Bom dia,
É oficial: o maior país de toda a América Latina e a maior nação de língua portuguesa do mundo será governado por um capitão de extrema-direita que apregoou na campanha um discurso de apelo ao ódio,
racista, misógino e homofóbico,
abertamente saudoso da ditadura militar e
declaradamente defensor da tortura. Não é por acaso que a Amnistia Internacional vê "um
enorme risco" na eleição de Jair Messias Bolsonaro, de 63 anos, que ontem se tornou o novo presidente do Brasil.
É o primeiro militar a chegar ao poder pelo voto direto desde 1945. Bolsonaro conseguiu uma
vitória folgada na segunda volta das Presidenciais, conquistando 55,13% dos votos, contra 44,87% de Fernando Haddad, que concorreu pelo PT. Entre a comunidade brasileira em Portugal, a diferença foi
ainda maior.
Dito de outra forma, quase 57,8 milhões de eleitores brasileiros votaram no capitão na reforma, mais 10,7 milhões do que conseguiu Haddad.
Os votos brancos e nulos bateram recordes, atingindo o
valor mais alto desde a restauração da democracia no país. No total, cerca de 11 milhões de brasileiros – mais do que a população de Portugal inteiro - foram às urnas mas não escolheram nenhum dos candidatos. O número é superior à diferença de votos que separou Bolsonaro de Haddad.
No
discurso de vitória, Bolsonaro deixou de lado a retórica extremista e raivosa e vestiu a pele de cordeiro, prometendo um "
Governo constitucional e democrático" que terá como "princípio fundamental" a
liberdade - "liberdade de andar na rua, liberdade política e religiosa, de formar e ter opinião". Jurou
pacificar o Brasil, que saiu desta campanha eleitoral mais polarizado do que nunca, e garantiu que "não existem brasileiros do sul ou do norte" - "somos todos um só país, uma só nação democrática", proclamou. O presidente eleito assumiu-se como enviado numa missão divina e comprometeu-se a seguir "os
ensinamentos de Deus ao lado da Constituição brasileira". "O Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", rematou.
A imposição de uma forte
agenda moral de inspiração evangélica é, aliás, uma das
consequências previsíveis da eleição de Bolsonaro, assim como o
reforço dos poderes policiais, a
redução dos direitos humanos e sociais e o
ataque à proteção ambiental.Fernando Haddad, que se recusou a cumprimentar Bolsonaro por não considerar o adversário civilizado,
apelou aos brasileirospara
não terem medo e pediu
coragem para o que vai seguir nos próximos quatro anos.
As eleições mais polémicas da história recente do Brasil deixaram o
país partido ao meio,
dividindo famílias inteiras e abrindo feridas que serão difíceis de sarar. Logo a seguir à divulgação dos resultados registaram-se protestos em São Paulo e no Rio de Janeiro, com manifestantes anti-Bolsonaro a envolver-se em
confrontos com a polícia.
A vitória de Bolsonaro,
ultraconservador nos costumes e ultraliberal na economia, teve repercussão na imprensa de todo o mundo. O
The New York Times sublinha tratar-se do
presidente mais à direita de toda a América Latina, onde recentemente foram eleitos líderes conservadores na Argentina, Chile, Peru, Paraguai e Colômbia. O militar vem, assim, engrossar as fileiras da extrema-direita que tem estado a crescer um pouco por todo o mundo, incluindo na Europa, juntando-se, por exemplo, a
Matteo Salvini, de Itália, ou a
Viktor Orbán, da Hungria. Mas nenhum teve um discurso tão abertamente anti-democrático como Bolsonaro – pelo menos até ontem à noite.
Chefes de Estado e de Governo de todo o mundo, de
Donald Trump a Nicolas Maduro, cumprimentaram o novo presidente eleito do Brasil. Portugal não foi excepção.
Marcelo felicitou ontem Bolsonaro, sublinhando os
"laços de fraternidade" que unem os dois países. Também o primeiro-ministro
António Costa cumprimentou o novo presidente do Brasil, salientando a
relação bilateral "intemporal", assente numa língua comum e em "fortes laços históricos, económicos e culturais".
Resta saber que Bolsonaro governará o Brasil a partir de
2 de janeiro, quando tomar posse. Se o que ontem jurou respeitar a Constituição e a democracia ou o que na campanha ameaçou a liberdade de imprensa e prometeu
"fuzilar a petralhada" e
"banir da pátria" os adversários políticos.
Certo é que estamos perante a mais radical viragem política no Brasil desde a redemocratização do país. É um
“salto no escuro”, escreve o
Estadão: “Se há um ano alguém dissesse que Jair Bolsonaro tinha alguma chance de se eleger presidente da República, provavelmente seria ridicularizado. Até pouco tempo atrás, o ex-capitão do Exército era apenas um
candidato folclórico, desses que de tempos em tempos aparecem para causar constrangimentos nas campanhas – papel cumprido mais recentemente pelo
palhaço Tiririca, aquele que se elegeu dizendo que “pior do que está não fica”.
A
ânsia de repudiar o PT e Lula da Silvafalou mais alto do que qualquer consideração de caráter político. Infelizmente para o Brasil, adianta o jornal de São Paulo, quem se “apresentou para essa missão com sucesso não foi a oposição tradicional, organizada e responsável”, mas um “
obscuro parlamentar portador de um discurso raivoso e vazio”, que apelou aos
sentimentos mais primáriosde uma parte significativa da sociedade.
“O problema é que ninguém sabe quais são as ideias do presidente eleito, admitindo-se que ele as tem”, remata o Estadão.
Pode ser que lá na terra continue a haver “muito samba, muito choro e rock'n'roll”, mas, como cantava Chico Buarque (durante a ditadura militar), “
meu caro amigo”, a
coisa lá está preta.
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