2021 10:25
Do Tempo da Outra Senhora |
Posted: 21 Feb 2021 04:53 AM PST Santo António Fernando Pessoa (1888-1935) Nasci exactamente no teu dia — Treze de Junho, quente de alegria, Citadino, bucólico e humano, Onde até esses cravos de papel Que têm uma bandeira em pé quebrado Sabem rir... Santo dia profano Cuja luz sabe a mel Sobre o chão de bom vinho derramado! Santo António, és portanto O meu santo, Se bem que nunca me pegasses Teu franciscano sentir, Católico, apostólico e romano. (Reflecti. Os cravos de papel creio que são Mais propriamente, aqui, Do dia de S. João... Mas não vou escangalhar o que escrevi. Que tem um poeta com a precisão?) Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António, Que tu és o meu santo sem o ser. Por isso o és a valer, Que é essa a santidade boa, A que fugiu deveras ao demónio. És o santo das raparigas, És o santo de Lisboa, És o santo do povo. Tens uma auréola de cantigas, E então Quanto ao teu coração — Está sempre aberto lá o vinho novo. Dizem que foste um pregador insigne, Um austero, mas de alma ardente e ansiosa, Etcetera... Mas qual de nós vai tomar isso à letra? Que de hoje em diante quem o diz se digne Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa. Qual santo! Olham a árvore a olho nu E não a vêem, de olhar só os ramos. Chama-se a isto ser doutor Ou investigador. Qual Santo António! Tu és tu. Tu és tu como nós te figuramos. Valem mais que os sermões que deveras pregaste As bilhas que talvez não concertaste. Mais que a tua longínqua santidade Que até já o Diabo perdoou, Mais que o que houvesse, se houve, de verdade No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou, Vale este sol das gerações antigas Que acorda em nós ainda as semelhanças Com quando a vida era só vida e instinto, As cantigas, Os rapazes e as raparigas, As danças E o vinho tinto. Nós somos todos quem nos faz a história. Nós somos todos quem nos quer o povo. O verdadeiro título de glória, Que nada em nossa vida dá ou traz É haver sido tais quando aqui andámos, Bons, justos, naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos Nos promovem a outros, como faz Com a imaginação que há na certeza, O amante a quem ama, E o faz um velho amante sempre novo. Assim o povo fez contigo Nunca foi teu devoto: é teu amigo, Ó eterno rapaz. (Qual santo nem santeza! Deita-te noutra cama!) Santos, bem santos, nunca têm beleza. Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ... Tira lá essa capa! Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico Em fantasia, promoveu-te a manjerico. És o que és para nós. O que tu foste Em tua vida real, por mal ou bem, Que coisas, ou não coisas se te devem Com isso a estéril multidão arraste Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem, Essa prolixa nulidade, a que se chama história, Que foste tu, ou foi alguém, Só Deus o sabe, e mais ninguém. És pois quem nós queremos, és tal qual O teu retrato, como está aqui, Neste bilhete postal. E parece-me até que já te vi. És este, e este és tu, e o povo é teu — O povo que não sabe onde é o céu, E nesta hora em que vai alta a lua Num plácido e legítimo recorte, Atira risos naturais à morte, E cheio de um prazer que mal é seu, Em canteiros que andam enche a rua. Sê sempre assim, nosso pagão encanto, Sê sempre assim! Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim, Esquece a doutrina e os sermões. De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto. Foste Fernando de Bulhões, Foste Frei António — Isso sim. Porque demónio É que foram pregar contigo em santo? Fernando Pessoa (1888-1935) BIBLIOGRAFIA PESSOA, Fernando. Fernando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. (Organização de Alfredo Margarido). A Regra do Jogo. Lisboa, 1986. |