A Constituição da Rússia proíbe diretamente a existência de uma ideologia oficial dominante, mas a unificação ideológica já chega às escolas e às universidades e a guerra na Ucrânia destacou a Rússia entre os Estados autoritários. Entre uma “democracia imperfeita” e o “neofascismo”, afinal onde se situa a Rússia no espectro da ausência de liberdades e garantias? Os analistas ouvidos pelo Expresso explicam, desvelando as bases da política do Kremlin

Aleksandr Dugin
Aleksandr Dugin© KIRILL KUDRYAVTSEV

É através dos princípios da ideologia do Kremlin que os meios usados internamente e na Ucrânia são justificados pelo regime comprometido com os fins do “mundo russo”. A ideocracia da Rússia de hoje conjuga reaproveitamento de velhos saberes, exaltação do passado histórico, culto da personalidade e pensamentos emergentes. Pensadores e filósofos ultraconservadores têm o hábito de visitar o Kremlin e mantêm reuniões privadas com as autoridades do Governo de Putin. Os últimos meses, com uma guerra em curso, não foram exceção. Alguns visitantes têm influenciado o Governo e contribuem para o mapa conceptual do Kremlin.

Que papel desempenha Aleksandr Dugin, conhecido como o “cérebro de Putin”?

figura de Aleksandr Dugin esteve sempre envolta em grande controvérsia. Os analistas que se dedicam a estudar a Rússia divergem quanto ao grau de influência do filósofo político eurasianista, que é um dos ideólogos mais proeminentes do chamado “mundo russo”. A ideia que começou por definir a solidariedade dos russos no estrangeiro com os seus compatriotas que se mantinham no país de origem evoluiu para um apelo à rejeição total dos valores “decadentes” do Ocidente. A promoção da ideia da União Eurasiática - órgão geopolítico que absorveria os países que em tempos formaram a URSS - por Dugin remonta a 2000. O objetivo da união seria uma oposição clara ao Ocidente e a tudo o que aquele polo significa. O filósofo francês Bernard-Henri Lévy chegou a considerar que as ideias de Dugin são essencialmente fascistas.

Uma fonte próxima da liderança do partido Rússia Unida, ouvida pelo site de notícias russo “Meduza”garante que Aleksandr Dugin chegou a trabalhar com o Kremlin algumas vezes, nomeadamente pouco antes de 2010, quando o gabinete presidencial era chefiado por Vladislav Surkov [um estratega russo considerado “o feiticeiro” de Putin por aconselhar o Presidente ao longo de mais de 20 anos e que foi um dos ideólogos da anexação da Crimeia]. As ligações de Dugin com o Kremlin não são consensuais, e mesmo aqueles que as defendem acreditam que os contactos não eram regulares. No entanto, analistas ouvidos pelo Expresso admitem que a morte da filha do ultraconservador russo, Darya Dugina, foi um divisor de águas. A mensagem de Dugin estará a imiscuir-se cada vez mais na ideologia nacional, e as palavras de Putin confundir-se-ão com o discurso do filósofo.

Andrei Kolesnikov, jornalista russo que já foi editor geral do “Novaya Gazeta” e investigador do think tank Fundo Carnegie para a Paz Internacional que estuda a política russa, acredita que há razões para acreditar que Aleksandr Dugin se aproximou mais do Kremlin após a morte de Darya Dugina. “Ele apareceu num evento público, e, na retórica ideológica dos líderes, o seu estilo pathos [de paixão e sofrimento] tornou-se perceptível." O jornalista acredita que até ao momento o papel de Dugin tinha sido sobrevalorizado no Ocidente, mas a sua influência será crescente. “Até agora os contactos que mantém são com o Departamento de Políticas do Kremlin. Cabe a esse departamento decidir quais das suas ideias usar. Mais do que nas ideias, a influência revela-se no tom e no estilo, que são importantes.” Mais especificamente, "o pathos e a tradução do discurso para o plano quase religioso da luta entre as forças do bem e Satanás”.

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