Macroscópio – Liberdade e interditos, humor e parcialidade
Macroscópio – Liberdade e interditos, humor e parcialidade
Não sei bem onde colocar o início desta história, mas o mais fácil será começar pelo Expresso do passado sábado, onde o director-adjunto João Vieira Pereira escrevia uma crónica significativamente intitulada É a liberdade, António Costa (link para assinantes). Nessa crónica dava-se conta do teor de um SMS que aquele jornalista recebera do líder do PS (os detalhes da história podem ser lidos neste artigo do Observador: António Costa envia SMS polémico a diretor-adjunto do jornal Ex presso). Para quem não tenha lido ou não se recorde, o teor do SMS era o seguinte: “Senhor João Vieira Pereira. Saberá que, em tempos, o jornalismo foi uma profissão de gente séria, informada, que informava, culta, que comentava. Hoje, a coberto da confusão entre liberdade de opinar e a imunidade de insultar, essa profissão respeitável é degradada por desqualificados, incapazes de terem uma opinião e discutirem as dos outros, que têm de recorrer ao insulto reles e cobarde para preencher as colunas que lhes estão reservadas. Quem se julga para se arrogar a legitimidade de julgar o carácter de quem nem conhece? Como não vale a pena processá-lo, envio-lhe este SMS para que não tenha a ilusão que lhe admito julgamentos de carácter, nem tenha dúvidas sobre o que penso a seu respeito. António C osta”
Além do Observador, a notícia da existência deste SMS polémico só começou por ser dada por mais dois órgãos de informação – ojornal i e o Correio da Manhã – e, um dia depois, o presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Carlos Magno, questionado pelo Observador, disse que, do seu “ponto de vista, a ERC não se deve envolver”.
Este quase silêncio é um dos pontos de reflex&atil de;o, no Público de hoje, de Paulo Rangel, que na sua coluna de opinião, Ainda há bullying pelo Rato, teme pelo regresso do ambiente pesado que houve no consulado de José Sócrates e considera “estranho e verdadeiramente insólito” que, “apesar de, no fim-de-semana, António Costa ter aparecido em actos públicos e de ter aceitado responder a perguntas (por exemplo, à saída da Ovibeja), não houve nenhum jornalista que o questionasse sobre esta matéria. Aparentemente, os colegas de profissão de Vieira Pereira não valorizam este comportamento e ele não lhes suscita nenhuma apreensão.”
Essa mesma perplexidade levou a que ontem Alexandre H omem Cristo, em O SMS de António Costa é inaceitável, se interrogasse sobre se tal silêncio não constituiria a única excepção a uma regra tida por adquirida: a da crítica severa, nos jornais e na opinião pública, de actos considerados atentados à liberdade de imprensa. Acrescentou mesmo:
“Como estamos em Portugal e como se trata de António Costa, [o caso] foi apenas nota de rodapé durante um feriado. Imagine o que seria se o mesmo tivesse acontecido nos EUA, no Reino Unido ou em França. Ou, tão simplesmente, o que se diria caso o autor do SMS fosse Passos Coelho ou Miguel Relvas, em vez de António Costa. Quando a nossa disponibilidade para condenar ataques à liberdade de imp rensa é selectiva, algo está mal. E é por isso que não é fácil desempatar e decidir o que é mais grave neste episódio: se o próprio SMS de António Costa ou se o facto de ninguém se ter realmente importado.”
No caso deste Macroscópio, eu desempato: vou tratar do porquê de o caso não ter suscitado a celeuma que outros episódios semelhantes suscitaram. E faço-o por duas razões, uma pessoal e outra editorial. A pessoal remete para um episódio de que já me tinha esquecido totalmente, mas que um blogue recordou: em Fevereiro de 2008, num programa do Rádio Clube Português, António Costa também considerou que eu era “efectivamente uma pessoa desqualific ada”. Não sou de rancores, não me lembrava desse entrevista, há coisas que me entram por um ouvido e saem pelo outro, mas para que não se diga que trato deste tema no Macroscópio por ter velhas contas a ajustar (mesmo sendo agora Costa candidato a primeiro-ministro), passo à discussão editorial. E esta é quase tão antiga como a existência de imprensa livre: até que ponto são os jornalistas independentes? Mais recentemente, no mundo ocidental, essa questão tem tomado outra forma: até que ponto são os jornalistas de esquerda?
Eu sei que o tema é quase tabu em Portugal, mas o mesmo não sucede noutros países com tradições mais antigas de liberdade. Por isso começo a minha selecção de textos precisamente por um artigo de uma revista académica dos Estados Unidos, uma das mais p restigiadas nesta área, a Columbia Journalism Review:Journalism Should Own Its Liberalism - And then manage it, challenge it, and account for it (para os menos habituados à terminologia norte-americana, “liberalism” é forma como aí se designa o ser-se de esquerda). É um texto longo, com muitos dados e que merece ser lido com atenção. Como não podia deixar de ser numa revista académica, é um texto que cita estudos empíricos sobre o enviezamento para a esquerda da cobertura jornalística nos Estados Unidos. Pequeno extracto:
In a UCLA study of media bias, reporters were found to be substantially m ore liberal and more Democratic than the public at large. Hoyt, in a column last year, acknowledged this finding: “Being human, journalists do have personal biases, and a long line of studies has shown that they tend to be more socially and politically liberal than the population at large. There is no reason to believe Times journalists are any different.” If reporters were the only ones allowed to vote, Walter Mondale, Michael Dukakis, Al Gore, and John Kerry would have won the White House by landslide margins. More specifically, reporters and editors tend to be social liberals, not economic liberals.
Há imensa bibliografia sobre este tema nos Estados Unidos, mas fiquemo-nos por aqui e regressemos a Portugal. Desta vez para citar duas crónicas que falam abertam ente desta realidade:
- comecemos por Helena Matos que, num texto publicado no Observador em Outubro do ano passado, se interrogava: Os jornalistas são preguiçosos ou serão todos de esquerda? Nele defendia que “O que temos como elemento redutor e distorcivo de boa parte das notícias é uma outra coisa. Uma outra coisa que faz com que o problema não esteja no que escrevem sobre Passos, mas sim no que não escreveram sobre Sócrates. Ou que em algumas redacções tal só tenha acontecido por absoluta impossibilidade de evitar o assunto. Tal como o problema não é o que escrevem sobre os cortes nos salários, mas sim que em quarenta anos de democracia se contem pelos dedos das mãos as reportagens dignas desse nome so bre os sindicatos (…). Em conclusão, o problema não é de modo algum o que criticam e investigam, mas sim o que omitem sobre determinados líderes e o acriticismo com que brindam determinadas causas. Aqui sim pode falar-se de um favorecimento não necessariamente da área da esquerda, mas sim de quem lhe usa o ideolecto.”
- já Henrique Monteiro, num artigo recente no Expresso –Razões para duvidar do que parece evidente (link para assinantes) – fazia uma breve descrição do que, de alguma forma, era esse ideolecto: “há basicamente quatro assuntos que um jornalista não pode questionar sem sofrer uma espécie de bullying sob a forma de comentários nas redes sociais e por onde calha. Sem querer hierarquizá-los direi que são: os direitos dos animais, o facto das alterações climáticas serem provocadas pela ação do homem; a igualdade absoluta de género e a discriminação positiva de homossexuais e a absoluta probidade, correção e estudos superiores de José Sócrates.”
Ora bullying nas caixas de comentários e nas redes sociais foi algo que não faltou a Rui Ramos que, neste jornal, se atreveu hoje a tocar noutra zona de vacas sagradas: Porque é que todos os humoristas são de esquerda? (houve até quem anunciasse já estar a escrever o texto do seu próximo programa de humor, que lhe será especialmente dedicado apesar de o autor t er citado apenas exemplos anglo-saxónicos e nem sequer ter entrado pela realidade portuguesa). É um texto que explora várias interpretações de que destaco esta, entre outras possíveis:
Outrora, um esquerdista sentiria a obrigação de estar organizado, de pertencer a um partido, a um sindicato, a um movimento. Hoje, o esquerdismo é virtual, está na rádio e na TV, na rede social, na coluna de jornal, na sala de aula, à mesa do restaurante. (…) Não exige qualquer mudança de comportamento pessoal, mas em contrapartida requer, como mais um sinal de distinção, a vocalização histérica do escárnio do sistema a que se pertence e que se serve. Como tal, é uma ideologia muito jeitosa para a classe média que resultou da escolarização, da urbanização e da nov a indústria de serviços, e que sabe combinar o que a direita lhe dá em termos de economia de mercado, e o que a esquerda lhe empresta em termos de boa consciência igualitária. A carteira à direita, a boca à esquerda.
Esta discussão, suspeito, só está a começar – isto se resistir e não for morta no ovo. E será necessariamente uma discussão da sociedade civil, não de órgãos como a ERC, e não apenas pelo seu assumido silêncio. Às vezes é bom ter memória e é isso que acontece num blogue onde André Azevedo Alves recordou a forma bem diferente como uma antiga responsável daquele organismo e professora na Escola Superior de Comunicação Social, se referiu a este caso e a um que envolveu Miguel Relvas. Leiam: chama-se O padrão Estrela Serrano de “regulação” da comunicação social.
Esta discussão chega também numa boa altura: domingo passado, 3 de Maio, celebrou-se, sob o signo da UNESCO, o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa. Não aprecio especialmente “dias mundiais”, mas não posso deixar de notar a coincidência.
Tenham porém bom descanso, boas leituras e muitos anos de liberdade pela frente. Eu estarei de regresso amanhã.
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ANTÓNIO FONSECA