Luaty Beirão. Poucos teríamos ouvido falar dele até há algumas semanas. Um
rapper
angolano, porventura não um dos mais populares. Quando subia ao palco
assumia o nome de Ikonoklasta. Mas Luaty Beirão não é apenas um
iconoclasta – é alguém que teve a coragem de, em Angola, em Luanda, num
espectáculo a que estava a assistir um filho do Presidente Eduardo dos
Santos, dizer que tinha chegado a hora de mudar. Que era preciso mais
liberdade. Que em Luanda se podia sonhar como, naquela altura, se
sonhava na Tunísia, no início de uma Primavera Árabe que então ainda
prometia muito. Juntou a sua voz ao apelo para uma manifestação pelos
direitos humanos, pelo que traçou o seu destino. Acabaria por ser preso e
acusado de preparar um golpe de Estado, pelo que na prisão decidiu
iniciar, já lá vai um mês, uma greve da fome. Hoje havia uma
petição de apoio a Luaty a fazer caminho, ontem soubemos que, por fim, a justiça angolana marcara uma
data para o seu julgamento. Os advogados faziam entretanto um
pedido para que deixasse a greve de fome., mas ele decidiu continuá-la,
exigindo aguardar em liberdade o seu julgamento.
Esta luta exemplar merece que lhe dediquemos um Macroscópio, pois ela
mostra como a determinação de um homem só pode, afinal, fazer estremecer
o mais duro dos regimes. Mais: este é um assunto que também chegou à
política portuguesa, com o PCP a
votar contra,
na Assembleia Municipal de Lisboa, um voto de solidariedade com Luaty
Beirão, e o Bloco de Esquerda a exigir mais do governo português numa
altura em que, por fim, um diplomata português o
visitou na prisão, em conjunto com outros diplomatas da União Europeia.
Primeiro que tudo, quem é realmente Luaty Beirão? Nada melhor do que um
texto de outro angolano para o apresentar. Falo de José Eduardo Agualusa
que, no Expresso do passado sábado, escrevia uma longa peça sobre este
rapper e activista (link só para assinantes):
O herói insolente. Depois de o apresentar como “
Henrique
Luaty da Silva Beirão, 33 anos, o improvável herói de um movimento de
democratização que cresce todos os dias, tirando o sono ao Presidente
José Eduardo dos Santos. Estendido numa cama de um hospital-prisão, em
Luanda, em greve de fome, Luaty Beirão está a mudar a História de Angola”, Agualusa sublinha:
Este é já o mais importante movimento cívico a emergir em Angola
desde a independência, e o maior desafio enfrentado pelo regime desde o
fim da guerra civil. Um pouco à semelhança de Luaty, um “filho do
regime”, também muitos dos jovens ativistas que estão por detrás do
amplo movimento de solidariedade que cresce em Angola são originários de
famílias pertencentes aos círculos do poder político e militar. Nas
redes sociais são cada vez mais frequentes os alertas e comentários
contrários à atuação dos dirigentes angolanos, por parte de conhecidos
militantes e simpatizantes do MPLA.
Um outro retrato desenvolvido de quem é este ativista, assim como da
situação em que se encontra, é aquele que João Almeida Dias escreveu
aqui no Observador,
O rapper em greve de fome que enfrenta o regime angolano a partir de uma cama de hospital.
É um texto onde também se descreve a angústia da sua mulher pela
degradação da sua condição física (e então haviam sido 23 dias de greve
de fome, agora vão em 30). Uma degradação inevitável e terrível: “
A
primeira consequência de uma greve de fome é a tontura. A falta de
alimento leva a cabeça a andar à roda e gera-se uma sensação de
fraqueza. Em conformidade, a pele fica pálida. De seguida, o organismo
tenta compensar a situação e começa a ir buscar energia à massa gorda e
aos músculos — um processo que durará consoante aquilo que o corpo tiver
para oferecer. É aí que a maior parte do peso é perdido. Por fim,
quando a pele já passou do pálido para um cinzento de mau agouro, o
organismo começa a falhar. O que era fácil ao início, torna-se
impossível nesta fase.”
Cabe também dar a palavra ao próprio, que já este ano, em Março, deu uma
entrevista ao Público que aquele jornal agora recuperou:
“Basta. Têm de se ir embora. É preciso uma ruptura em Angola”. Aí, depois de recordar que Luaty Beirão “
Podia
ser um filho do regime, pois o seu pai, João Beirão, era um homem
próximo do Presidente, tendo dirigido a FESA, a Fundação José Eduardo
dos Santos (morreu em 2006). Mas escolheu estar do lado dos que
contestam a forma como o país foi dirigido nestes últimos 13 anos – os
anos a seguir ao final da guerra, que durou de 1975 a 2002”, transcreve-se o seu importante depoimento. Extrato:
"
O problema está identificado: a elite governante já não tem nada
para dar, deve reconhecer que já serviu o país como soube servir,
serviu-se dele, e agora tem de passar o testemunho. Só que não sabem
como fazer isso, porque estão presos. José Eduardo dos Santos foi
(re)eleito há três anos, mas em 2012, assim como em 2008, houve fraude,
maciça, preparada com antecipação. Há várias evidências e provas de
fraude programada e desenhada. Quem são os observadores que vieram desta
vez? Nenhum credível. Só vieram a SADEC (Southern African Development
Community) e a União Africana.”
(Como complemento, recomenda-se a visualização de
Brigadeiro Mata Frakuzx - Esclarecimentos,
um vídeo onde explica a sua intervenção no célebre espectáculo em 2011
que concentrou nele a fúria – e os medos – de todo o regime oligárquico
angiolano.)
Para além de conhecer o ativista, é bom conhecer o rapper (goste-se ou
não de rap) e verificar como, nas letras das suas músicas, há uma
permanente denúncia do actual estado das coisas em Angola. Rodrigo
Nogueira fez no Observador uma selecção de
5 músicas de um rebelde, músicas que apresenta com algum detalhe. Sobre “Nós e os Outros”, uma canção de 2012, escreve nomeadamente:
“Humanista,
ao início explica que não há “nós” nem “outros”, que são todos
iguais. “É um apelo ao bom senso, pois um gesto vosso apenas salvaria
muita gente de bater a caçuleta” (“bater a caçuleta”=“morrer”), diz
ele logo no final da primeira estrofe, e prossegue a dizer que “Angola
tem doença” e que muita gente da mesma geração do rapper “cala o que
pensa para não comprometer os pais”, falando do medo de perder o
emprego, amigos, clientes, ganhar dinheiro, manter negócios e falar de
tudo menos do “mal” que os “devasta”.
Destaque agora para algumas opiniões que têm sido publicadas na imprensa nacional:
- Regime que nasce torto não endireita, de José Milhazes, no Observador: “A
julgar pela acusação, as autoridades angolanas estão a imitar a
“justiça” estalinista a fim de denegrir os jovens que apenas lutam por
um mundo mais justo e um destino melhor para o seu país. Faz lembrar uma
das acusações que os juízes-carrascos soviéticos faziam aos
“trotskistas” de que estes se preparavam para abrir um túnel entre
Moscovo e Londres a fim de abrir caminho à contra-revolução.”
- O esplendor, perdão, a vergonha de Portugal,
de Henrique Monteiro, no Expresso (link para assinantes): Depois de
criticar todos os partidos menos o BE por não condenarem de forma mais
veemente o comportamento das autoridades angolanas, explica-se que “Sim,
eu sei, há o interesse do dinheiro. E também sei que Luaty Beirão,
tendo dupla nacionalidade, quando está em Angola é angolano. E também li
que um diplomata português o visitou por motivos humanitários. Mas isto
é o mesmo que nada. E, na verdade, é nada. É a demissão da ideia
democrática, da ideia universalista, da ideia humanista que deveria
estar em primeiro lugar, no topo das prioridades de qualquer partido que
se diz democrático.”
- A consciência pesada sobre Luaty Beirão, de Pedro Tadeu, um colunista com posições próximas do Partido Comunista, no Diário Notícias, e que, depois de dizer que o seu coração está com os que sofrem com a greve da fome de Luaty Beirão em Angola”, considerou “Há
uma coisa, porém, que tenho muita dificuldade em fazer: dar lições de
moral a quem, através do meu país, sofreu 400 anos de colonização
violenta, com redução à escravatura de milhões de angolanos e
delapidação desenfreada de recursos... E não, não são só coisas do
passado longínquo.”
Ao fim de 30 dias de greve da fome, o tempo começa a escassear. O pior
pode acontecer. Será que o “herói insolente” de que falava Agualusa
acabará como mais um mártir da luta pela liberdade e pelos direitos
humanos? Se isso acontecer não passará despercebido, pois, como se vê
por
esta notícia do Financial Times, a sua luta já é seguida em todo o mundo.
Boa noite, bom descanso e boas leituras, mesmo que as de hoje sirvam
mais para alertar consciências do que para ajudar a conciliar o sono.
Até amanhã.
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