sábado, 3 de março de 2018

OBSERVADOR

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


"Portugal assume a sua história em tudo aquilo que tem de bom e de mau e assume, nomeadamente e de forma especial, neste instante e neste memorial aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades". Assim se exprimiu Marcelo Rebelo de Sousa quando visitou, em São Tomé e Príncipe, o monumento ao massacre de Batepá. Estas palavras do Presidente não levantaram qualquer celeuma, ao contrário do que sucedera quando, há quase um ano, visitou um antigo entreposto de escravos na ilha de Gorée, no Senegal. Em causa esteve, na altura, o debate sobre se Portugal devia ou não pedir desculpa pela escravatura, um debate que desta vez não reapareceu a propósito das responsabilidades das autoridades coloniais em atrocidades ocorridas há um pouco mais de 60 anos.

Este foi precisamente o ponto de partida do mais recente Conversas à Quinta, onde Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto procuraram responder à inevitável pergunta: Devemos pedir desculpa pelo nosso passado? A conversa enquadrou o massacre de Batepá, ocorrido em 1953, mas resultou sobretudo numa reflexão sobre se se deve pedir desculpa pela História dos povos, uma reflexão que nos fez viajar por África mas não esqueceu Espanha e a sua experiência com a Lei da Memória Histórica ou pelo caso da prisão de Pinochet às ordens do juiz Baltasar Garzon.

Mas deixemos o nosso pretexto próximo (para saber mais sobre o que se passou em 1953 naquela antiga colónia pode ler o especial do Observador A história do massacre que São Tomé não esqueceu) e alarguemos o âmbito do debate. Primeiro para recordar como as leituras que se fazem da história nem sempre coincidem com a nossa memória colectiva, algo que se recorda em Why Battles Over Memory Rage On, uma reflexão que encontrei no site do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos, um texto escrito por altura dos debates sobre o destino das estátuas que celebram alguns heróis do lado que perdeu na Guerra Civil, um tema já tratado em anterior newsletter. Eis o essencial do argumento: “Collective memory is the way we think about history, but it’s not history. History is critical, or it’s nothing. Respectable historians don’t write history to serve the interests of the present. They write history to explain what happened in the past, not to tell you, “this was the bad guy, this was the good guy.” Collective memory is about building solidarity, about building community. It is about finding a way to reconcile with the past.”

Bons e maus. Eis de facto o que gostamos de encontrar quando construímos identidades, mas trata-se de um caminho com alçapões. E que afectam mesmo obras clássicas. Um exemplo, e bem interessante, é o de uma das obras que mais marcaram a forma como no mundo anglo-saxónico se olha para a Guerra Civil de Espanha, o testemunho muito pessoal de George Orwell Homenagem à Catalunha. Se há conflito que tem incendiado debates e guerras políticas é precisamente o conflito que dilacerou Espanha entre 1936 e 1939, mas o que agora nos vem dizer um dos seus estudiosos mais prestigiados, Paul Preston, que escreveu um artigo a denunciar a obras do criador de 1984O Triunfo dos Porcos. O El Pais fala-nos assim desse artigo em Orwell, un “partisano arrogante” por la Guerra Civil española: “Es un relato “intenso, bien escrito, un testimonio agudo”, admite el historiador Paul Preston, pero predomina en él la mirada de “un partisano arrogante que dice al lector lo que ha de pensar” y está cargado de comentarios “ingenuos y engañosos”, por lo que se puede acusar al autor de “deshonestidad y de culpable ignorancia”. Así lo afirma el prestigioso especialista de la Guerra Civil y biógrafo de Franco en un extenso artículo, Llums i ombres a ‘Homenatge a Catalunya’, en el décimo número de la publicación digital Segle XX. Revista catalana d’Història, editada por la Universitat de Barcelona en colaboración con la Fundación Cipriano García, de CCOO.

São sem dúvidas observações polémicas, mas nós também temos as nossas. Daí que recorde aquela em que esteve envolvido o historiador João Pedro Marques a propósito da necessidade ou não de um pedido de desculpas de Portugal por causa da escravatura. A maior parte dos artigos deste autor tem sido editada no Público, estão reunidos aqui, e deles destaco dois: Quantas vezes terá Portugal de pedir desculpa? E Memória não é História (e às vezes nem sequer é verdade)Para uma visão mais integrada recomendo um livrinho muito esclarecedor e acessível do mesmo João Pedro Marques: Escravatura.



(Pequeno parênteses para vos indicar um breve apanhado de casos em que pedir ou não desculpas foi tema de controvérsia, um artigo da revista Visão onde, por exemplo, se recorda o emblemático pedido de desculpas do chanceler Willy Brandt pelo Holocausto e pelos crimes de guerra dos nazis, assim como o não pedido de desculpas de Barack Obama quando visitou Hiroshima.)

E assim chegamos à situação presente que, provavelmente, mais controvérsia suscita: a da forma como a Polónia quer oficializar uma versão benigna do comportamento dos polacos na sua relação com os judeus durante a II Guerra Mundial. Em poucos países como a Polónia a história e a memória são tão importantes como componentes da identidade nacional, algo de que me apercebi pela primeira vez ao ler um livro apaixonante, Heart of Europe: The Past in Poland's Present, do grande historiador Norman Davies (autor, mais tarde, de uma monumental história da Polónia, God’s Playground). É uma obra em que, indo do presente para o passado, na ordem reversa da cronologia, se vai percebendo como aquilo que a Polónia é deriva muito da forma como construiu as suas memórias.

Isso mesmo também defende Eva Hoffman em Hearing Poland’s Ghosts, um longo ensaio na New York Review of Books onde visita uma série de museus construídos nos últimos anos na Polónia para assinalar momentos da sua história. Escreve ela, de forma muito pertinente: “The past, in Poland, is not a foreign country; it is morality drama and passion play, combining high ideology and down-and-dirty politics. One recent manifestation of history’s significance has been the creation of several ambitious and architecturally inventive museums dedicated to central events and themes in the Polish past. Since the beginning of this century, four “houses of history” have opened in Warsaw and Gdańsk, attracting many visitors and contributing to the development of neglected neighborhoods. At the same time, the museums have inspired sharp controversies over such topics as freedom of cultural expression, the relationship of Polish to European identity, and interpretations of Polish-Jewish history.



A questão da relação com os judeus, ou mais exactamente a abordagem do anti-semitismo polaco, é mesmo o tema do momento, pelo que regresso a ele fazendo muito com a ajuda da revista judaica Tablet que organizou uma colectânea de textos, uns mais recentes, outros mais antigos, em The Polish Question. Há aí bastantes leituras interessantes, mas destaco duas:
  • The Conscience of Poland: A Q&A with Adam Michnik, uma conversa daquele intelectual polaco com David Samuels, realizada em 2014 mas onde não se evita este tema sempre delicado. Ouçamos Michnik: “But there is one thing that sits in the center of the Polish conscience like a bug. When Jews were taken to the ghettos, they left their homes, their apartments, and somebody else moved in. Later on, he/she was not very eager to move out. And he/she did not want to remember that. But the same is true of the German homes in the Western part of Poland, where Poles moved in. It was this huge, tectonic shock, tsunami. And Poles don’t like to reminisce. But this is not just a Polish issue—this is an issue throughout all of Eastern-Central Europe. It’s in Slovakia, in Romania, in Hungary, Czech Republic, in Lithuania. But only Poland is openly confronting that issue today.
  • Jan Gross’ Order of Merit, um trabalho de Anna Bikont sobre o investigador que tem revelado alguns dos crimes de ódios praticados nos anos da guerra e que é hoje um proscrito no seu próprio país, “caught up in a toxic new nationalism”. O resultado do seu trabalho é mesmo devastador, mas Bikont apoia as suas conclusões: “Gross’ assertion that Poles caused the deaths of more Jews than they did of Germans during the war, so difficult to accept, nonetheless strikes me as incontrovertible. The level of denunciations and murders of Jews committed during the war is staggering. For many years now I’ve been interviewing survivors, reading archives, and it is still so hard for me to fully take in the information I hear and read. In every place on the map that I happen to end up, I discover Jews murdered by their neighbors. As a Pole, I would like for the history of Polish-Jewish relations to be like how they’re cast by the current authorities and not how they are described by Jan Gross. I would also prefer that as a Jew.”

A finalizar apenas mais uma referência, esta a uma notícia do The Times of Israel (a imprensa israelita não tem largado a sensível questão das relações entre os polacos e os judeus). Trata-se 1946 US report said ‘Poles persecuted the Jews as vigorously as did the Germans’, onde se recupera um documento descoberto nos arquivos dos Estados Unidos onde se faz um diagnóstico duro do comportamento anti-semita de inúmeros polacos durante a II Guerra: “Religious and economic in its origins, Polish anti-Semitism was preached by political parties and church heads and practiced by officials high and low,” according to the report. By 1939, on the eve of the Nazi occupation of Poland, “it was one of the distinguishing factors of the country’s political, social and economic life.” “Because anti-Semitism had already become so ingrained in Polish thought, it is not altogether surprising that it still manifests itself in post-war Poland, although common suffering at the hand of the Germans might have been expected to bring the Poles and the Jews closer together.”

E por esta semana é tudo. Despeço-me com votos de bom descanso mantendo os olhos bem abertos para o que se vai passando neste nosso mundo.

 
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