sexta-feira, 29 de julho de 2016

OBSERVADOR


Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Se a tradição ainda é o que era, por estes dias grande parte do país rumará ao sul, outra parte demandará as terras onde tem as suas raízes familiares, pois Agosto ainda é Agosto. O Macroscópio ainda não vai de férias, e certo é que esta última semana de Julho voltou a ser intensa, com o drama das sanções e do orçamento no plano interno, um novo atentado em França e o congresso democrata nos Estados Unidos, pelo que temas não faltam – para hoje e para outras oportunidades. Por isso, mesmo com incursões por outros territórios, vou regressar ao terror islâmico.

Devo dizer que o faço em parte porque tenho para vos referir um trabalho jornalístico daqueles que muito raramente se encontram, e que só estão ao alcance de grandes órgãos de informação. Refiro-me a The Human Toll of Terror, um levantamento realizado pelo New York Times sobre quem eram as 247 vítimas de oito ataques terroristas ocorridos em vários continentes no espaço de apenas duas semanas (ver a imagem). O artigo 2 Weeks, 8 Terror Attacks, 247 Victims: How We Learned Their Stories introduz-nos a esse levantamento, que recorda um outro trabalho excepcional do mesmo jornal: a identificação de cada um das vítimas dos ataques de 11 de Setembro de 2001, com uma pequena ficha biográfica de cada um. Quem estuda as grandes tragédias humanas sabe que elas só são verdadeiramente compreendidas quando colocamos um rosto e um nome nas suas vítimas, evitando assim a frieza de um número que a certa altura é só estatística. Não por acaso os grandes museus do Holocausto – como o Yad Vashem de Jerusálem – têm como preocupação mostrar rostos e contar histórias pessoais. É isto que também acontece neste magnífico trabalho que enobrece o jornalismo. É assim que ficamos a saber, por exemplo, que “Families were decimated. In Nigeria, a mother was killed along with her son and two daughters; another woman died alongside her husband, son, mother, niece and nephew. At the Lahore park, 10 relatives, all gone, including Faiz Ahmed Chandio, a clerk in the government’s irrigation department who loved to cook rice with chicken gravy, and three of his six children: Shiraz, 6; Samina, 5; and Sadaf, 5 months.” Ou ainda:
The snapshots we collected show the moments that make up a life. A bride in her gown, sitting on the floor and eating a snack. A soldier, dapper in his dress uniform. Graduates in cap and gown on their big day. A man on horseback, a man strumming a guitar, a man walking a lonely country road surrounded by wildflowers. Reading a book or drinking beer, celebrating a major life event or enjoying a typical family dinner. They were killed in the moments that might have made the next set of snapshots.”

Rui Ramos, no texto que escreve hoje no Observador, cita este texto, e todo o trabalho de investigação que o sustenta, para defender que Esta é uma guerra que podemos perder. Porquê? Porque “Não há palavras para essas tragédias. Mas os jihadistas não querem matar só pessoas. Querem também matar sociedades. E é preciso não ter ilusões: as sociedades também morrem. Esta é uma guerra, como tem dito o Papa Francisco. Mas uma guerra é sempre uma coisa que se pode perder.”

Houve mais reflexões no Observador sobre o significado e alcance dos mais recentes atentados. Helena Matos, por exemplo, escreveu A monomania terrorista, um texto onde contraria a ideia de que os terroristas são, por regra, doentes psiquiátricos. Escreve ela: “não há dia, em que perante mais um atentado, não sejamos logo informados que o autor dos esfaqueamentos era um doente psiquiátrico ou, pasme-se, que tinha ido a consultas de Psiquiatria. Por este critério os potenciais terroristas são neste momento de milhões. Mas isso não parece causar perplexidade aos descobridores desta espécie de monomania terrorista.”

Eu próprio também escrevi um texto onde procurei colocar algumas questões sobre as razões pelas quais Este mundo não é nada como tínhamos imaginado. Sem ter a veleidade de propor leituras simples para as evoluções muito complexas, e imprevisíveis, dos dias que vivemos, defendi a ideia de que “O multiculturalismo falhou porque desistiu da centralidade dos nossos valores como base do nosso modo de vida. O laicismo também falhou porque ignorou que a modernidade não é apenas filha do Iluminismo, é também herdeira da tradição do cristianismo, e que isso é válido mesmo para os ateus.”

Ora é precisamente este um dos temas que os franceses debatem nestes dias traumáticos, pelo que vos chamo a atenção para dois textos que abordam precisamente a forma como a laicidade deve ser encarada pela República. O primeiro é uma entrevista do Le Figaro com o historiador Guylain Chevrier, L'urgence de la laïcité face au projet de société de l'islam politique, uma entrevista em que este é desafiado a responder a uma intervenção de um imã de Nice, Abdelkader Sadouni, onde este defendia que a laicidade francesa é que era responsável pelos atentados. Chevrier contraria veementemente este ponto de vista, sublinhando, entre outras coisas, que “L'islam n'est pas qu'une croyance, c'est un projet de société. Voilà pourquoi la foi, pour les musulmans qui pratiquent leur religion dans cet état d'esprit, est ainsi supérieure à nos lois et qu'ils les disputent autant. Voilà ce qui commence à sopposer vraiment à la société française, à la République. On a longtemps cru que l'intégration n'était qu'une question de tolérance, de bienveillance, on commence à voir que l'on s'est trompé lourdement, car on n'avait pas compris de quoi il s'agissait.”

Já no Le Point encontrámos um texto escrito por um padre, Christian Vénard, com um título provocador: Tuer un prêtre, est-ce profaner la République ? Destacando o que sentiu ser uma inflexão no discurso do Presidente François Hollande – “vous avez eu le courage de vous exprimer au nom de tous les Français en disant : Tuer un prêtre, c'est profaner la République.” – este religioso defende a necessidade de reconciliar os franceses com a sua História, e também com o catolicismo: “Monsieur le président de la République, à l'aune de cette phrase historique que vous avez prononcée hier, vous pourriez devenir, vous, socialiste, dont on dit que les questions religieuses ne sont pas celles qui vous passionnent le plus, l'homme d'État qui aura réussi non seulement à engager avec courage et abnégation la France dans le combat guerrier contre l'État islamique, mais plus encore, face à la barbarie islamiste, à réconcilier la France avec elle-même, c'est-à-dire avec toute son histoire bimillénaire."

Mas sobre este pano de fundo há também o debate sobre o que, na Europa, em particular em França e na Alemanha, estamos a fazer para nos defender. Um especialista em história militar, Max Boot, escreve na Commentary precisamente sobre The Gaps in Europe’s Terror War. E nota: “The gaps are obvious when one of the priest-killers in France had been detained for 10 months after twice trying to travel to Syria and then had been confined to partial home detention. He was supposed to wear an electronic monitor and only go out during certain hours of the day. Unfortunately he chose one of those hours to murder Rev. Hamel. (…)  For all of President Hollande’s talk of going to “war” against ISIS following the attacks in Paris, France still has a long way to go in its response.”

Já no Financial Times Jonathan Fenby (autor de ‘The History of Modern France’) procura explicar Why France is the jihadis’ prime western target. Para ele as explicações estão mais no nível de segregação que a França foi permitindo que se instalasse nos subúrbios das grandes cidades: “There is also a more longstanding reason why such factors have come into play so powerfully in France. Twenty years ago, I spent time on some of the suburban housing estates that encircle Paris. The alienation — captured in Mathieu Kassovitz’s seminal 1995 film, La Haine — of the young people who lived on these estates, many of them immigrants or the children of immigrants, was striking even then. It has only intensified since as high levels of unemployment and crime have dogged the banlieues.”

Mas deixemos agora este tema e, por não termos esquecido que estamos quase a entrar em Agosto, recuperemos outras leituras que serão mais próprias de um tempo onde, mesmo vivendo neste mundo perigoso, precisamos de descontrair com boas histórias bem contadas. Por isso mesmo começo por um magnífico texto de Bruno Vieira Amaral publicado como especial do Observador, Faustino Cavaco. A fuga da prisão que parou o país. Nesse texto recordam-se as circunstâncias da fuga, a 28 de Julho de 1986, de seis perigosos reclusos da cadeia de Pinheiro da Cruz, a vinte quilómetros de Grândola, deixando para trás três guardas prisionais mortos e outros dois feridos com alguma gravidade. Os mais velhos talvez se recordem, os mais porventura nunca ouviram falar, mas trata-se de uma verdadeira história de far-west mas com palco nos nossos Alentejo e Algarve. Até porque, como escreve o autor, a vida de Faustino Cavaco dava dois filmes: “A vida de Faustino Cavaco até à fuga de Pinheiro da Cruz pode dividir-se em duas partes: a parte do crime, uma espécie de “Tudo Bons Rapazes” à algarvia, e a parte da infância, um drama neo-realista.” Sendo que depois da fuga e da recaptura, e dos anos passados na prisão, Faustino Cavaco acabou a criar caracóis e a administrar casas de alterne. Como vê, há neste trabalho muito que ler, pois muito foi recordado e contado.

Num registo completamente diferente, referência para outro especial do Observador, este da historiadora Fátima Bonifácio: Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia. Prepare-se para um texto polémico sobre várias controvérsias nacionais, dos brasões da Praça do Império em Lisboa ao papel da CPLP. Pequeno aperitivo: “A principal responsabilidade pela trágica descolonização foi o PREC, com que tantos e tantos, incluindo eu própria, pactuaram. Mais do que pactuaram: fomentaram. Uns por cegueira e ignorância; outros por estouvado entusiasmo juvenil; outros ainda por cálculo perverso.”



A terminar, e para irem bem dispostos para o fim-de-semana, deixo-vos um texto onde se mostra que ter falta de memória pode ter as suas vantagens – e grandes. Saiu no Wall Street Journal e chama-se The Value of a Flawed Memory. Citando vários estudos científicos recentes, defende-se que, por exemplo, “the same capacities that cause us to rewrite or make up memories can be useful, enabling us to imagine the future and make creative associations among unrelated facts. Remembering past events and imagining possible future happenings engage the same regions of the brain.”

E que aqui me fico por hoje, desejando aos que partem um “querido mês de Agosto” que regressem com boas memórias, e a todos os demais que tenham o melhor dos fins-de-semana. Até segunda.


 
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