sexta-feira, 20 de outubro de 2017

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


O mapa com que abro este Macroscópio mostra-nos as cicatrizes que o fogo deixou este Verão em Portugal, e aqui só está à vista a área entre o Douro e o Tejo tal como no-la mostram os mapas de monotorização dos fogos florestais da União Europeia. As manchas a cor-de-laranja são as dos fogos dos últimos dias. Aquelas que estão a verde, amarelo e vermelho as dos outros fogos mais antigos, mas todos deste Verão. Não é uma avaliação definitiva, mas é já o retrato da pior época de incêndios de que há memória e registo. Pior que o fatídico ano de 2003. Este mapa é, só por si, um murro no estômago.

A última semana foi, contudo, de uma enorme intensidade – pelo que ardeu, pelas implicações políticas. É impossível recapitular tudo o que se passou, pelo que vou indicar-vos apenas alguns textos que ajudam a perceber o que se passou na frente política, através da recomendação simples de alguns textos (e não de opiniões, que ficarão para outro momento), sem mais desenvolvimentos, para guardar o essencial desta newsletter para os repórteres. Infelizmente a reportagem, porventura o mais nobre dos géneros jornalísticos, é menos praticada entre nós do que devia e, sobretudo, os repórteres não saem demasiadas vezes do mundo que conhecem – o mundo das grandes cidades. Estes dramas obrigaram-nos a ir ao Portugal esquecido, para relatar dramas, contar histórias de coragem, retratar um país que tem ficado quase sempre para trás. É para algumas dessas reportagens que chamarei a atenção.

Antes comecemos por elencar alguns trabalhos jornalísticos que ajudam a perceber o que se passou na frente política, as intervenções de António Costa e do Presidente da República, a demissão da ministra da Administração Interna e o debate parlamentar de ontem. Aqui ficam eles:
Antes das reportagens, referência ainda para três trabalhos onde se ouvem membros da Comissão Técnica Independente e que são relevantes para perceber o que está mal e o que correu mal:
  • João Guerreiro: “A gestão do fogo não é uma brincadeira de crianças”. O Presidente da CTI deu uma entrevista ao Expresso ainda antes da tragédia do fim-de-semana, mas que não deve deixar de ser lida. Por exemplo:
    Está em causa a formação das pessoas ou a própria arquitetura da Proteção Civil? 
    Está em causa o esgotamento deste modelo de Proteção Civil. Tem de haver outro tipo de intervenção, sempre com forças profissionais e com conhecimento. Por isso, propomos que se crie uma agência de gestão integrada do fogo, que reúna técnicos e conhecimento adequados para acompanhar as operações. Em Espanha, quando há um incêndio, o diretor é um engenheiro florestal que vive na zona afetada e sabe o que deve fazer. Cá, os bombeiros desconhecem o que foi feito no inverno e é muito difícil estabelecer prioridades. 
    É preciso arrasar o que existe e começar do zero? 
    É preciso fazer evoluir o que há e acrescentar conhecimento ao que existe. Acrescentar técnicos que não tenham iniciativas cegas.
  • Paulo Fernandes: “O problema não se resolve mudando umas pessoas nem de um ano para o outro”. Uma conversa com o professor da UTAD já depois desta nova catástrofe, no Observador:
    Mais dinheiro, melhor formação, maior coordenação dos recursos. E idealmente todos os operacionais de prevenção e combate a incêndio juntos numa única organização. Esta ideia já constava na Proposta Técnica para o Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios apresentada ao Governo em 2006, segundo Paulo Fernandes, que também participou nesta proposta. Mas foi vetada por António Costa, na altura ministro da Administração Interna. “O ótimo nunca será politicamente aceite”, lamentou. Como a atual Comissão Técnica Independente não acredita que haja abertura no Governo para voltar a apresentar a proposta de fusão, fez uma proposta diferente no relatório apresentado: a criação de uma agência que dependa diretamente do gabinete do primeiro-ministro, que seja formada por uma equipa técnica altamente especializada e que coordene todas as outras entidades.
  • Conhecia-se o risco mas mesmo assim queimou-se. E ninguém impediu. O Público também falou com Paulo Fernandes, assim como com António Salgueiro:
    Desta vez, também arderam as matas públicas, que têm mais gestão do que boa parte do território. “As matas são geridas como há 30 ou 40 anos atrás, o objectivo é retirar a madeira, quando deveriam ser um exemplo: um exemplo de reconversão para outras espécies, um exemplo de desbastes para baixar a carga combustível e um exemplo de uma floresta de uso múltiplo, de onde saem diversos produtos, como a resina”, diz António Salgueiro.


@Adriano Miranda/Público

Agora, por fim, uma mão cheia de reportagens. Começa por um do Público, até porque foi ilustrada por uma das imagens mais icónicas desta tragédia, fixada por Adriano Miranda, e que reproduzo acima: “Depois disto, o que é que nos segura cá?”. Escreve nela Natália Faria, que esteve numa aldeia perto de Vouzela:
Em aldeias há muito ameaçadas pelo despovoamento galopante, os mortos confirmados estavam todos ao pé da porta de Maria de Lurdes, no lugar de Vila Nova. “Sabíamos que as pessoas estavam lá, mas não imagina o que isto foi, com fogo por todo o lado. Ninguém conseguiu lá ir. Às tantas, dei por mim a pensar uma coisa que até me custou: ‘Já devem estar mortos.’ E mortos estavam, coitadinhos.” Quando via as notícias de Pedrógão, Maria de Lurdes, que tem nos vizinhos a família que, solteira e sem filhos, nunca teve, costumava benzer-se: “Nós aqui estamos no céu.” Afinal, não. “É um inferno como os outros. Depois disto, o que é que nos segura cá?”
(Ainda sobre a fotografia de Adriano Miranda há que ler Os olhos que Costa devia ter olhado, de Ferreira Fernandes: “Mãos calosas no cajado, cajado no peito e olhos tão tristes, frente à casa que já não era dele.”)

Não é muito diferente o dilema retratado no Observador por João Almeida Dias em O que produzir quando tudo arde? Tudo se passou desta vez em Oliveira de Frades:
Não é fácil caminhar nos escombros de anos e anos de trabalho. É essa a certeza que fica da cara de Pedro, enquanto entra para o que resta da sua fábrica. As chapas do telhado cederam todas com o calor e só não caíram inteiramente no chão porque ficaram em cima das máquinas. “Ainda nem tive coragem de ir até àquela parte do fundo”, diz Pedro, enquanto avança para lá. A hesitação que leva na cara é como um pedido para que, por magia, ao menos não tenha ardido tudo por lá. Pedro avança no entulho, põe o pé em cima de uma chapa, que abate com o seu peso, e só não cai porque se apoia numa das máquinas. Quando, por fim, chega ao fundo, vê que também ali ardeu tudo. “Catorze anos de trabalho para nada”, desabafa. 

O fogo andou perto da terra que viu nascer Marta Leite Ferreira, do Observador, que retratou o que se passou em Vieira de Leiria: “Era como se tivéssemos pólvora no meio do nosso pinhal”:
A casa de Laurinda sobreviveu às chamas. Sobreviveu “mais ou menos”, conta-nos ela enquanto encolhe os ombros, porque o cultivo que tinha foi consumido pelo fogo. Quando saiu de casa, ao início da tarde, Vieira de Leiria começava a encher-se do fumo que o vento trazia vindo do incêndio que lavrava na Burinhosa, no concelho de Alcobaça. Laurinda foi para Leiria visitar a mãe ao hospital, convencida de que o fogo estava demasiado longe para constituir ameaça. Mas quando a noite chegava e regressava a casa, Laurinda jura ter visto “um monstro, colunas de fumo que sabe Deus” no horizonte.

Dramático e tocante o relato de Pedro Rainho, também no Observador, do que se passou não longe de Penacova. Não deixem de ler Os irmãos que morreram a tentar abraçar-se:
Os bombeiros também estavam por perto. Mas a forma como as chamas se lançavam ao terreno verde não lhes deu hipótese de fazer o que fosse, era impossível chegarem perto dos dois homens. “Eu comando este quartel há mais de 30 anos e nunca vivi nada parecido com isto”, desabafa António Simões. Essa é uma das suas mágoas: ter perdido os dois irmãos – e uma senhora, carbonizada dentro de casa – para as chamas. Isso, e ter ficado à sua mercê quando o fogo lhe roubou o concelho. Foi dos primeiros a encontrar os irmãos. Quando encontrou os dois homens, os corpos estavam prostrados, cabeça com cabeça. Morreram a tentar abraçar-se.

Há os que morreram, e há os que sobreviveram, mas não sabem como viver a partir de agora, como podemos ler no trabalho de "O fogo foi um ladrão que nos entrou em casa", de Rui Marques Simões, que esteve em Oliveira do Hospital para o Diário de Notícias:
Salvaram-se as "cento e tal ovelhas, de raça bordaleira, autóctone da Serra da Estrela", que era a base do negócio familiar, mas os alicerces estão bem abalados. "Está para ali um balde de leite sem préstimo, preto e a cheirar a fumo. E nós nem alimentação temos para lhes dar nos próximos dias - só ração, o resto ardeu tudo. Não sei se eu e o meu marido vamos ter forças para recomeçar... Custa muito perder o resultado de uma vida de trabalho", lamenta Maria de Fátima, baixando o olhar que antes fitava o manto negro que cobre as colinas em volta. "Por mim não consigo, têm de ajudar".

Assim como há incríveis histórias de solidariedade e coragem, como a contada pelo Expresso em A família que salvou 14 pessoas menos o senhor Fausto:
Na noite anterior, a família acolheu em casa quinze vizinhos e amigos, que fugiram em pânico das chamas. Não fosse a sua pronta intervenção, a lista de mortos causados pelos incêndios deste fim de semana seria bem superior. "Sabem como tirámos a dona Adelina de casa? Fomos buscar um escadote. A senhora saiu cá para fora quando o telhado estava já a arder", revela Virgínia Oliveira, a mulher, de 43 anos. 

Outro relato de cortar a respiração é o do que se passou no IP3 e veio contado no Expresso, em Eduardo levou o autocarro pelo “túnel de chamas” e salvou 48 pessoas:
No IP3, já depois da zona de Santa Comba Dão e antes de Almaça, “o céu começou a ficar cada vez mais escuro”. A estrada estava ladeada por chamas. Os bombeiros no local sugeriram ao motorista que invertesse a marcha, mas este apercebeu-se de que seria impossível – e fazer marcha atrás também não era solução. Tomou então a decisão de avançar com o autocarro que transportava 48 passageiros – a maioria eram jovens – através do “túnel de chamas”, auxiliado por um pequeno grupo de bombeiros. Dentro do autocarro, o pânico era evidente. Por entre gritos, choros, mãos dadas e telefonemas “de desespero e despedida” aos familiares e amigos, o autocarro foi avançando, sentindo-se o calor “e as janelas a ferver”, descreve Ana.


@João Porfírio/Observador 

Esta segunda fotografia, de João Porfírio, também é das que dificilmente esquecerei, até pela história que lhe está associada. Saiu no Observador, numa outra reportagem de João Almeida Dias, Sozinhos no meio das chamas: quando a água acabou, apagaram o fogo com mosto. É de novo um relato que nos chegou do que se passou na região de Vouzela:
Nessa altura, José pegou em duas mangueiras e ligou-as a um depósito de mil litros que tem para a agricultura. Com este material tentou apagar o fogo que lhe lambia as paredes de casa. Em trinta minutos, ficou sem água. Depois, só conseguiu ir buscá-la a um chafariz comunitário. O resto da noite foi passada a correr da fonte à casa, com dois baldes cheios de água — até que, também ali, ela deixou de brotar. Nessa altura, não teve outra escolha para além de esperar pelo fim. Enquanto isso, Irene e Daniela, na casa de uma vizinha, tentavam apagar o fogo com o que tinham à mão. Quando a água também por ali acabou, começaram a deitar mosto, das uvas que há pouco tempo foram pisadas após a vindima, para cima das labaredas.

Pedro Rainho foi tratar de perceber o que se tinha realmente passado com um bebé que chegou a ser dado como morto e reconstitui tudo o que se passou no Observador em Vitória. A história da bebé que afinal não morreu. Mas há mais, muito mais nessa sua reportagem:
José Mendes, o pai, não diz uma palavra. Passam-se longos minutos e o olhar do homem de 67 anos parece vaguear longe dali. De tempos a tempos, José passa pelo rosto a mão negra de carvão. As mãos de Teresa, a mãe de Ricardo, 68 anos, também estão negras. E tremem. Tremem muito. É ela quem diz a uma equipa de técnicas da câmara de Tábua que as suas galinhas desapareceram. Devem estar algures debaixo das telhas espalhadas pelo quintal.

Termino regressando a Pedrógão Grande, e faço com a ajuda do Expresso e de uma reportagem em vídeo, Marcelo, 19 anos, perdeu a avó e a irmã no fogo: “Não vamos voltar a ter uma vida normal, nunca mais”. É que, como aí se conta...
Marcelo sobreviveu. Gina, a mãe, sobreviveu. A casa está incólume. Parece uma casa normal, há fotos, bonecas, duas bolas. Mas já não há Bianca, três anos, a mais jovem vítima da tragédia de Pedrógão Grande. Não há Maria Odete, a avó que ficou presa com a neta no carro da fuga do incêndio que matou outras 63 pessoas. E haverá Marcelo? Haverá Gina? Haverá Aníbal, o pai, que todos os dias ainda dá bom dia e boa noite à filha que morreu?

Eu sei, eu sei que virão muito nas televisões e que muito nunca esquecerão. Mas nestes textos há uma densidade humana que, infelizmente, não é muito frequente na imprensa portuguesa. Por isso os recomendo. Leiam-no, se necessário, em pequenas doses, pois a realidade que retratam é porventura demasiado dura pra a conhecermos toda de uma vez. Não podemos é ignorá-la. Ou esquecê-la daqui por umas semanas.

 
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