Gérard CASTELLO-LOPES, Algarve, Portugal, 1957
O Macroscópio continua a revisitar a primeira metade do mês de agosto e
regressa hoje, como prometido, a temas da campanha eleitoral. Desta vez
para falarmos de Segurança Social e do sistema de pensões, seguramente
um dos mais importantes e, também, mais difíceis. Tanto o programa
apresentado pelo PS (com a polémica descida da TSU), como o elaborado
pela coligação (com o cenário de plafonamento horizontal dos descontos),
têm suscitado controvérsias que, infelizmente, no que ao discurso
político diz respeito, quase se têm limitado a uma
troca de acusações muito
pouco esclarecedora.
Não nos devemos surpreender demasiado: grande parte do eleitorado,
sobretudo do eleitorado que não se abstém, é constituída por reformados
ou por trabalhadores à beira da reforma. O tema escalda e por isso todos
lhe tocam ora com pinças (quando se trata de definir as suas
promessas), ora com bombardas (quando falam das promessas alheias).
Para quem quiser ter uma boa introdução ao debate –e também à quantidade
de informação que falta para avaliar as propostas da coligação e do PS –
uma excelente introdução é a de Margarida Corrêa de Aguiar,
Reforma das pensões: sem solução política, publicado no Observador. Para esta especialista, “
Coligação
e PS reconhecem que há uma quebra de confiança dos contribuintes e
beneficiários no sistema de pensões. Mas não assumem as mudanças no
modelo de governação do sistema que isso implica.”
O
texto é relativamente longo, mas vale a pena lê-lo já que ajuda a clarificar os termos do debate. Alguns extratos:
- “A insustentabilidade financeira está e vai continuar a gerar
iniquidades entre gerações. Este é um problema de que pouco se fala,
muitas vezes secundarizado.”
- “Há muito tempo que o “contrato social” se quebrou, devido
justamente às recorrentes medidas e reformas paramétricas que têm vindo a
ser introduzidas, reduzindo crescentemente benefícios de geração em
geração.”
- “Ambos os programas eleitorais indicam a introdução de
mecanismos de plafonamento (leia-se reduções/tectos às contribuições e
reduções/tectos às pensões). No caso da Coligação trata-se de um
plafonamento horizontal – é fixado um máximo salarial a partir do qual
não há incidência de contribuições – e no caso do Partido Socialista
trata-se de um plafonamento vertical – é estabelecida uma redução
generalizada de contribuições para todos os salários.”
- “Ambos os mecanismos implicam a necessidade de financiamento
adicional para repor, no entretanto, que pode ser um período mais ou
menos longo, a perda imediata da receita de contribuições. Ora, as
restrições económicas e de finanças públicas que o País atravessa
dificultam e inviabilizam o financiamento dos custos de transição destas
opções. Fazê-lo introduz um risco adicional na já frágil situação
financeira do Sistema Previdencial de Segurança Social.”
Há um outro texto de uma economista reputada, Cristina Casalinho, que
actualmente preside à Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida
Pública, que, no Jornal de Negócios, escreveu um texto bastante
pedagógico sobre o que pode estar em causa nos sistemas de Segurança
Social:
Sistemas em coexistência.
É um texto onde explica as diferenças entre o nosso sistema, dito de
repartição, e os sistemas de capitalização (como passaria a ser
parcialmente o nosso caso avançasse o plafonamento), e as dificuldades
de transição entre um e outro:
“
A transformação de um sistema de repartição num regime de
capitalização com plafonamento levanta a importante questão do seu
financiamento. No caso de o nível de dívida pública ser reduzido, esta
passagem pode ser facilitada. O Estado terá de emitir dívida adicional
para o estabelecimento das contas individuais, podendo em simultâneo
beneficiar da procura por dívida pública por parte dos novos fundos. Se
esta hipótese estiver vedada ao Estado, os atuais financiadores do
regime de repartição terão em paralelo de suportar o estabelecimento do
sistema de capitalização. Para tal ser viável, os rendimentos na
economia têm de estar a crescer a um ritmo forte e a carga fiscal tem de
ser considerada suportável. Para uma sociedade envelhecida num Estado
fortemente endividado e com baixo crescimento económico, a transição
entre modelos será sempre um processo delicado, desafiante e
problemático.”
Dito isto, vale a pena referir dois textos, editados em dias sucessivos
pelo Diário de Notícias, que ajudam a esclarecer as propostas em cima da
mesa, se bem que ambos abarquem mais temas do que apenas os relativos o
sistema de pensões. Pequenas citações (os dois textos são relativamente
longos):
- Mário Centeno, responsável pela coordenação do estudo macroeconómico que está na base do programa eleitoral do PS, Quanto? Quando? Como?: “O
plafonamento das contribuições para a Segurança Social não é uma
reforma estrutural. O terramoto pode assumir proporções colossais. Mas a
coligação não diz o quanto. O plafonamento dá liberdade de escolha aos
contribuintes. É verdade. Se o plafonamento começar nos 2000 euros de
salários, a 8% dos contribuintes, 295 mil. Se começar nos 2500 euros, a
5%, 190 mil. Quem são os contribuintes que obtêm liberdade de escolha?”
- Jorge Bravo, um académico que colaborou no programa eleitoral do PSD, Proteção social mais justa, adequada e sustentável: “Esta
proposta [de plafonamento], bastante mitigada nos seus impactos de
curto e médio prazo sobre o financiamento da Segurança Social, contrasta
com a proposta do PS de redução da taxa social única (TSU) em 4% para
os trabalhadores (denominada de plafonamento vertical), que não só
retira uma fatia importante das receitas ao sistema como não cuida de
exigir que a base contributiva isenta fica sujeita a contribuições para
regimes complementares de proteção social.”
Quanto a textos substantivos, a levantar dúvidas legítimas sobre as
propostas em cima da mesa, um dos que se destacou foi o de Alfredo
Marvão Pereira, que é Thomas Vaughn Professor of Economics no The
College of William and Mary, no Público:
As ramificações provavelmente não intencionais da redução da TSU dos trabalhadores. É um texto que aborda com seriedade a proposta do PS, queixa-se (como se queixam tantos outros) da “
ausência de alguns detalhes cruciais”, e levanta interrogações como esta:
“
Se se reduzirem de modo uniforme as contribuições de todos os
trabalhadores no ativo, as diferenças nas taxas marginais de poupança
entre os contribuintes de rendimentos mais baixos e mais altos, poderá
levar, imagino que não intencionalmente, a um aumento da desigualdade de
rendimentos na reforma. Ou seja, com esta medida, o contribuinte de
mais baixo rendimento terá o seu rendimento na reforma proporcionalmente
mais reduzido que o contribuinte de mais alto rendimento. Quaisquer
ajustamentos na proposta em sede de TSU com vista a obviar este efeito,
além de trazerem pela sua complexidade sérios problemas de
implementação, comprometeriam de forma significativa a eficácia da
medida como alavanca do consumo privado.”
Chamo ainda a vossa atenção para três comentários mais breves:
- Bruno Faria Lopes, do Económico, em Alguém sabe o que quer a coligação para as pensões?: “Não
é compreensível que Passos Coelho e Paulo Portas apresentem uma
proposta escrita sobre plafonamento da Segurança Social com termos tão
vagos como a introdução de "um limite" (qual?), para "gerações mais
jovens" (quais?), sem explicar claramente como seria financiado e
remetendo maior detalhe para uma "análise" em "sede de concertação
social" (fórum a que a coligação não dá qualquer crédito técnico, como
vimos na legislatura que agora termina).”
- Pedro Braz Teixeira, no mesmo Económico, em Pensões: “O
que o PS propõe é não tocar nas pensões já atribuídas, ou seja não
corrigir os graves problemas de pensões claramente acima das carreiras
contributivas. Para além disso, pretende aumentar as fontes de
financiamento, ou seja ir subindo sucessivamente impostos e
contribuições para não reformar a Segurança Social, como se isso fosse
um caminho com algum futuro para além do curto prazo.”
- Camilo Lourenço, no Jornal de Negócios, em PS e coligação fogem das pensões: “Não
há forma de equilibrar o sistema de pensões sem uma reforma dura. E um
dos vectores dessa reforma implica cortar pensões. Iludir os portugueses
por causa das eleições é pregar mais um prego no caixão da
credibilidade da classe política.”
A terminar, um conjunto de referências a entradas já antigas do blogue
de Pedro Romano, Desvio Colossal, que também ajudam a clarificar os
termos da discussão:
A Segurança Social é sustentável? É. Mas o que é que isso significa?;
Pay-as-you-go e o “cofrezinho” do contribuinte;
Poupança e capital num sistema de capitalização e
Economia política dos regimes de capitalização.
Eis pois um debate que ainda vai no adro, devia merecer mais atenção
durante a campanha e ser realizado em termos que permitissem um acordo
pós-eleitoral nesta matéria. Apesar da retórica, há muitos pontos em que
o PS e a coligação estão de acordo e, num tema que não é de uma
legislatura mas de gerações, alguma forma de consenso alargado (à
nórdica?) devia ser alcançado.
Por certo voltaremos a falar de pensões e de Segurança Social, mas por
hoje despeço-me com votos de bom descanso e boas leituras. Até amanhã