Opacidade, insolvências e uma teia de empresas: quem é o empresário que recebeu os 300 mil euros da Câmara de Caminha?
Tem 37 anos e diz ser criador de “mais de 500 empresas no mundo”, muitas das quais para evitar o pagamento de impostos, e viu-se no epicentro de uma polémica que abalou o Governo, levando à demissão do braço direito do primeiro-ministro, o Secretário de Estado Adjunto, Miguel Alves. Mas entre controvérsias, insolvências e negócios obscuros, afinal quem é Ricardo Moutinho, o empresário a quem “as pessoas genericamente tratam por PhD”?
Pouco se sabe sobre o passado deste misterioso empresário que se vê envolvido em negócios que levaram o Ministério Público a acusar formalmente Miguel Alves de prevaricação de titular de cargo político, mas, segundo o próprio, o seu passado profissional passou pela “banca de investimento”.
Em entrevista ao jornal Expresso, o empresário afirma ter conhecido Miguel Alves numa “oportunidade de negócio” enquanto este era autarca. Em causa estava a construção do Centro de Exposições Transfronteiriço (CET) que tanta polémica causou, acabando por mandar abaixo o Secretário de Estado Adjunto. “Na sequência de contactos comerciais”, o então autarca da Câmara Municipal de Caminha marcou uma reunião com o empresário do Norte.
“Não fui apresentado [a Miguel Alves] por absolutamente ninguém. (…) O dr. Miguel Alves respondeu-me, confirmou a sua disponibilidade e marcámos uma reunião. E foi aí, presencialmente, nessa reunião nos Paços do Concelho, que nos conhecemos e falámos pela primeira vez.”, insistiu Ricardo Moutinho na entrevista.
Na sequência desse projeto, Moutinho propunha, através da empresa “Greenfield Endogenous”, levar a cabo um investimento no valor de oito milhões de euros para a Construção do CET. Miguel Alves, que garantiu, numa entrevista ao JN e a à TSF, ter recolhido “evidências” da “robustez económica” do promotor, acabou por adiantar 300 mil euros de rendas à empresa de Miguel Alves.
A teia de empresas
Mas consultados os relatórios das várias empresas do Ricardo Moutinho a história é outra. Quase todas sediadas na mesma morada, numa rua da baixa da cidade do Porto, a vasta teia de empresas das quais detém participação raramente apresentam resultados positivos. Conhecidas, são mais de 20, embora admita ter criado mais de 500. O propósito? “Por motivos de eficiência fiscal”, diz.
A própria sociedade utilizada para celebrar o acordo com a Câmara de Caminha foi apenas criada a 14 de fevereiro de 2020 e, com um capital social de 50 mil euros, e, como em muitas das empresas que o próprio criou, é o sócio-gerente. Poucos meses depois, a 21 de setembro de 2020, Miguel Alves aprova o projeto de construção do CET. Além disso, na ata dessa reunião camarária, consta que a empresa Green Endogenous tem investimentos na área hoteleira e aeroportos na Turquia, Rússia, embora nunca tenha estado, na verdade, ligada a qualquer projeto. “Esta estrutura foi criada de propósito para apresentar este modelo empresarial às autarquias”, admitiu ao Expresso.
O empresário teria também uma participação 50% na “Oxygen Capital, Lda”, uma empresa descrita como especializada em “atividades de consultoria para os negócios e a gestão”. Os restantes 50% pertencem ao empresário nortenho Alexandre Pinto. Com um capital social de meio milhão de euros, esta empresa foi declarada insolvente, por sentença do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, por uma alegada dívida de 709 euros.
Ricardo Moutinho detém uma participação de 33,3% na “Orago, Lda”. Fundada em 2018, apresenta-se como uma empresa de alojamento mobilado para turistas, com um capital social de 600 mil euros e resultados negativos. Só em 2018 é que a empresa registou uma entrada de dinheiro, 15 mil euros, num negócio com a Câmara Municipal de Braga.
Outra das empresas a que o nome de Ricardo Moutinho aparece associado é a “Jesper&Ricardo”, empresa de “investigação e desenvolvimento das ciências sociais e humanas” que detém 50%, juntamente com o empresário dinamarquês Jesper Carvalho Andersen. Porém, de acordo com a consultora “Dun&Bradstreet”, esta empresa “não cumpre há mais de 24 meses a obrigação legal de prestar contas” e não apresenta indícios suficientes para ser considerada ativa. O mesmo acontece com a “Moutinho&Simmons”, na qual Ricardo Moutinho aparece como sócio-gerente, com uma participação de 16,6% do capital social de 1,2 milhões de euros.
A exceção é a firma “Etapas Avulso, Lda”, da qual Moutinho possui 33.3% do capital social da empresa que explora um restaurante no centro de Setúbal. Jesper Carvalho Andersen e Américo Dias Pinheiro detêm a restante participação da “Etapas Avulso, Lda”. Ainda assim, existem 21 processos judiciais contra a empresa, quase todos no Tribunal do Trabalho de Setúbal.
Polémica do Doutoramento e o currículo falso
Em e-mails enviados à autarquia de Caminha e até num direito de resposta no jornal Caminhense assinado pelo próprio, Ricardo Moutinho utilizava o título de doutorado ou PhD, para se apresentar, mesmo não o sendo. Publicamente, o homem que diz que as pessoas o tratam “genericamente por Phd” explica que frequentou durante três anos o doutoramento na Universidade da Beira Interior, sob orientação do professor Doutor Pires Manso, acabando por não apresentar a tese de doutoramento devido “a motivos financeiros e profissionais”.
Questionado sobre o motivo pelo qual o direito de resposta veio assinado como PhD, defende-se alegando que quem lhe escreve “esse tipo de situações e formatação de papéis” nem sempre é ele e, nesse caso, não foi o próprio que formatou o seu direito de resposta.
Mas esta não é a única “imprecisão” no que às habilitações e experiência profissional de Ricardo Moutinho diz respeito. No site oficial da Câmara de Caminha, constava um documento com um currículo falso do empresário, que incluía funções como "controller na Unilever Jerónimo Martins", "analista na Vodafone Ventures, em Londres", "assessor do Ministro de Estado e das Finanças, no decurso do XXI Governo Constitucional", então chefiado por Mário Centeno, e "consultor da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC)".
O documento em questão mencionava, também, que a experiência dos acionistas da empresa Green Endogenous (da qual Ricardo Moutinho era, afinal, o único acionista) se devia a participações "no consórcio privado, responsável pela conceção, construção e exploração do Super Bock Arena, no Porto". A administração da Círculo de Cristal, empresa que gere aquele espaço, rejeita qualquer associação da Green Endogenous ao Super Bock Arena - Pavilhão Rosa Mota como "uma utilização abusiva do nome desta entidade". Alegações de que Ricardo Moutinho seria acionista maioritário do Grupo TAV Airports, proclamadas pelo próprio na Assembleia Municipal de Caminha, foram igualmente desmentidas por esta firma.
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