O debate continua, o Macroscópio continua atento. Ontem à noite, já tarde, foi conhecida a decisão do juiz Carlos Alexandre sobre as medidas de coação a aplicar a José Sócrates e aos restantes arguidos, e estas suscitaram novas ondas de choque. Vamos a elas, com uma selecção das melhores análises e opiniões.
Vou começar hoje pelo Público e por dois textos escritos ainda antes da decisão de manter o antigo primeiro-ministro em prisão preventiva. João Miguel Tavares, em “O incomparável José Sócrates”, volta a a um antigo argumento e à necessidade de “explicar pacientemente, persistentemente, teimosamente, que José Sócrates era diferente, que era único, que não se podia comparar a ninguém, que ele era a pior coisa que nos tinha acontecido desde o PREC”. Parte daí para contrariar algumas ideias sobre a crise do regime:
O regime tem imensas falhas e a política infindáveis problemas, mas Passos Coelho tem toda a razão quando afirma que nem toda a gente é igual. E José Sócrates, graças a Deus, não é igual a ninguém. Ele é o special one da indistinção entre verdade e mentira, pela simples razão de que nunca viu diferença entre uma e outra. A sua detenção não é o fim do regime. Pelo contrário: foi durante o seu consulado que o regime esteve quase morto. O que está agora a acontecer é o oposto disso: é o regime a funcionar outra vez.
Paulo Rangel, em “Decência, justiça, regime e presidenciais”, também aborda de passagem a questão da eventual crise regime, mas o ponto mais interessante do seu artigo é a discussão, suscitada por uma intervenção pública de Pedro Adão e Silva, sobre o equilíbrio futuro entre os poderes legislativo, executivo e judicial. Apesar de considerar que o caso Sócrates “inscreve-se numa competência tradicional do poder judicial”, não deixa de expor a sua visão do futuro:
Numa sociedade poliárquica, com múltiplos centros de poder, de fronteiras abertas e porosas, a capacidade de afirmação do eixo de poder legislativo-executivo diminuiu francamente. Daí que, diante dos problemas hodiernos, os governos e os parlamentos dos Estados nacionais revelem uma reiterada dificuldade de resposta. Nas democracias pós-territoriais, o lugar e o papel dos tribunais vai ser seguramente muito mais relevante e muito mais visível do que foi até aqui.
Aqui no Observador Rui Ramos, que já escrevera sobre “a hora mais perigosa do regime”, volta a abordar o tema colocando uma questão pertinente: “Como poderão os cidadãos confiar outra vez num regime cuja classe política não parece ter meios ou vontade para escrutinar e filtrar os menos idóneos?” Esse é o ponto de um texto intitulado “Há vida para além de Sócrates?”, onde recorda a mudança da IV para a V República em França para defender que é possível mudar de regime em democracia:
É possível falar de um novo “regime” no sentido de uma nova fase da democracia, da mesma maneira que os franceses falam do “regime da V República”. Mas o fim de um regime pressupõe forças para construir outro. Haverá em Portugal essas forças – outras pessoas, outras disponibilidades, outros meios — para refundar a democracia, como o general De Gaulle fez em 1958 em França, perante o descalabro militar e financeiro da IV República? Não sabemos.
Luís Rosa, director do jornal I, utiliza argumentos semelhantes para defender que esta pode ser “Uma oportunidade para a regeneração”. Mas para isso será necessário que os partidos fundadores da Terceira República “percebam que nada voltará a ser igual. PSD, PS e CDS têm de ser mais exigentes com os seus dirigentes, têm de estar mais atentos à promiscuidade entre a gestão da coisa pública e os interesses económicos subjacentes, têm de impedir de facto que o financiamento partidário ilícito ou a corrupção possam marcar parte da condução do interesse público e têm de perceber que os servidores da causa pública não podem enriquecer ilicitamente à custa da política.”
Passando às circunstâncias concretas deste caso, e em especial à decisão de decretar a prisão preventiva, noto que André Macedo, director do Diário de Notícias, está entre os que encontram motivos compreensíveis para o juiz Carlos Alexandre assim ter decidido. Escreve ele:
Estando sobre a mesa os crimes de corrupção e branqueamento de capitais -isto é, havendo factos considerados suficientemente fortes pelo juiz de instrução – e sendo o arguido um antigo primeiro-ministro (é evidente que o cargo importa) a prisão preventiva não se apresenta como excessiva ou desmesurada. O perigo de perturbação do inquérito era uma possibilidade, talvez uma tentação para Sócrates. A medida, em teoria, é proporcional. Esse risco não podia, por isso, ser desvalorizado por quem o julgou.
O jurista e professor universitário André Ventura acrescenta, num texto publicado no jornal Oje, alguns argumentos a este ponto de vista. Para ele “a opção não poderia ter sido outra”. Isto porque o ex-primeiro-ministro poderia “perturbar o normal funcionamento do inquérito, seja através da mobilização de um conjunto de contactos naturalmente existentes ou de um amplo esforço de influências que se alastram desde os meios judiciais aos corredores parlamentares e ao universo empresarial”.
Já entre os que se mostram incomodados com o comportamento das autoridades judiciais, o destaque deve ir para Mário Soares e para o seu texto no DN de hoje intitulado “Uma semana difícil”. Lamenta aí “o que foi feito a um ex-primeiro-ministro com um anormal aparato fortemente lesivo do segredo de justiça não pode passar em vão”. E acrescenta: “Também não pode passar em vão o espetáculo mediático que a comunicação social tem feito, violando também ela o segredo de justiça ao revelar factos que era suposto só serem conhecidos quando um juiz se pronunciasse. O que não aconteceu.”
Esta linha de abordagem, muito crítica do poder judicial e muito solidária com o antigo primeiro-ministro, suscitou-me um comentário, aqui no Observador: “É talvez altura de nos curarmos de vez do socratismo”. Deixo-vos apenas uma passagem:
O que distingue o socratismo não é uma visão da forma de ser socialista, é uma visão schmittiana de exercício do poder. Compreendo que o seu estilo de líder forte possa ter fascinado quem cavalgou a onda, mas é bom que hoje olhem para o elixir que provaram e que os inebriou, e percebam que era um veneno. Ou seja: acordem para a realidade. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já sabemos sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi possível?”, “como é que acreditei?”.
Termino chamando a atenção para uma perspectiva muito diferente, mas especialmente importante: a do embaixadorFrancisco Seixas da Costa que, no Diário Económico, chamou a atenção para os problemas de reputação que um caso deste tipo, em cima de uma sucessão de outros casos, pode acarretar para o país. Avaliando o impacto de crises como as do BES e da PT e de escândalos como os da rede de corrupção dos vistos gold e os que levaram à prisão de José Sócrates, conclui com uma perspectiva sombria:
Se, apesar do efeito reputacional destes eventos, o país não se afundar perante o mundo, só uma conclusão é legítimo tirar: já não somos nós que nos sustentamos perante o mundo, é apenas a nossa irrelevância no jogo global que nem sequer nos permite sermos sujeitos da nossa própria crise. Porventura, é melhor assim.
Termino por hoje, na expectativa de que amanhã já possa mudar de tema, até porque Portugal e o mundo não pararam de girar. Boas leituras e bom descanso.
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