“Primeiro eram os pastores. Depois as máquinas dos comboios. Em seguida chegaram os cigarros e os foguetes. Falo de incêndios, claro. Em Portugal falar de fogos florestais é falar de culpas.” Assim começa Helena Matos uma crónica no Observador, Fogo de vista, acrescentando depois outros culpados, como os reaccionários (em 1975), os madeireiros (na década de 1980) ou a falta de meios, entre muitos outros. Voltaremos a esta crónica mais adiante, mas também ela denota o cansaço com as justificações que sempre surgem nestas ocasiões, quando todos os outros temas desaparecem dos noticiários televisivos para estes serem quase integralmente preenchidos com directos atrás de directos. Eu próprio também escrevi sobre o lado mais triste deste tipo de informação e discussão, em Estou cansado das inanidades sobre incêndios, texto que referirei de novo mais adiante.
Comecemos porém pelos especialistas, e se não quisermos que os especialistas sejam apenas os do costume – isto é, os ligados à máquina da protecção civil – então temos de nos virar para a universidade e para quem estudo o terreno e a ecologia do fogo não apenas no tempo dos incêndios, mas sobretudo quando estes não enchem os noticiários.
Sobre o que se passou na Madeira, o especialista mais ouvido foi o geografo Raimundo Quintal, que falou (que eu tenha registado) ao Observador, à Antena 1 e ao Diário de Notícias. João Francisco Gomes falou com ele para o Observador, dessa conversa dando conta em Porque é que o incêndio do Funchal era inevitável. Pequeno destaque: “Estes fogos nascem sempre numa zona a 400, 600 metros de altitude, numa zona alta da cidade, onde há uma promiscuidade preocupante entre habitação muito densa e mata”. Esta zona representa “um risco extraordinário, de onde partem fogos para a alta montanha, e também para a cidade”, e Raimundo Quintal lamenta que “não se tenha aproveitado o dinheiro da lei de meios [aprovada na sequência do temporal de 20 de fevereiro, para a recuperação da ilha da Madeira] para reordenar esta faixa terrível”.
Já Miguel Santos, também para o Observador, foi falar com dois professores universitários – Paulo Fernandes, da Universidade de Trás-os-Montes, e José Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia, para saber Porque arde Portugal? Eis uma parte das respostas dadas por este último, um dos autores do Plano Nacional para a Defesa da Floresta contra Incêndios: “O ênfase colocado no combate aos incêndios tem efeitos que a curto-médio prazo são perversos. Resolvemos o problema a curto prazo, enquanto acumulamos vegetação nas matas e florestas que depois de servem de combustível”, reitera. Depois, continua José Cardoso Pereira, há uma certa “atração política de responder com reforço de meios de combate“, ao invés de um plano consistente de prevenção. “É mediaticamente mais atrativo”, aponta. “Vemos todos os dias os noticiários das oito a serem abertos com helicópteros Kamov no terreno. Mas não vemos noticiários a serem abertos com desempregados a limparem as matas”, exemplifica o investigador.”
Esta questão é tão ou mais importante porque permite começar a perceber porque é que os planos feitos há dez anos não produziram os resultados esperados. Ou, se preferirmos, porque é que, em momentos de meteorologia mais desfavorável, o drama dos incêndios reaparece. Esse é o ponto da análise de Ana Fernandes no Público, Uma década perdida… mais uma. Nesse texto recorda-se, por exemplo, que não se seguiu a recomendação de alterar a lógica dominante no combate aos incêndios, que dá prioridade aos bombeiros. De acordo com o plano proposto pelos especialistas depois dos grandes fogos de 2003 e 2004, “O combate seria mais especializado, isto é, os bombeiros teriam a seu cargo a protecção das vidas e dos edifícios e o combate no mato ficaria a cargo de sapadores florestais, mais conhecedores do comportamento das chamas nestes ambientes e das técnicas de fogo controlado ou de combate manual.” Mas pouco se fez nesta frente, como noutras: “Para conseguir pôr tudo isto de pé, seria necessário investir, até 2010, quase 700 milhões de euros. A resposta do Governo foi “não há dinheiro”. Ao que os técnicos responderam: “Os gastos até 2010 implicam um esforço adicional de 15 milhões de euros relativamente ao que foi gasto em 2004 em prevenção e combate, ou seja, é o equivalente a meio Canadair ou três quilómetros de auto-estrada”, disse José Miguel Cardoso Pereira, que liderava a equipa.”
É curioso que ninguém, ou quase, tenha falado disto nos inúmeros debates televisivos dos últimos dias, pelo que regresso ao meu texto Estou cansado das inanidades sobre incêndios onde noto que “Portugal gastou e gasta a maior parte do dinheiro em bombeiros e aviões para, quando chegam os grandes incêndios, se recordar de que quase tudo o resto que foi proposto e planeado ficou por fazer. (…) Mais: os problemas não se resumem a um quimérico “ordenamento” e ainda menos a votos piedosos (ou leis inúteis) sobre a limpeza das matas pelos proprietários. Basta notar que, como referiu ao Observador um dos especialistas que realizou o estudo de 2005, José Cardoso Pereira, Portugal continua muito longe das melhores práticas em domínios como o uso do fogo controlada, a criação de uma rede de faixas de gestão de combustível ou o uso do gado miúdo como técnica ambientalmente sustentável de remoção de vegetação.”
Henrique Pereira dos Santos, um outro especialista que tem utilizado a blogosfera para criticar as prioridades das políticas públicas neste domínio é muito directo, num texto editado pelo Público, Agarrei-me à carteira, quando se trata de apontar o dedo ao principal responsável por o plano de 2006 ter acabado por beneficiar muito o sistema da protecção civil e pouco ter contribuído para a melhoria do que se faz nas outras frentes. Recorda ele: “O ministro [António Costa] vergou o então ministro da Agricultura nas opções sobre fogos florestais e destruiu por completo o Plano Nacional de Defesa das Florestas contra Incêndios. Veja-se o recente despacho N.º 9473/2016 de 25 Julho: o tal Fundo Florestal Permanente, o que iria financiar a prestação de serviços ambientais que o mercado não remunera, como a limpeza de matos pelo pastoreio, transfere para a GNR 3,6 milhões de euros para pagar a vigilantes.”
O mesmo Henrique Pereira dos Santos escreveu também um texto para o Observador, “Portugal sem fogos”, uma ideia criminosa, onde defende que, bem utilizado, o fogo é uma maneira de nos defendermos, prevenindo os grandes incêndios.
Sem entrar nos detalhes do que devia ter sido feito e não foi, Martim Silva, no Expresso, Não, sr. Presidente, esta não é a altura de falar em prevenção dos fogos, escreveu que “Dispensava as promessas numa altura em que o país arde. É precisamente no resto do ano que temos que pensar na prevenção e no que fazer. Agora? Agora é altura de guerra e em tempo de guerra não se limpam armas. A prevenção dos fogos florestais é um desígnio nacional num país em que a área ardida é muito superior ao verificado em estados como a Espanha, França, Grécia ou Itália. Mas o que eu quero, o que eu quero mesmo, é que aqueles que agora falam nisto coloquem o tema no topo da agenda quando os incêndios tiverem desaparecido das notícias.”
Ora isso parece nunca ter feito parte das prioridades políticas, sobretudo no que respeita ao essencial, pois, como notou Francisco Sarsfield Cabral na Rádio Renascença, em A reforma da floresta, “O problema político de uma séria reforma da floresta é que leva tempo, demasiado tempo para os políticos que pensam nas próximas eleições. Não compensa eleitoralmente.”
Por isso estamos como estamos, parecendo que Queremos ver Portugal a arder, como escreveu João Miguel Tavares no Público: “Temos 3,5 vezes mais incêndios do que a média dos países mediterrânicos e 2,5 vezes mais área ardida. São números que deveriam envergonhar qualquer português. E, no entanto, não me recordo de esse estudo ter tido alguma repercussão significativa em termos políticos ou mediáticos, e eu próprio só dei por ele porque ontem já não conseguia suportar mais labaredas à hora do almoço e pus-me a pesquisar.”
Termino voltando ao Observador, para referir dois textos que complementam as leituras mais técnicas com uma necessária perspectiva histórica. O primeiro é de Rui Ramos, que em Porque é que Portugal arde? nos recorda como era o mundo rural português há dois séculos, no tempo das invasões francesas, como sucessivas gerações de reformadores o foram transformando, para chegarmos à situação actual: “A partir da década de 1960, aconteceu algo que ninguém previra. Todos os regimes e governos portugueses até então tinham pressuposto que Portugal seria sempre uma sociedade rural, cheia de gente nos vales e serras do interior. Ninguém estava preparado para o êxodo maciço da população dos campos. Em poucas décadas, desapareceram os povos e os gados que tradicionalmente limpavam os matos. Pior: desfez-se a ordenação humana do território, aquela que correspondia a uma vida antiga, e não a opiniões de gabinete municipal. Sobre courelas e quintas esquecidas, o mato cresceu, num ímpeto de arborização selvagem. O arvoredo das políticas florestais foi assim reforçado pelos matagais do abandono rural. Entretanto, nos arredores de centros populacionais, espalharam-se novas casas, fábricas e armazéns por entre o mato dos novos baldios. O combate aos fogos concentrou-se, como seria de esperar, na defesa de habitações e outros edifícios. O resto, quando há incêndio, arde.”
Helena Matos, no texto que referi logo a abrir, Fogo de vista, depois de nos recordar como fondo trocando de culpados em função de modas políticas e mediáticas, conclui, invocando um episódio de “justiça popular” de 1975: “Querer combater incêndios como se os hábitos e a distribuição da população pelo território não tivessem mudado desde os anos 50 do século passado, quando a maior parte da população vivia no campo e calcorreava as serras em busca de lenha e alimento para o gado, é tão ineficaz e grotesco quanto aquelas pessoas que, em Setembro de 1975, acreditaram que matando um qualquer desgraçado punham fim ao drama dos incêndios que lhes roubavam o sono, os bens e a paz.”
Espero, com este Macroscópio, ter contribuído para uma discussão demasiado marcada pelo simplismo. Por exemplo: de que serve exigir que se faça rapidamente um cadastro dos proprietários rurais se as áreas rurais continuarão envelhecidas e desertificadas? Nas televisões, é uma frase de belo efeito. Na prática, de pouco serve se não pensarmos em todas as outras medidas que falta tomar, e que até já foram propostas e desenhadas.
Entretanto a meteorologia parece estar a melhorar e é possível que a situação também melhore nos próximos dias. Uma melhoria tão desejável como indesejável é que esqueçamos o que este ano voltou a passar-se.
Bom descanso, boas leituras, e até amanhã.
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