domingo, 26 de janeiro de 2014

Sobre o mesmo tema anterior - PRAXES - 26-1-14



OPINIÃO

A abjecção das praxes

A praxe mata, às vezes o corpo, mas sempre a cabeça.
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É-me pessoalmente repugnante o espectáculo que se pode ver nas imediações das escolas universitárias e um pouco por todo o lado nas cidades que têm população escolar, de cortejos de jovens pastoreados por um ou dois mais velhos, vestidos de padres, ou seja, de “traje académico”, em posturas de submissão, ou fazendo todo o género de humilhações em público, não se sabe muito bem em nome de quê.
Há índios com pinturas de guerra, meninas a arrastarem-se pelo chão, gente vestida de orelhas de burro, prostrações, derrame de líquidos obscuros pela cabeça abaixo, e uma miríade de signos sexuais, e gestos de carácter escatológico ou coprológico, que mostram bem a fixação dos rituais da praxe numa idade erótica que o dr. Freud descreveu muito bem.
Talvez pelas alegrias de ser vexado, o objectivo do coma alcoólico é muito desejado e o mais depressa possível. De um modo geral está quase tudo em adiantado estado de embriaguez, arrastando-se ao fim do dia pelos sítios mais improváveis, bebendo aquelas bebidas como os shots que são o atestado de que não se sabe beber, um álcool forte seja ele qual for, absinto, vodka ou cachaça e um licor ou sumo ultradoce para ajudar a engolir. Os nomes dos shots, do popular “esperma” ao “orgasmo”, passando pelo B-52, “bomba atómica”, "vulcão”, “bomba”, “Singapura”, “broche”, “inferno”, “chupa no grelo”, "Kalashnikov”, “levanta-mortos” ao “vácuo” (muito apropriado), fazem parte da cultura estudantil da Queima e da praxe. Por cima disso tudo, hectolitros de cerveja, a bebida que o nosso diligente ministro da Economia conseguiu retirar da proibição de servir bebidas alcoólicas a menores, um exemplo do que valem as ligações políticas de um gestor no seu sucesso como empreendedor.
A praxe mata, já tem matado, violado e agredido, enquanto todos fecham os olhos, autoridades académicas, autoridades, pais, famílias e outros jovens que aceitam participar na mesma abjecção. Já nem sequer é preciso saber se os jovens que morreram na praia do Meco morreram nalguma patetice da praxe, tanto mais que parece terem andado a seguir uma colher de pau gigante, fazendo várias momices, uma das quais pode ter-lhes custado a vida. Eu escreveria, como já escrevi noutras alturas, o mesmo, houvesse ou não houvesse o caso do Meco. (Aliás, é absurdo e insultuoso para a dignidade de quem morreu o espectáculo de filmes de telemóvel e entrevistas que as televisões têm passado, mas isso é outro rosário, da nossa estupidificação colectiva…)
Tenho contra a praxe todos os preconceitos, chamemos-lhe assim, para não estar a perder tempo, da minha geração. A praxe quando estava na faculdade era vista como uma coisa de Coimbra, um pouco antiquada e parola, de que, felizmente, no Porto e em Lisboa não havia tradição. No Porto, onde estudava, havia um cortejo da Queima das Fitas e a percentagem de estudantes vestidos de padres com capa e batina aumentava por uma semana, mas durante o ano era raro ver tal vestimenta. A situação era variável de escola para escola, mas a participação em actividades ligadas com a praxe era quase nula. Aliás, qualquer ideia de andar a “praxar” os estudantes do primeiro ano era tão exótica como a aparição de um disco voador na Praça dos Leões. Infelizmente muitos anos depois, apareceu uma verdadeira flotilha. Em Lisboa, muito menos, nada. Depois, outro enxame de discos voadores com padres de capa e batina.
Quando se deu a crise em Coimbra em 1969, a contestação à praxe acentuou-se, embora algumas “autoridades” da praxe, como o dux veteranorum, tenham apoiado a luta estudantil. Se em Coimbra a Queima das Fitas foi contestada, porque violava o “luto académico”, no Porto, as tentativas de a manter acabaram em cenas de pancadaria com grelados e fitados até que progressivamente desaparecerem do mapa. Tornava-se então evidente que o nascente conflito sobre a Queima no Porto se tinha tornado politizado entre uma universidade que as autoridades da ditadura cada vez menos controlavam e a tentativa de encontrar, por via da praxe, uma forma de resistência ao movimento associativo e estudantil. As últimas lutas mais importantes no Porto, como a contestação do Festival dos Coros, com as suas prisões em massa, tinham colocado as praxes e a Queima das Fitas do lado do regime e provocaram um longo ocaso das suas manifestações. Até um dia.
Eu participei nessas escaramuças políticas, mas também culturais, e escrevi alguns panfletos, incluindo um, Queimar a Queima, que circulou pelas três universidades em várias versões e edições. Mas, na luta contra a praxe, tornava-se cada vez mais evidente já nessa altura que estava em causa não apenas a conjuntura desses anos de brasa estudantis, mas também uma recusa da visão lúdica e irresponsável da juventude, e que, se se tratava de um rito de passagem, era para a disciplina da ordem e da apatia política. Rallies, touradas, bailes de gala, beija-mão ao bispo na bênção das pastas – tudo acompanhado pelas autoridades académicas muito contentes com a “irreverência” dos “seus” jovens, quando ela se manifestava naquelas formas – eram muito mais uma introdução à disciplina do que o despertar de qualquer consciência crítica. No fundo, o que se pretendia era que houvesse uma “explosão” de inanidades, a que depois se seguiria a disciplina da vida adulta, casamento, emprego, família e filhos, ordem social e hierarquia.
Ao institucionalizar a obediência aos mais absurdos comandos, a humilhação dos caloiros perante os veteranos, a promessa era a do exercício futuro do mesmo poder de vexame, mostrando como o único conteúdo da praxe é o da ordem e do respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do curso. Mas quem respeita uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio para respeitar todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir a mandar, quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda mais sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois vingas-te. 
Nos dias de hoje continua para mim evidente o papel deste tipo de rituais na consolidação de uma vida essencialmente amorfa e conservadora, desprovida de solidariedade e intervenção social e política, subordinada a todos egoísmos e disponível para todas as manipulações. Aliás, a evidente ausência do movimento associativo estudantil da conflitualidade dos dias de hoje e a fácil proliferação das “jotas” nessas estruturas, tanto mais eficaz quanto diminui a participação dos estudantes em qualquer actividade que não seja lúdica (numa recente eleição na Universidade do Porto para um universo de 32000 estudantes participaram 2000, em contraste com uma muito maior mobilização dos professores num processo eleitoral do mesmo tipo), acompanham a generalização da submissão à praxe. De facto, a praxe mata, às vezes o corpo, mas sempre a cabeça.
Historiador


http://www.publico.pt/n1621031

Transcrito por
ANTÓNIO FONSECA
26-1-14  -  22H50



Pés no Sofá: CARTA ABERTA A UM DUX

Eu sou





Pés no Sofá: CARTA ABERTA A UM DUX: Dux: Ando aqui com esta merda entalada há já algum tempo. A ouvir as diferentes versões, a pensar nas dúvidas e a pôr-me no lugar das...







23/01/2014

CARTA ABERTA A UM DUX


Dux:

Ando aqui com esta merda entalada há já algum tempo. A ouvir as diferentes versões, a pensar nas dúvidas e a pôr-me no lugar das pessoas. Tento pôr-me no lugar dos pais dos teus colegas que morreram. Mas não quero. É um lugar que não quero nem imaginar. É um lugar que imagino ser escuro e vazio. Um vazio que nunca mais será preenchido. Nunca mais, Dux. Sabes o que é isso? Sabes o que é "nunca mais"?

A história que te recusas a contar cheira cada vez mais a merda, Dux. Primeiro não falavas porque estavas traumatizado e em choque por perderes os teus colegas. Até acredito que estivesses. Agora parece que tens amnésia selectiva. É uma amnésia conveniente, Dux. Se calhar não sabias. Ou então andas a ver se isto passa. Mas isto não é uma simples dor de cabeça, Dux. Isto não vai lá com o tempo nem com uma aspirina. Já passou mais de 1 mês. Continuas calado. Mas os pais dos teus colegas têm todo o tempo do mundo para saber a verdade, Dux. E vão esperar e lutar e espremer e gritar até saberem. Porque tu não tens filhos, Dux. Não sabes do que um pai ou uma mãe é capaz de fazer por um filho. Até onde são capazes de ir. Até quando são capazes de esperar.

Vocês, Dux... Vocês e os vossos ridículos pactos de silêncio. Vocês e as vossas praxes da treta. Vocês e a mania que são uns mauzões. Que preparam as pessoas para a vida e para a realidade à base da humilhação, da violência e da tirania. Vou te ensinar uma coisa, Dux. Que se calhar já vai tarde. Mas o que prepara as pessoas para a vida é o amor, a fraternidade, a solidariedade e o civismo. O respeito. A dignidade humana e a auto-estima. Isso é que prepara as pessoas para a vida, Dux. Não é a destruí-las, Dux. É ao contrário. É a reforçá-las.

Transtorna-me saber que 6 colegas teus morreram, Dux. Também te deve transtornar a ti. Acredito. Mas devias ter pensado nisso antes. Tu que és o manda-chuva, e eles também, que possivelmente se deixaram ir na conversa. Tinham idade para saber mais. Meco à noite, no inverno, na maior ondulação dos últimos anos, com alerta vermelho para a costa portuguesa? Achavam mesmo que era sítio para se brincar às praxes, Dux? Ou para preparar as pessoas para a vida? Vocês são navy seals, Dux? Estavam a preparar-se para alguma missão na Síria? Enfim. Agora sê homenzinho, Dux. E fala. Vá. És tão dux para umas coisas e agora encolhes-te como um rato. Sabes o que significa dux, Dux? Significa líder em latim. Foste um líder, Dux, foste? Líderes não humilham colegas. Líderes não "empurram" colegas para a morte. Líderes lideram por exemplo. Dão o peito e a cara pelos colegas. Isso é um líder, Dux.

Não sei o que isto vai dar, Dux. Não sei até que ponto vai a tua responsabilidade nesta história toda. Mas a forma como a justiça actua neste país pequenino não faz vislumbrar grande justiça. És capaz de te safar de qualquer responsabilidade, qualquer que ela seja. Espero enganar-me. Vamos ver. O que eu sei é que os pais que perderam os filhos precisam de saber o que aconteceu. Precisam mesmo, Dux. É um direito que eles têm. É uma vontade que eles precisam. Negá-los disso, para mim já é um crime, Dux. Um crime contra a humanidade. Uma violação dos direitos humanos fundamentais. Só por isso Dux, já devias ser responsabilizado. É tortura, Dux. E a tortura é crime.

Sabes, quero me lembrar de ti para o resto da vida, Dux. Sabes porquê? Porque não quero que o meu filho cresça e se torne num dux. Quero que ele seja o oposto de ti. Quero que ele seja um líder e não um dux. Consegues pereceber o que digo, Dux? Quero que ele respeite todos e todas. Que ele lidere por exemplo. Que ele não humilhe ninguém. Que seja responsável. Que se chegue à frente sempre que tenha que assumir responsabilidades. Que seja corajoso e não um rato nem um cobardezinho. Que seja prudente e inteligente. E quero me lembrar também dos teus colegas que morreram. Porque não quero que o meu filho se deixe "mandar" e humilhar por duxezinhos como tu. Não quero que ele se acobarde nem se encolha perante nenhum duxezinho. Quero que ele saiba dizer "não" quando "não" é a resposta certa. Quando "não" pode salvar a sua dignidade, o seu orgulho ou até a sua vida. Quero que ele saiba dizer "basta" de cabeça erguida e peito cheio perante um duxezinho, um patrãozinho, um governozinho ou qualquer tirano mandão e inseguro que lhe apareça à frente. É isso que eu quero, Dux. Quem o vai preparar para a vida sou eu e a mãe dele, Dux. Não é nenhum dux nem nehuma comissão de praxes. Sabes porquê, Dux? Porque eu não quero um dia estar à espera de respostas de um cobarde com amnésia selectiva. Não quero nunca sentir o vazio dos pais dos teus colegas. Porque quero abraçar o meu filho todos os dias da minha vida até eu morrer, Dux. Percebeste? Até EU morrer. EU, Dux. Não ele.

Transcrito do blogue:



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por ANTÓNIO FONSECA 

26-1-14 -  22H44

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