sábado, 20 de junho de 2020

DO TEMPO DA OUTRA SENHORA - 20 DE JUNHO DE 2020

20 10:54
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Do Tempo da Outra Senhora


Ana Catarina Grilo, uma barrista que veio para ficar

Posted: 19 Jun 2020 04:38 PM PDT


Fig. 1 - Ana Catarina Grilo (1974-   ), pintando no seu atelier.

À laia de introdução
O gosto pelos Bonecos de Estremoz está-me na massa do sangue. Daí que para além de coleccionador e investigador da História dos mesmos, seja um contador de estórias que procura modelar com palavras o que lhe vai na alma. Tal é fruto de observar e reflectir sobre criações, às quais a magia das mãos dos barristas, conferiram forma, cor, movimento e significado. E porque não vida? Vida que para mim passa também a ter mais sentido, já que os Bonecos me refrescam e revitalizam o ser.
Ana Catarina Grilo (1974-  ) (Fig. 1) é uma barrista que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte.
“Senhora de pezinhos” (Fig. 2) e “Primavera de arco” (Fig. 3) são duas figuras tradicionais da barrística popular estremocense, que a nova barrista recriou e a meu ver muito bem. Vou falar de cada uma delas em particular.

Fig. 2 - Senhora de pezinhos (2020). Ana Catarina Grilo.

Senhora de pézinhos
Se eu fosse repórter da moda diria:
Vestido comprido sem mangas, de aspecto sóbrio, em padrão xadrês, branco e negro. Decote generoso, ornamentado por folhos negros, tal como o cinto que apresenta atrás uma atadura em forma de laço.
A ausência de mangas e a generosidade do decote reforçam a sensualidade patente no rosto da figura. Os folhos encobrem os ombros, criando um clima de mistério associado à feminilidade que a figura transmite. O cinto sublinha a cintura fina e reforça a elegância que ressalta do modelo.
As mãos dispostas frontalmente nas pernas e abaixo da anca, conferem um aspecto descontraído e emancipado à figura. O leque em posição de descanso, diz-nos que não está calor, mas que já esteve ou pode vir a estar.
O lindo cabelo castanho, só está parcialmente coberto por um discreto chapéu negro, condizente com os folhos e o cinto do vestido. O chapéu, de aba pequena, apresenta uma chanfradura posterior que deixa o cabelo a descoberto. Está ornamentado com um laçarote azul petróleo do lado direito, o qual transmite à figura, tranquilidade, serenidade e harmonia.
Do lado esquerdo ostenta um feixe de quatro plumas matizadas de verde e amarelo. No seu conjunto, os ornamentos conferem vivacidade ao chapéu e este reforça a elegância de toda a figura.
O rosto, suave e delicado, tem forma oval, apresentando simetria entre a parte superior e inferior da face. Daí que todo o tipo de brincos lhe assente bem. Todavia, os brincos usados, de duplo pendente, aumentam a volumetria do maxilar. O serem de ouro, reforça a perfeição e a nobreza associadas à figura.
Os sapatos negros, de bico, rematam inferiormente toda a elegância do modelo.
PARABÉNS À ESTILISTA!

Fig. 3 - Primavera de arco (2020). Ana Catarina Grilo.

Primavera de arco
Dos ombros do vestido amarelo brota um arco no qual se vê pintada uma dupla hélice verde-amarela, configurando os pés verdes das papoilas entrelaçadas num arame pintado de amarelo, como se fossem caules de papoilas emaranhados numa cana arqueada.
O amarelo do vestido evoca uma seara de trigo donde brotam as papoilas que anunciam a Primavera e que são emolduradas superiormente pelo azul do céu, evocado pelo chapéu dessa cor.
As papoilas contribuem para contextualizar no Alentejo, a figura universal da Primavera. Papoilas que integram o molho de espigas que se vão colher aos campos na Quinta-Feira da Ascensão. Lá diz o cancioneiro popular alentejano:

Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão.(2)

O ramo tem um valor simbólico, pois ainda perdura a crença popular de que funciona como um poderoso amuleto que traz diversos benefícios ao lar de quem o colheu e manteve pendurado durante um ano numa das paredes de casa. Nesse ramo, a papoila simboliza a vida e o amor. Amor que é tema do soneto “Mocidade” do livro “Charneca em Flor” de Florbela Espanca, onde esta confessa num terceto:

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir! (1)

A figura emblemática da Primavera é potenciada pela Ana Catarina Grilo, através das cores sabiamente escolhidas e que reforçam o simbolismo da alegoria.
PARABÉNS, ANA CATARINA GRILO!
Epílogo
O trabalho de Ana Catarina Grilo já não me surpreende (Ah! Ah! Ah! – grandessíssima mentira). Como barrista creio que veio para ficar, para deleite de espírito de todos nós.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ESPANCA, Florbela. Charneca em flor. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
(2) - SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

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