coligação
O dia em que morreu o CDS
Nessa quinta-feira, precisamente há dois meses, o CDS finou-se.
Soube pela internet: a notícia ecoou à noite e, pela diferença horária,
só a conheci no dia seguinte, aos primeiros minutos da manhã.
Não direi, como o Bonga, que fiquei com uma lágrima ao canto do olho. Mas estas coisas abalam-nos sempre; e deixam mágoa. Ainda por cima não estando perto do defunto e dos que dele cuidaram nas últimas horas antes do último suspiro – depois, é sempre sensível tentar apurar o que exactamente aconteceu nesses momentos finais. Levou tempo a conhecer tudo. Cumprem-se, hoje, dois meses de sufrágio. Acontecimentos posteriores confirmaram o óbito.
Nesse dia 11, já distante, foi apresentada à imprensa a Comissão Política Nacional da coligação Portugal à Frente. “A PàF tem uma CPN?” – foi a dúvida que logo me assaltou o espírito. Onde estava ela prevista? E regulada? Como fora designada? Como foram escolhidos os treze membros de cada partido, PSD e CDS, e como foram designadas as seis personalidades independentes?
A dúvida não era para menos: as comissões políticas nacionais, CPN para os íntimos, são os órgãos máximos de direcção política dos partidos; são eleitas em Congresso; e têm alto relevo estatutário, onde estão estabelecidas e reguladas. E esta CPN da PàF? Não sendo brincadeira cosmética, vai substituir as CPN dos partidos da coligação? Os membros destas delegaram funções na da coligação? Ou como se articula tudo? E qual o seu instrumento regulamentar? Quem o aprovou? Quando? Como?
Ocupado nesses meados de Junho numa reunião internacional, tive que deixar para mais tarde o esclarecimento. E a coisa não foi nada fácil: demorei uma semana a conseguir perceber o que se passara; e a confirmar os piores receios quanto ao CDS.
Sobre a coligação, o CDS tinha tido uma única reunião do Conselho Nacional, a 29 de Abril, em que a aprovou. Mas o único documento de que os conselheiros nacionais do CDS dispuseram – e sobre o qual votaram, incluindo eu – foi a declaração conjunta assinada por Passos Coelho e Paulo Portas no dia 25 de Abril. Ora, este texto é completamente omisso quanto a uma CPN da coligação ou coisa que se pareça.
Eu tinha, porém, a ideia de já ter lido qualquer coisa a esse respeito. “Googlando”, descobri aquilo que já lera. Nas notícias relativas ao Conselho Nacional do PSD do mesmo dia 29 de Abril, lá aparece a referência, não directamente a uma CPN, mas a que “a coligação constituirá órgãos próprios de coordenação política em documento autónomo”. E a mesma notícia é explícita: “Estas cláusulas não constavam do compromisso que os presidentes dos dois partidos assinaram no sábado, tendo sido acrescentadas na proposta de acordo de coligação submetida hoje ao Conselho Nacional do PSD pela Comissão Política Nacional do PSD, que foi distribuída aos jornalistas.” Seria possível que o PSD tivesse podido aprovar um documento fundamental que os conselheiros do CDS nem cheiraram? Foi isso mesmo que aconteceu. Afinal de contas, os mortos não votam.
Não concluí logo isso. É que nem eu, nem ninguém no CDS (a não ser o núcleo restrito de Paulo Portas) possuíamos esse documento. Só passados uns dias daquele 11 de Junho, consegui obtê-lo a partir de um jornalista, que o recebera no jantar de Guimarães de apresentação da coligação, a 16 de Maio. É esta, de resto, a data que lhe foi aposto, no exemplar que tenho (chama-se “Acordo de Coligação”); mas vê-se bem que é o mesmo texto de que logo falou a imprensa que cobriu o Conselho Nacional do PSD a 29 de Abril. No CDS, foi tudo mais simples: o documento nunca foi presente a qualquer órgão deliberativo, nem se acha publicado. Para quê maçar-nos com “burocracias”?
Este documento remete, ainda, para um outro “documento autónomo”, texto que porventura existirá. E será esse “documento autónomo” que talvez regulará, de modo explícito, a tal CPN da PàF: a sua existência, a sua composição, a designação dos seus membros, a sua competência, o seu funcionamento, o seu relacionamento com as CPN de cada um dos dois partidos. Tem que ser assim, sob pena de completa ilegitimidade e ilegalidade de tudo isto. Mas esse tal “documento autónomo” é que ninguém, que eu conheça, terá visto alguma vez – e tão-pouco foi aprovado por qualquer órgão do CDS, nem antes, nem depois daquela apresentação pública de 11 de Junho.
Foi isto que me levou a concluir pela morte do CDS. Não há outra explicação possível para tudo isto ter acontecido. Primeiro, a apresentação pública de uma Comissão Política da coligação, superando órgãos eleitos em Congresso. Segundo, a nomeação deste órgão sem que ninguém saiba como ocorreu, em processo clandestino. Terceiro, a constituição de uma Comissão Política conjunta com base estatutária ou regulamentar inteiramente desconhecida. Quarto, o facto de as normas que regerão a respectiva existência não terem, em momento algum, sido apresentadas e aprovadas no Conselho Nacional do CDS. E, quinto, a verificação de, à parte as minhas observações em público e dentro do partido, ninguém esboçar uma crítica, nem sequer os membros da Comissão Política eleitos no Congresso do CDS e assim preteridos e distratados. Só numa organização defunta isto é possível.
Já me tinha parecido que assim estávamos quando passaram as eleições europeias de Maio 2014, em que, coligados na Aliança Portugal, averbámos uma derrota histórica (27,7%), quase sete pontos abaixo mesmo dos piores resultados de 1975, as eleições constituintes disputadas debaixo de coacção em pleno PREC. Ninguém reagiu grande coisa a esse cataclismo, nem se interrogou sobre o que fazer para recuperar a confiança. O que me levou a comentar que só há uma explicação para um corpo levar uma estocada mortal e não esboçar a mais leve reacção: é já estar morto.
Esse óbito acaba de ser confirmado por dois factos recentes, qual deles o mais eloquente: primeiro, a forma como os conselheiros nacionais do CDS protestaram (alguns vigorosamente) contra a forma como o Presidente do CDS escolheu e ordenou todos os futuros deputados indicados pelo partido, mas aprovaram por esmagadora maioria (135 votos em 141) essas mesmas listas; e, segundo, a noticiada ausência do CDS dos próximos debates televisivos eleitorais e a triste forma, de algum modo autoinfligida, como aí se chegou.
É claro que existe o partido do Presidente do CDS-PP. Mas não é a associação política, não é uma instituição em sentido próprio, não é o CDS. O partido do Presidente que, blindado na coligação, tudo decide, tudo aprova, tudo escolhe é o sobrevivo. Que o CDS descanse em paz. Quando existiu, prestou grandes serviços a Portugal.
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R. I. P.
ANTÓNIO FONSECA