Há coisas que achamos que nunca vão mudar. Mas às vezes mudam. De facto, como Galileo Galilei desabafou depois de ter sido vergado pela Inquisição, o mundo às vezes move-se. Até onde isso parece impossível. Neste caso, permitindo-nos ver a Justiça atacar o coração de uma organização que todos sabiam marcada pela corrupção mas que parecia intocável, a FIFA.
Vale a pena perceber que tipo de organização é esta, e uma excelente descrição foi a que encontrei na
The Atlantic. A citação é longa, mas vale a pena:
Imagine this: A shadowy multinational syndicate, sprawling across national borders but keeping its business quiet. Founded in the early 20th century, it has survived a tumultuous century, gradually expanding its power. It cuts deals with national governments and corporations alike, and has a hand in a range of businesses. Some are legitimate; others are suspected of beings little more than protection rackets or vehicles for kickbacks. Nepotism is rampant. Even though it’s been widely rumored to be a criminal enterprise for years, it has used its clout to cow the justice system into leaving it alone. It has branches spread across the globe, arranged in a n elaborate hierarchical system. Its top official, both reviled and feared and demanding complete fealty, is sometimes referred to as the godfather. This organization isn’t the Mafia. It’s FIFA, the international governing body for soccer. Bem, a introdução está feita, e a actualidade é conhecida: graças à actuação de um tribunal de Nova Iorque, a polícia deteve ontem, em Zurique, sete dos principais responsáveis da FIFA. Mas não – ou ainda não – Joseph Blatter, o seu todo-poderoso presidente. Para facilitar a vida aos leitores do Macroscópio, nada melhor do que começar pelo Explicador que o Observador tem vindo a actualizar sempre que há novos desenvolvimentos:
Crise na FIFA. O que sabemos até agora. Por exemplo:
Então e Joseph Blatter, safou-se? Para já sim: safou-se de ser investigado, mas não de ser ouvido pelas autoridades. Nem o presidente da FIFA nem Jérôme Valcke, secretário-geral da entidade, foram detidos. O segundo ainda não proferiu qualquer palavras sobre o caso, enquanto Joseph Blatter apenas falou a 28 de maio, na cerimónia inaugural do congresso da FIFA,
dizendo: “Sei que muitos me consideram responsável, [mas] não posso controlar toda a gente”.
Independentemente dos desenvolvimentos, há uma pergunta que deverá ter assaltado todos leitores: mas por que motivo teve de ser a Justiça de um Estado onde o futebol nem sequer é o desporto mais popular, os Estados Unidos, a agir? É uma pergunta que hoje ocupou muito espaço em numerosos jornais de todo o mundo. Alguns exemplos:
- Primeiro, a quase surpresa do New York Times, o jornal que tinha repórteres no hotel de Zurique à espera das prisões, sublinhada no editorial, FIFA’s Corruption Stains World Soccer: “The surprise of the day was not only the arrests and the investigations, but also that Washington would take such aggressive action against officials of a sport that is notably less popular in the United States than elsewhere in the world. In fact, the American indictments were largely the fruit of an investigation into large-scale bribery and kickbacks in the organization of tournaments by C oncacaf, the FIFA-affiliated governing body of soccer in North and Central America and the Caribbean, which has its headquarters in Miami. Four officials have pleaded guilty, and one of the four has been cooperating with investigators.”
- No Financial Times, no editorial intitulado Fifa feels the long arm of American justice - At last, someone is holding the world’s football body to account: “Faced with mounting evidence of bribery, Mr Blatter and Fifa could have chosen the path of reform. But they resisted at every turn, refusing to investigate bribery scandals against top executives and last year suppressing a report by an American lawyer, Michael Garcia, into the World Cup bidding process. Self-regulation having comprehensively failed, it is to be celebrated that the US justice department has now taken up the cudgels.”
- O mesmo jornal, num texto de John Gapper, ia mesmo mais longe: America is the best referee to discipline Fifa. Uma tese assim justificada: “The tradition of US law enforcers and courts reaching overseas to get their men and women often irritates. Yet in Fifa’s case, and in its broader crackdowns on corruption, the US is correct. When global organisations become havens for bribery and kickbacks — unlike Major League Baseball — they cannot be left to fester simply because enforcing justice is too hard.”
- Para a intervenção da Justiça americana foi fundamental a colaboração de um dos acusados, Chuck Blazer, o Mr. 10% que tramou a FIFA, como titulámos no Observador. Alguém que levava um estilo de vida tão sumptuoso que tinha um apartamento alugado num dos prédios de maior prestígio de Nova Iorque, por seis mil dólares por mês, apenas para guardar os seus gatos. Contudo, como notava Jason Gay no Wall Street Journal, “A cat apartment would be funny if this chain of corruption didn’t also come with a terrible human cost. As the business of international soccer grew at an exponential rate, the U.S. Justice Department charged in a staggering indictment announced Wednesday, soccer’s leadership preyed upon hosts and sponsors willing to do whatever it took to claim a piece of the action. Sometimes it meant payoffs for decision makers who controlled the game’s biggest stages. Money intended to grow the game was instead diverted to grow the swollen portfoli os of soccer executives. Meanwhile, the same broken system also encouraged host nations to spend billions on stadiums and infrastructure with zero assurance of financial return—and, in the case of workers tasked with Qatar’s nonsensical 2022 World Cup, it endangered the lives of workers asked to hammer a sporting folly to completion.”
Antes de passar a mais algumas análises e textos de opinião, deixem-me indicar mais dois trabalhos que ajudam a perceber o que se está a passar e são, de alguma forma, complementares ao Explicador do Observador. O primeiro é do site norte-americano Vox,
FIFA's huge corruption and bribery scandal, explained. Aí se explica, por exemplo, porque é que a FIFA
essentially operates with impunity: “
The fundamental problem isn't Blatter, Havelange, or any other specific FIFA official. It's the fact that FIFA falls within a legal gray area: it's not a business, not a governmental organization, and not a conventional NGO.” O segundo é o conjunto de pequenas fichas preparadas pelo diário espanhol ABC onde se explica
¿Quién es quién en la operación de corrupción contra la FIFA? É interessante notar como tantos são de países da América Latina e do Caribe e como quase se ete rnizavam há muito nos seus lugares.
Este é, de resto, um dos problemas. Como se escrevia no El Pais, em
Raíces corruptas. “
la renovación de la FIFA será imposible si no se actúa sobre la raíz, que son las federaciones nacionales. En este nivel las presidencias se eternizan, casi siempre como consecuencia de compensaciones, intercambios de favores o intereses comunes entre los clubes y quienes los representan. Loretta Lynch y el FBI han hecho su trabajo en la superestructura de la FIFA; las autoridades estatales tendrían que hacer lo mismo en los niveles de las federaciones nacionales.” Ora actuar sobre a raiz é algo que dificilmente acontecerá, razão pela qual já ontem Simon Kuper, j ornalista do Financial Times com vários livros editados sobre futebol, se mostrava muito pessimista em
Fifa president Sepp Blatter plays a long game. Eis como justificava esse pessimismo: “
Mr Blatter may well keep sailing on. He remains popular among the 209 national football associations. He may let Friday’s election for Fifa president go ahead, confident that the associations will give him a fifth term as president. Then he could keep blocking reform. And Fifa has little need to be corrupt. Its income from 2011-14 was $5.7bn, with far lower expenditures. It can perfectly legally sit on its funds, paying executives big undisclosed salaries, handing out occasional “bonuses” to national football associations to keep them loyal.” É por isso que é muito interessan te ler uma reportagem do The Guardian onde este diário britânico expõe os métodos da FIFA:
How Sepp Blatter won the hearts and minds of Africa to ride out Fifa storms. Aí se explicava que “
The support Sepp Blatter enjoys from football associations across the developing world has been bolstered by his Goal project, which delivers millions of dollars to improve facilities. A visit to Zambia underlines how it has helped to keep him in power”. É um poder contra o qual nenhum dos adversários que tentaram disputar-lhe a liderança da FIFA, como Luís Figo, consegue efectivamente contrariar. Depois de explicar como o mecanismo funcionava na Zambia, o jornal concluía com uma esclarecedora citação de um responsável da federaçã ;o desse país:
“Thanks to the Fifa project, the FA of Zambia have their own office and don’t need to pay rent: that saves a lot of money. What you are seeing in Zambia is the same as you will find in Lesotho. What you will find in Lesotho, you will also find in Malawi. No other president has brought the World Cup to Africa. You could say he did it for expediency, but he still did it.” De facto, como escrevia hoje Jorge Almeida Fernandes no Público, em
Os intocáveis de Zurique, “
A cúpula da FIFA tem um método simples de se perpetuar no poder. Com alguns milhões de dólares assegura os votos das federações dos países pobres. Esta forma de comprar votos não é um expediente, é o pró prio coração do “sistema FIFA”. Mais, como notou André Veríssimo no Jornal de Negócios, em
A falta de "fair play" de Sepp Blatter, afastá-lo “
seria terapêutico, mas não a cura para a FIFA. É preciso mudar a cultura. Alterar a forma de governo, limitando mandatos, incluindo independentes. É preciso exigir uma muito maior transparência, numa organização pouco dada ao escrutínio. É imprescindível que haja pressão dos patrocinadores, grandes marcas multinacionais, rápidas a exigir um comportamento ético, para limpar a imagem, mas reticentes em renunciar os milionários contratos.” Mas se isso não acontecer2C será que vamos ficar eternamente dependentes do que a Justiça americana conseguir provar? Há quem ache que não. Há quem defenda que os governos podem actuar. Dar o exemplo. Ou, se preferirem, seguirem os bons exemplos. É o que fez Johan Hufnagel no Liberation, em
Courroux: “
Quand les dérives mafieuses d’une institution aussi puissante que la Fifa sont mises au jour, les politiques ne doivent pas rester silencieux en espérant qu’on leur concède l’organisation d’un événement. Certains pays nordiques ont ainsi tourné le dos au Comité international olympique, lui laissant organiser les Jeux dans des démocraties aussi exemplaires que la Russie ou la Chine. C’est la voie de la transparence et de l&r squo;éthique. Faute de quoi, on est forcément complice.” A verdade, contudo, é que não somos todos nórdicos – nem nos hábitos políticos, nem nos hábitos morais. Pelo que Blatter, aparentemente impertubável, vai mesmo ser reeleito amanhã a não ser que ocorra um cataclismo. Ele deixou isso bem claro hoje, em conferência de imprensa, onde disse, como já referi, que não podia “
controlar toda a gente"…
Curiosa declaração quando há muito que não se fala senão do a mbiente de podridão da FIFA. Só a título de exemplo, e recordatório, deixo aqui um
vídeo de John Oliver, no Last Week Tonight, já com mais de um ano e 10 milhões de visualizações, onde ele compara a FIFA a uma religião - porque tem um líder infalível, porque força países em desenvolvimento a gastar milhões de dólares que não têm, porque as suas decisões provocam milhares de mortos no Médio Oriente (Qatar).
É um toque final de humor, esperando que tanto mau ambiente não lhe estrague nem o seu descanso, nem as suas leituras, porque e despeço-me até amanhã. Depois irei fazer um intervalo de uma semana, que bem m ereço.