Macroscópio – Está a esquerda europeia condenada a perder ou a perder-se?
Macroscópio – Está a esquerda europeia condenada a perder ou a perder-se?
A derrota dos trabalhistas, sobretudo pela sua dimensão, recolocou na ordem do dia o tema do destino da esquerda europeia, ou seja, da sua esquerda reformista, progressista, social-democrata. Há outras esquerdas – como aquela que ainda hoje deu prova de vida ao mandar executar a tiro de arma anti-aéria um ministro por este ter adormecido numa cerimónia –, mas mesmo sem estes exemplos extremos que nos chegam da Coreia do Norte essas outras esquerdas nem fazem parte destes debates. Pelo menos desde 1989. Concentemo-nos pois no que conta.
Um bom ponto de partida é o texto de Vital Moreira no Diário Económico de hoje, Fábula. O antigo eurodeputado eleito pelo PS parte da sua discordância com Manuel Alegre – que acha que o Labour perdeu por não ter um discurso suficientemente de esquerda – para defender que aconteceu exactamente o contrário: que foi por isso que Ed Miliband não conseguiu cativar o decisivo eleitorado centrista. Mas o seu argumento central, que depois desenvolve, é o seguinte:
Como Blair advertiu atempadamente, quando a esquerda tradicional enfrenta a direita tradicional o resultado é a tradicional derrota da primeira. A direita pode prescindir de renovação política; a esquerda, não. A esquerda social-democrata já deveria ter aprendido que a sua aposta no terreno social não é ganhadora se não for acompanhada de um convincente compromisso no desempenho económico, no rigor das finanças públicas e na eficiência do Estado.
Suspeito que Vital Moreira, se vivesse no Reino Unido, era capaz de se inclinar para aquilo que Tim Judah, no Politico, descreveu como uma espécie de New New Labour em How will Labour get its mojo back? A análise deste jornalista é interessante pois ele explica, no essencial, as quatro opções que se abrem aos trabalhistas: “Go Blairite, go back to basics, emulate Podemos, or get tough on immigrants.” O “New New Labour” representaria um regresso às políticas centristas e pró-mercado dos anos de Tony Blair; o “Unite Labour” traduziria uma espécie de regresso às origens e às poderosas ligações com o mundo dos sindicatos; o “‘Podemos’ Labour “ levaria o partido ainda mais para esquerda e representaria uma espécie de reinvenção do partido em modo mais radical; e o “Left-KIP” seria uma espécie de UKIP de esquerda, populista e anti-imigrantes, de certa forma como, até à década de 1960, os democratas dos estados do Sul dos Estados Unidos eram mais racistas dos que os republicanos.
Trata-se de uma cenarização interessante que também chamou a atenção a Rui Tavares, no Público, em Quatro partidos, que de alguma forma confessa o seu desencanto: “É interessante ver como esta discussão se repete em vários países europeus. Quando o centro-esquerda se começa a aproximar do poder, o viés é sempre mais forte para a Terceira Via e menos para o Novo Progressismo (que seria a hipótese dois). Uma aliança entre a hipótese dois e a três só parece ser suficientemente forte fora do centro-esquerda e até fora dos partidos tradicionais. Resta a hipótese quatro: uma aliança entre a tendência pró-mercado (e moderadamente social) e a tendência populista, para descansar os patrões e seduzir o que os políticos tradicionais julgam que sejam hoje em dia as massas. Essa seria uma má notícia, não só para o centro-esquerda, mas para todos nós.”
Mas Rui Tavares vem do Bloco de Esquerda e está agora numa formação política que não se cansa de enviar sinais ao PS de que gostaria de se juntar a ele para o puxar mais para a esquerda. Ou seja, que fizesse exactamente o caminho oposto ao que Vital Moreira recomenda.
Eu próprio, em Esquerda bem-me-quer, esquerda mal-me-quer, aqui no Observador, coloquei os termos do dilema em termos que, de certa forma são semelhantes, mesmo sendo a sua abordagem simétrica: “O dilema da esquerda moderada, e de António Costa em especial, é que um dia a cabeça lhes diz que devem seguir o exemplo de Blair ou Valls, e no dia seguinte o coração os coloca nos braços de Piketty.” Utilizei como ponto de partida o que se está a passar na Grécia e a experiência do Syriza para sublinhar que, de alguma forma, ela tem permitido separar águas entre o que são os sonhos anti-austeritários e o que é possível fazer, mesmo a partir de uma perpectiva de esquerda – “uma coisa são sonhos voluntaristas, porventura generosos, outra bem diferente é governar sociedades complexas, cuja prosperidade depende da abertura dos mercados e onde a soberania está limitada por uma enorme teia de tratados internacionais”. Extracto da passagem em que me refiro aos diferentes registos que o PS de António Costa tem vindo a adoptar:
Esta é a esquerda que não se decide, que um dia apresenta propostas interessantes mesmo que discutíveis e, no dia seguinte, regressa à ideia de que se pode retomar os hábitos e as soluções de outros tempos. É aquele PS que nunca se sabe se, quando fala de rigor orçamental e de cumprimento dos compromissos internacionais, o faz por real convicção, ou faz com aquela insustentável leveza com que José Sócrates repetia constantemente esse discurso enquanto conduzia o país para a bancarrota.
Mas o Syriza não obriga apenas a esquerda a definir-se – também coloca problemas sobre o que é ético prometer em eleições no quadro da integração de um país na União Europeia. Esse tema foi abordado por Francesc de Carreras, professor de Direito Constitucional, no El Pais, em ¿La izquierda en un solo país?. O título remete para o debate entre “socialismo num só país” versus “revolução mundial” que opôs estalinistas a trostkistas nos primeiros anos da Revolução Russa, mas tem hoje um conteúdo muito concreto: “Pues bien, la Grecia de Syriza ejemplifica hoy, bajo supuestos teóricos bien distintos, los límites de la autonomía de una política de izquierdas en un solo país. Obviamente, la situación ha cambiado de forma substancial respecto de la época de Stalin y Trotski y las posiciones de la izquierda también. Los Estados ya no son los escenarios donde se desarrollan los cambios sociales y económicos. Los mercados determinaron hace varios siglos el ámbito de los Estados nacionales. La enorme ampliación de estos mercados determina hoy, por causas muy parecidas, otras formas políticas.” É uma reflexão bem interessante.
Vamos ainda a mais duas referências internacionais. Uma para o diário económico alemão Handelsblatt, que ainda está muito focado no desgaste que os partidos populistas têm vindo a provocar nos partido do centro – Rage Against the Center –, um texto que refiro apesar de me parecer que já não estamos a assistir hoje à enorme vaga que coincidiu com as eleições europeias. Isso mesmo se viu nas eleições britânicas e no resultado aquém das expectativas do UKIP.
(Nota à margem importante: tem havido algum debate, às vezes virulento e irritado, em torno do sistema eleitoral inglês. Paulo Rangel dedicou-lhe o seu texto de ontem no Público, A estabilidade como trunfo eleitoral, uma prosa que recomendo pelo seu didatismo e por recordar que, não havendo sistemas eleitorais perfeitos, o sistema britânico tem servido bem a sua velha e orgulhosa democracia, mesmo podendo desagradar a Francisco Louçã.)
O último texto que tenho para recomendar hoje é de Simon Nixon, saiu no Wall Street Journal, tem porventura o título mais provocador – Why Europe’s Left Are Serial Losers – mas é uma boa síntese dos dilemas a que este Macroscópio se dedicou. Faz um bom ponto da situação, país a país, das diferentes situações da esquerda reformista e social-democrata, e acaba por notar algo que, não lhe resolvendo os problemas do futuro, a permite, apesar de tudo, respirar de alívio: “The common challenge for all of Europe’s center-left parties is to figure out what their role should be in the 21st century. In some respects, they are victims of their own success. Many of the goals for which the left campaigned during the 20th century have been achieved: Most Europeans now have jobs, reasonable standards of housing, free health care and education and access to pensions.” É curto, eu sei, e como se escreve um pouco mais adiante, “Labour’s failure in the U.K. is likely to further undermine confidence and fuel divisions across the European left, potentially boosting the prospects of center-right incumbents ahead of elections in Spain, Portugal and Ireland in the next year. What the left urgently needs is a new role model to show it how to deliver difficult reforms while maintaining public support. Perhaps Mr. Renzi will oblige?”
E, por hoje, o Macroscópio fica-se por aqui. Bom descanso, boas leituras e, como não podia deixar de ser, despeço-me até manhã.
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ANTÓNIO FONSECA