Macroscópio – Do nosso Orçamento à eternidade de Shakespeare
Imagino que a maioria dos leitores do Macroscópio não tenha tido oportunidade, nem paciência, para seguir os debates na Assembleia da República sobre o Orçamento de Estado. Por terem outras ocupações e, porventura, igualmente por fastio. Conhecidas as posições e os argumentos dos partidos, o registo foi mais vezes o de comícios cruzados do que de esclarecimento (pode confirmá-lo nos relatos que fizemos ao minuto, ontem e hoje). Não vou por isso focar-me hoje na análise do que se passou, nem sequer ficar apenas por referências ao debate orçamental, o qual ainda tem algum tempo pela frente, com o trabalho que terá de ser feito na especialidade. Fico-me apenas por três referências, e breves.
A primeira vai para a análise mais completa do OE 2016 que, num registo jornalístico, vi produzida pela imprensa portuguesa: o trabalho de Pedro Romano Que Orçamento é este? E no fim quem fica a ganhar? É um especial do Observador dividido em oito pontos – Ainda há vida para além do défice?; Virar a página da austeridade; Baralhar e dar de novo: para onde vão 2.000 milhões de euros?; Quanto mudou o Orçamento após Bruxelas?; O cenário macroeconómico é credível?; Afinal os impostos sobem ou não?; Quem ganha e quem perde? e O que resta do programa do PS. A análise é muito rigorosa e se nalguns pontos se procura colocar uma pedra sobre alguns debates excessivamente politizados – não, não se “vira a página da austeridade”, mas também não, não haverá mais carga fiscal –, noutros procura-se ir mais longe. Procurando saber, por exemplo, quem mais ganha e quem mais perde com a redistribuição do esforço orçamental. Eis uma síntese da conclusão desse ponto:
O Orçamento dedica claramente mais esforço financeiro à metade ‘de cima’ das famílias portuguesas. Isto acontece porque as medidas com maior peso se destinam a repor salários na função pública, onde a remuneração média é mais elevada do que no sector privado, e a aliviar a sobretaxa – que, por definição, só abrange quem paga IRS. As famílias com menos recursos recebem “apenas” 200 milhões de euros, à conta da actualização das pensões baixas e das mudanças no Rendimento Social de Inserção, Complemento Solidário para Idosos e Abono de Família. Mas a este valor há ainda que deduzir um corte em despesas de Acção Social, que não está ainda concretizado no Orçamento mas já foi prometido a Bruxelas.
Henrique Monteiro fez no Expresso algumas contas mais simples, até porque partiu do seu exemplo pessoal para ver o que tinha a ganhar ou a perder – e concluiu que, mesmo sendo casado com uma funcionária pública, colocando os números de ambos no calculador online desse jornal o ganho, ao fim de ano, será de cerca de 20 euros. Mas vejamos mais em detalhe as contas que faz em O ridículo fim da ‘austeridade’ (paywall): “O curioso neste Orçamento, segundo se percebe daquilo que é possível simular, é que os maiores beneficiários não são os mais pobres (esses, ainda que não paguem IRS, passam a pagar impostos nos combustíveis maiores e iguais aos ricos e não podem frequentar restaurantes por norma), mas sim os remunerados na camada média-alta. Um casal com 8000 euros mês não ganha nem perde nada. Se ganhar 4000 euros, terá, realmente, um aumento, mas apenas de 10 euros por mês. E se tiver 2000 euros de rendimentos ganha mais 15 euros por mês. Se for 1000 euros serão mais seis euros por mês. Os exemplos são para casados com dois titulares e um dependente. Agora, repare- se: se o vencimento do casal for 600 euros, o aumento ao fim do ano é de 14 euros – um euro por mês.”
A terceira referência vai para um documento da Comissão Europeia, mais precisamente a acta da reunião do Colégio de Comissários que deu luz verde ao orçamento português e que foi agora colocada online. A Lusa fez uma síntese que o Observadordesenvolveu, sendo que considero útil destacar a seguinte passagem, onde se reflecte a posição de alguns comissários (tradução livre para português): “Algumas dúvidas foram, contudo, expressadas acerca da exequibilidade dos esforços anunciados por Portugal e dos compromissos que foram feitos nos últimos dias. Em especial houve alguma deceção em torno do facto de que muitas reformas estruturais do governo anterior, que estavam a começar a produzir resultados, estavam a ser colocadas em causa. Alguns membros avisaram que o novo governo português estaria a colocar em perigo, de forma grave, a estabilidade económica a médio-longo prazo do país.”
O documento recorda que haverá nova avaliação em Abril, nessa altura já com alguns números da evolução da economia portuguesa, assim como da execução orçamental. Até lá muita água passará debaixo das pontes – tal como a que continua a passar quando pensamos no referendo sobre o Brexit, o tema do Macroscópio de ontem. Regresso a ele para acrescentar mais duas referências:
- A primeira é um trabalho do Financial Times, com um título a evocar um famoso livro de Keynes: What are the economic consequences of Brexit? Trata-se de um trabalho típico daquele diário económico, algo que é assumido logo de entrada com vantagem de nos permitir perceber que se trata de uma aproximação ao debate realizada pelas lentes de economistas, sendo que estes “are generally wary of transitions, fearing that heightened uncertainty over Britain’s relationships with other countries will damage confidence and investment, at least for a few years if Britain were to leave the EU. They are also more likely than many politicians to play down the importance of sovereignty, maintaining there will be a trade-off between sovereignty and the best decision-making authority.”
- A segunda referência é para o texto de Rui Ramos aqui no Observador, O referendo britânico tem a ver connosco. Nele o autor notou que “Desde o século XIX que a prosperidade na Europa foi tanto maior, quanto maior foi a livre circulação de pessoas, capitais e mercadorias. O problema que a UE recentemente inventou foi o de fazer depender a livre circulação de uma espécie de Estado europeu. A batalha de Cameron é para separar uma coisa e outra. Costuma dizer-se: a Europa tem de ser mais do que um grande mercado. A questão britânica é: a Europa tem de ser mais do que um grande Estado. Uma vitória de Cameron demonstrará essa possibilidade.”
Vou terminar por hoje com três textos que representam leituras um pouco mais desligadas da actualidade, mas ambos bem interessantes. O primeiro saiu na The Atlantic e chama-se What Made Ancient Athens a City of Genius?, onde se procura saber as razões por que “The tiny, dirty Greek city-state produced more brilliant minds—from Socrates to Aristotle—than any other place the world before or since.” É, reconhecerão, uma pergunta desafiante, e ainda mais se pensarmos na Atenas de hoje. Uma das respostas possíveis já tem alguns anos: “In 1944, an anthropologist named Alfred Kroeber theorized that culture, not genetics, explained genius clusters like Athens. He also theorized why these golden ages invariably fizzle. Every culture, he said, is like a chef in the kitchen. The more ingredients at her disposal (“cultural configurations” he called them), the greater the number of possible dishes she can whip up. Eventually, though, even the best-stocked kitchen runs dry. That is what happened to Athens. By the time of Socrates’s execution, in 399 B.C., the city’s cupboard was bare. Its “cultural configurations” had been exhausted; all it could do now was plagiarize itself.” (Este texto é um extracto do livro de Eric Weiner The Geography of Genius: A Search for the World's Most Creative Places, from Ancient Athens to Silicon Valley.)
Como devem saber, Umberto Eco morreu na passada sexta-feira e, dos muitos textos publicados, um pareceu-me mais original e desafiante: O umbigo do mundo de Umberto Eco era em Portugal, de Clara Silva, que saiu aqui no Observador onde se conta a relação do escritor com o Convento de Cristo, em Tomar: “Se eu conseguia imaginar um castelo templário, assim era Tomar”, acabaria por escrever Eco. Igualmente merecedor de referência é a peça de Bruno Vieira do Amaral, crítico literário e tradutor, O homem que inventou Dan Brown, também editada no Observador, de que destaco a seguinte passagem: “Ao dizer em diversas ocasiões (divertido, mas também chamando a atenção para os pontos de contacto entre O Pêndulo de Foucault e O Código Da Vinci) que tinha inventado Dan Brown estava a certificar a eficácia “factual” do seu livro, da ficção enquanto geradora de factos que, por sua vez, alteram a realidade. É essa a filosofia subjacente aos romances de Eco: se acreditamos numa mentira essa mentira não passa a ser verdade, mas passa a ser real, transforma-se em facto. E os factos podem ser estudados.”
Para fechar hoje com chave de ouro, um texto do grande Mario Vargas Llosa sobre esse gigante que foi Shakespeare. Saiu no El Pais, chama-se El gran teatro del mundo e procura mostrar, a propósito da passagem por Madrid de uma encenação de “Conto de Inverno” que “Todo está en Shakespeare, su época y la nuestra, lo que hay en ellas de idéntico y de diferente, la grandeza de la literatura y los milagros que el arte realiza en la vida de las gentes, así como la manera en que la vida de los humanos destila al mismo tiempo felicidad y desgracia, dolor y alegría, pasión, traición, heroísmo y vileza.”.
E por hoje é tudo. Tenham um bom descanso, resguardem-se do frio que aí vem, e reencontramo-nos amanhã.
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