja escolha foi tão delicada que quase matavam a possibilidade de um entendimento. Em How one word nearly killed the climate deal conta-se um episódio da negociação que é bem representativo:
The proposed accord was just hours from a final vote when the glitch was spotted. Someone had changed a single word in the draft text — from a “should” to a “shall” — and suddenly the entire climate deal appeared at risk of faltering.
Secretary of State John F. Kerry phoned his old friend, French Foreign Minister Laurent Fabius, in exasperation over a tiny revision that implied huge new legal and financial obligations.
“We cannot do this,” Kerry warned.
Less than four hours later, the accord was approved with the bang of a gavel. A bit of diplomatic finesse had excised the troublesome word and helped clinch a historic agreement.
“Should” ou “shall”, eis como um termo mais imperativo deu lugar a um mais neutro, menos vinculativo, para, neste caso, permitir que os Estados Unidos assinassem. Mas há mais, já que a base do acordo são os planos que cada país tem para reduzir as suas emissões, e há um consenso geral que esses planos ficam muito aquém de poder garantir os objectivos globais. Ou seja, será necessário que cada país vá muito mais longe do que se planeia, como se escreve na The Atlantic, em Is Hope Possible After the Paris Agreement?: “in no way are the emissions reductions that countries have made right now adequate. The carbon dioxide cuts specified at Paris will not keep the planet to 1.5 degrees Celsius of warming; they will not even keep it to two. If these cuts were made and no more, the world would warm about 2.7 degrees by 2100.” Este ponto foi sublinhado pela generalidade das análises pós-conferência.
No Wall Street Journal, por exemplo, escrevia-se que Climate Agreement’s Success Hinges on Countries Making Painful Decisions, sendo que “Supporters hope the deal will unleash an avalanche of investment in renewable energy, new technologies”, algo que está longe de estar garantido: “Much of the success of the deal also lies in implementation years from now, by governments that haven’t yet been elected.”
O New York Times considerou o Acordo A Signal to Industry to Go Green in an Era of Carbon Reduction. Nesse texto descrevem-se as reações de líderes de grandes empresas e a evolução já ocorrida nalgumas indústrias, como a automóvel, notando-se que “the money is flowing. According to a recent Goldman Sachs study, the combined market size of low-carbon technologies like wind and solar power and electric and hybrid vehicles exceeded $600 billion last year, nearly equivalent to the United States defense budget.”
É muito dinheiro, mas também continua a ser investido muito dinheiro nas indústrias tradicionais, nomeadamente nas que dependem do carvão. Isso mesmo notou Christopher Booker no Telegraph, em At the Paris climate summit, panic over global warming finally collided with reality. Eis parte do seu argumento: “In the run-up to Paris, every country was asked to provide its plans for the next 15 years. China, already now responsible for half the world’s “carbon emissions”, said it plans to build so many more coal-fired power stations that by 2030 its CO2 output will double. India, now the world’s third-largest emitter, said its emissions will triple. There are currently plans across the world to build 2,500 more coal plants, because coal is easily the cheapest source of energy.”
Talvez por isso mesmo haja quem, entre os defensores de que se devia ter ido muito mais longe, não esconda o seu desapontamento. É o caso de dois professores de Oxford, Eric Beinhocker, director-executivo do Institute for New Economic Thinking, e Myles Allen, líder do Climate Research Program at the School of Geography and Environment, que num texto para o Project Syndicate, The Net-Zero Imperative. É que, na sua opinião, “the net amount of carbon dioxide we can emit if we are ever to stabilize the planet’s temperature at any level. Zero, none, nada.”, algo que não se obteve em Paris. Mesmo assim têm esperança:
While the net-zero objective was dropped by the negotiators in Paris, it should be endorsed by individual countries in their plans, reinforced by the G-20, and eventually enshrined in the UN agreement. For the planet, it is zero or bust.
Dito tudo isto é talvez altura de notar o comentário mordaz com que abre o editorial do Wall Street Journal, Paris Climate of Conformity: “The moment to be wariest of political enthusiasms is precisely when elite opinion is all lined up on one side. So it is with the weekend agreement out of Paris on climate policy”. Num texto onde se defende que só o progresso tecnológico pode mesmo mudar os termos do problema, mudando radicalmente a forma como produzimos energia para as necessidades das nossas sociedades, acaba-se com um veredicto cáustico: “The grandiose claims of triumph in Paris represent the self-interest of a political elite that wants more control over the private economy in the U.S. and around the world. These are the last people who will save the planet.”
Lamento terminar este Macroscópio com esta visão mais pessimista, mas é ela que também é mais desafiadora e nos pode levar a olhar de forma mais crítica para o que foi acordado em Paris. Sobretudo agora, que a poeira começa a assentar e o nevoeiro do foguetório a dissipar-se. É um tema que irá muito para além de hoje ou amanhã, pois continuará a ocupar as próximas gerações. E, como mostra um interessante gráfico interactivo da Economist, só agora The real work begins
Tenham bom descanso e melhores leituras. Até amanhã.
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