À hora a que escrevo esta newsletter a tensão está em máximos no Brasil e gostaria de poder indicar aos meus leitores uma selecção de textos realmente útil que ajudasse a discernir o que se passa num país profundamente dividido como é hoje a grande nação sul-americana, mas prefiro esperar por mais alguma claridade para o fazer. Por isso fico-me por um tema doméstico, os resultados da política económica e orçamental de 2017, um tema que até poderia ser pacífico pois os números até pareciam perfeitos: um crescimento de 2,7%, acima das expectactivas, um défice público quase nos 0.9% (sem recapitalização da Caixa Geral de Depósitos), o mais baixo das últimas décadas. Mas o caldo entornou-se quando se procurou “inventar” em cima destes números e estalaram logo algumas controvérsias a merecer atenção.
Passando por cima do debate sem muito sentido sobre se a operação da Caixa Geral de Depósitos deveria ir ao não ao défice, comecemos por perceber como se chegou aos bons números do défice – uma questão tão ou mais importante quanto hoje o ministro da Cultura disse que, afinal, "virámos a página da austeridade mas não virámos a página das dificuldades". Para o fazer podemos começar por ler o especial de Nuno André Martins no Observador, Quem paga a fatura deste défice tão baixo?, um texto mais descritivo onde se dá sobretudo conta de quem sofreu mais com as cativações.
Num registo mais analítico destaco a opinião de Paulo Ferreira, no Eco, Uma cartilha orçamental para totós,onde se dá, por pontos, a receita para embrulhar politica e mediaticamente “não uma alternativa à austeridade mas sim de uma austeridade alternativa”. Aqui fica a lista:
- Faz do orçamento uma arma de combate partidário. Esquece isso da estratégia a prazo
- Faz o orçamento que garante o apoio do Parlamento, não o que prevês executar
- Promete tudo o que é bom. Depois faz o que tens mesmo que fazer
- Não faças nunca um Orçamento Rectificativo. Vai rectificando mês a mês
- Aumenta os impostos indirectos que são mais discretos
- Quando os números desmentem a tua narrativa diz que são eles que estão errados
Mas há mais uma mão cheia de textos que vale a pena ler:
- Um elogio a António Costa e Mário Centeno, de Helena Garrido no Observador, onde a colunista manifesta a sua satisfação pelos resultados obtidos, mas mesmo assim deixa alguns reparos: “Estes quatro grandes números são suficientes para perceber que a redução do défice público é explicada, obviamente, pela recuperação da economia, mas também por medidas de rigor na despesa pública, o que significa uma actuação bastante pró-activa de Mário Centeno, e pela manutenção da carga fiscal, redistribuída de uma forma que não é sentida pelos contribuintes. Os fiscalistas tradicionais chamam-lhes “impostos narcotizantes” e os economistas tradicionais criticam-nos em geral por serem regressivos – ou seja, pesam mais sobre os rendimentos mais baixos do que sobre os mais altos. Mas são sem dúvida os mais eficazes, quer do ponto de vista da colecta, quer na perspectiva da gestão política dos governados – ninguém repara que se está a dar com uma mão e a tirar com a outra.”
- O orçamento de Estado de 2017 foi uma encenação, de Fernando Alexandre no jornal online Eco, uma análise muito mais crítica. Primeiro porque, na sua opinião, “o ministro das Finanças não ficou aquém do défice previsto no Orçamento do Estado. O ministro das Finanças teve de ir além do que estava previsto no Orçamento, usando as cativações e reduzindo o investimento público, porque sabia que o défice podia ultrapassar o limite dos 3% do PIB. Afinal, os 0,92% eram apenas a garantia que tal não sucederia”. O método das cativações, que foi o adoptado para chegar a este resultado, também lhe deixa muitos reparos: “Os cortes não aparecem no Orçamento do Estado aprovado na Assembleia da República, mas aparecem na execução orçamental. Só que agora chamam-lhe cativações. Esta estratégia é um embuste para os portugueses e uma fonte de entropia nos serviços do Estado, os quais deixaram de saber o orçamento que têm, de facto, disponível. Isto contribui para uma má gestão dos serviços públicos e, neste caso, a responsabilidade é toda do Governo. Pelo menos, nos tempos da troika, os serviços sabiam com o que contavam e podiam tentar planear a melhor forma de fazer esses cortes, procurando formas de minimizar a disrupção dos serviços prestados”. (De Ricardo Alexandre recomendo também a entrevista que deu ao Observador sobre as opções económicas e orçamentais do Governo: "Com crescimento, não entendo não haver aumentos".)
- A anatomia do défice de 2017, de Joaquim Miranda Sarmento também no Eco é uma análise mais técnica, com o apoio de vários quadros, sendo que de entre as conclusões do autor destaco esta, até porque, como já veremos, é um tema que teve posteriores desenvolvimentos: “A redução de impostos que o governo apregoa é extremamente reduzida. Os fatores que fazem crescer a receita fiscal são cíclicos, como atrás referi, o que mostra a fragilidade desta consolidação orçamental, que não aguentará o próximo embate recessivo”.
- A vitória da TINA ou a ditadura da matemática, de Luís Aguiar-Conraria no Observador, é uma crónica num registo mais irónico, um chamada de atenção para que não há milagres em economia, pelo que aliviar a austeridade nuns sectores significou agravá-la noutros. No dizer popular falaríamos da manta curta que quando se tapa a cabeça se destapam os pés, na argumentação deste economista é a Matemática que não perdoa: “Quem não gosta de Lógica não pode gostar de Matemática, tal como quem prefere o pensamento mágico à análise objectiva dos factos não pode gostar de Economia.Os números de 2017 ajudam a dissipar quaisquer dúvidas sobre esta alquimia das Finanças Públicas que permitiu acabar com a austeridade e reduzir o défice para níveis nunca antes vistos. As pensões, os salários e as carreiras dos funcionários públicos foram (parcialmente) repostos à custa da maior carga fiscal de sempre e de níveis de investimento público baixíssimos. Tal como o Cristiano Ronaldo do futebol não viola as leis da Física, também o Cristiano Ronaldo das Finanças não viola as leis da Economia.”
- Somos todos (de) Centeno, de Pedro Santos Guerreiro no Expresso do passado sábado (paywall), é uma crónica mais política sobre a forma como o ministro das Finanças foi levando a água ao seu moinho: “Mário Centeno é um gestor do otimismo externo que refreia o otimismo interno. Conhece todos estes riscos e amarra os demais ministros a uma castidade orçamental por meios a que os ministérios não estavam habituados. As folgas servirão provavelmente para a função pública em ano de eleições. Para já, as ruturas observam-se nos serviços públicos, com visibilidade maior nos serviços de saúde e nos tetos dos hospitais.”
- O país está doente? Pois, mas as contas estão saudáveis, de João Cândido da Silva de novo no Observador, é também um texto com um forte componente de apreciação política: “O Governo não fez qualquer reforma do Estado, nem fará, por falta de vontade ou pelos constrangimentos inevitáveis que estão associados ao quadro de apoios políticos que António Costa escolheu para poder instalar-se em São Bento. Mas Centeno não pode continuar a proceder a cortes cegos na despesa corrente através da arma das cativações sem prejudicar gravemente o funcionamento dos serviços públicos ou a apertar o investimento público ao ponto de comprometer a qualidade das infraestruturas do país. Contas saudáveis e um país moribundo não são um desígnio brilhante.”
Mas se até aqui a generalidade das análises partiam dos números finais do INE para regressar a considerações que há muito vêm a ser feitas – nomeadamente as relativas às cativações, ao investimento público e à aposta nos impostos indirectos –, houve um dado nos números finais divulgados pela entidade estatística nacional que acabou por concentrar as atenções até porque, de alguma forma, representou uma surpresa: o da subida da carga fiscal para os valores mais elevados desde que há registo, ou seja a Carga fiscal atingiu o valor mais alto em pelo menos 22 anos – algo também bem evidente no gráfico acima, publicado no Expresso. Acontece que, primeiro numa entrevista de Mário Centeno ao Expressoresolveu desvalorizar esse número mais negativo, defendendo que “A carga fiscal é um conceito muito antigo que sobrevive por ser útil, mas está desfasado da realidade.” Depois, no debate quinzenal desta semana, António Costa regressou a essa linha argumentativa, afirmando no parlamento, numa resposta a Assunção Cristas, que “A senhora deputada confunde as coisas. Se tiver aliás em conta o aumento das receitas sem contribuições para a SS verificará que a carga fiscal diminui continuadamente desde 2015 até agora. A diferença do aumento da receita explica-se essencialmente com algo positivo, chamado criação de emprego”.
O Observador considerou que esta afirmação precisava de passar pela prova dos factos, pelo que o Nuno André Martins elaborou um Fact Check sobre se, como dissera o primeiro-ministro, A carga fiscal diminui continuadamente desde 2015?.O resultado foi um rotundo “não”: “Quando António Costa diz que a carga fiscal tem vindo a diminuir continuadamente desde 2015 está errado. O indicador revela uma subida, como os números do INE o demonstram e o próprio Governo já o admitia no relatório do Orçamento do Estado para 2018.”
Ainda antes de Costa falar no Parlamento, e tendo como ponto de partida a já referida entrevista do ministro ao Expresso, Ricardo Arroja escrevera no Eco sobre o que considerou ser O cisma de Centeno. É um texto onde recorda o que significa o conceito de “carga fiscal” e detalha a evolução dos diferentes impostos e contribuições, notando por exemplo que “A aposta nos impostos indirectos tem constituído a coluna dorsal da estratégia fiscal deste Governo: em dois anos de governação PS, o PIB nominal cresceu 7%, as contribuições sociais 8%, os impostos directos 0,5%, e os impostos indirectos 15%. Não está em causa a estratégia fiscal do Governo que, assentando nos impostos indirectos, é a meu ver a boa estratégia. O que está em causa é apenas explicar por que razão aumentou a carga fiscal em percentagem do PIB, num período em que também o PIB cresceu com alguma expressão”
Num registo mais político quero também destacar a crónica de João Miguel Tavares no Público, A carga, o esforço e um artista chamado Centeno,uma crónica onde a ironia, como é habitual, é uma arma: “O que é exactamente o “esforço fiscal”, afinal? Não interessa, desde que diminua. Se o INE não contabiliza o “esforço fiscal”, contabilizasse. E se um dia, por azar, o novo “esforço fiscal” também calhar subir, o ministro das Finanças criará de imediato o conceito de “entusiasmo fiscal”, de “vigor fiscal” ou de “ímpeto fiscal”, qualquer coisa que acabe em “fiscal” e que diminua face ao ano anterior. No actual estado da política nacional vale tudo, como se vê. Excepto isto: admitir que o fim da austeridade é uma das maiores aldrabices da política portuguesa.”
Para quem só tiver três minutos disponíveis e quiser uma explicação muito simples e directa do que está em causa nesta coisa de os impostos terem ou não subido em 2017, faço de juiz em causa própria e recomendo o pequeno vídeo que gravei, Não, não somos todos Mário Centeno.
E por aqui me fico hoje, a ver chover lá fora e sem saber o que se vai passar no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, onde Lula se refugiou. Tenham um bom fim-de-semana, descansem, leiam e não descurem a Matemática (até porque está na altura de entregar a declaração de IRS).
PS. Não podia acabar sem vos dizer, ou recordar, que o Observador teve o melhor mês de sempre em Março: fomos lidos por 5,4 milhões de utilizadores da internet, isto para um total de 13,4 milhões de visitas e quase 50 milhões de páginas vistas. Como podem imaginar estamos todos contentes.
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