Muitas vezes, quando leio os textos perpassados de horror dos bem-pensantes que julgam que só ficam bem na fotografia dizendo mal dos eleitores que vão fazendo o sucesso de partidos a que se convencionou chamar “populistas”, muitas vezes por pura preguiça intelectual, recordo-me de um filme de 1976 de Ettore Scola, "Feios, Porcos e Maus". Ou seja, lembro-me de como de facto esses bem-pensantes nunca gostaram especialmente do povo, mesmo quando dizem falar em nome dele. E agora detestam especialmente o povo que, em países como a Suécia, dão gás a partidos que desafiam as suas convicções: não querem mais imigrantes nem querem “mais Bruxelas”. Ou seja, são “xenófobos”, “eurofóbicos” e “contra todos os valores europeus”. Vale a pena questionar este discurso dominante, pois o mundo é sempre mais complicado do que parece.
Primeiro ponto: o que se passou na Suécia? Apenas mais um episódio da erosão dos partidos dominantes a par com a subida de partidos que desafiam os consensos estabelecidos. Os Democratas Suecos, o partido descrito como xenófobo e eurofóbico, teve um bom resultado, mas menos bom do que previam as sondagens. Mesmo assim contribuiu para um cenário de quase ingovernabilidade, já que nenhum dos dois habituais blocos políticos (centro-esquerda e centro direita) tem maioria e os Democratas Suecos, com 62 deputados, dificilmente podem ser ignorados. Nicholas Aylott, um professor de ciência política da Universidade de Södertörn faz, em What sort of government might Sweden have after the election?, uma boa síntese dos cenários em cima da mesa, sendo que depois de lembrar que um diário sueco já conseguiu elaborar uma lista de 12 possíveis soluções governativas, acaba por desdramatizar a situação: “Quite possibly, then, Sweden will emerge with a rather extreme form of minority government – one whose only party has attained just a quarter or even a tenth of the seats in parliament. That is a recipe for slow, painstaking legislative negotiations on everything. It might not be what Sweden really needs. But it is not a recipe for chaos. In parliamentary politics, especially in Sweden, it may be better to be tolerated than liked.”
É um sinal de que os suecos estarão mais tranquilos do que muitos europeus, sobretudo muitos dos que escrevem nos jornais, seja no alemão Handelsblatt, onde o director, Andreas Kluth, dedicou a sua newsletter de ontem ao tema – The populist right from Sweden to Germany –, seja nos portugueses, e cito só a título de exemplo o editorial do Público, de Manuel Carvalho, O vírus nacionalista instalado na Suécia, onde defende que, “Aconteça o que acontecer, o nacionalismo xenófobo dos Democratas Suecos já venceu”.
Mas será que venceu mesmo? Será que aquilo a que assistimos pode ser simplesmente classificado como “nacionalismo xenófobo”? Esta questão faz todo o sentido por três ordens de razões, como já veremos: primeiro, porque na crise dos imigrantes de 2015 a Suécia foi o país que, em termos proporcionais, mais pessoas recebeu, o que criou problemas ao seu Estado Social; depois, porque grandes movimentos de população sempre causaram problemas e violência, muito antes dos populistas modernos; por fim, porque os problemas levantados pelos Democratas Suecos eram tão reais que acabaram por ser adoptados por praticamente todos os partidos políticos, mesmo à esquerda. É isso mesmo que nos relata Fraser Nelson, da Spectator, em The new Swedish lesson: populism can be kept at bay by listening to voters: “Listening to the last Swedish leaders debate (which I wrote about) I was struck by how every single leader wished to say to voters: we hear you. The immigration, and the related crime, has got out of hand. Let us count the ways in which this has gone too far.” Em concreto: “The Liberal leader spoke about Islamist free schools. The Conservative leader spoke about immigrant gangland crime and their murders. The Christian Democrat leader spoke about “honour repression” of girls in families. The collective effect, I suspect, was have been to persuade a good many Swedes that they don’t need to vote for Akesson to have their concerns taken seriously. Sweden’s famously narrow “opinion corridor” had widened quite a lot by the end of the campaign.”
Ou seja, parece ter-se quebrado o muro de silêncio que faz com que habitualmente estes sejam temas tabu no debate político, algo de que falava Henrique Raposo na sua coluna no Expresso Diário (paywall), Bataclan, Londres, Munique, Nice, etc., etc. Eis o essencial do seu argumento: “Não se pode falar do crescimento do nacionalismo sem mencionar o Bataclan, Nice ou as granadas que explodem nos bairros “complicados” da Suécia. Enquanto não lidarmos com esta causa, o efeito continuará a crescer. E aqui entramos no grande tabu que tudo emperra de Lisboa e Estocolmo: jornalistas e políticos têm medo de criticar esta ou aquela parte da comunidade ou cultura muçulmana, criando permanentes ângulos cegos sobre os bairros muçulmanos. Fica difícil conversar de forma adulta; logo surgem os gritos e acusações de racismo.”
Aparentemente o caminho seguido por muitos políticos mainstreamsuecos foi deixar de fingir que não existem os bairros onde vivem os “feios, porcos e maus” e dar mais atenção às suas preocupações. Um caminho porventura mais realista e mais eficaz do que o sugerido por Henrique Burnay no Diário de Notícias, em Os adjetivos não ganham guerras, onde sugeria – é certo que referindo-se aos países do Leste europeu, não à Suécia – uma retórica mais, chamemos-lhe assim, “didática”: “É preciso trazer números sobre a imigração, para mostrar que quase não há refugiados nem imigrantes a ficar nestes países (...). É preciso mostrar que a União Europeia foi a livre circulação de polacos para o Reino Unido, de húngaros para França, de checos para a Alemanha e por aí fora.”
Um segundo ponto que referi relativo ao cuidado a ter com o uso imoderado das condenações por “xenofobia nacionalista” é recordar as lições da história e a própria natureza humana, que é o que é. Volto ao Handelsblatt que publicou um interessante texto de Daniel Grosque sublinha precisamente um destes aspectos. Em Why migration fuels sexual as well as economic fears defende que os sentimentos anti-imigração não são apenas derivados do medo económico: “There is another potential explanation, rooted in evolutionary psychology. One trend that is rarely mentioned in migration discussions is the rise in the share of men among refugees and asylum-seekers. In the last three years, men – many of whom are aged 18-35 – comprised more than two-thirds of all people seeking protection in Germany. Whereas the total number of refugees as a share of Germany’s total population is small (2.5%), refugees form a far larger share of Germany’s young male population. The impact is particularly noticeable in eastern Germany, which already suffered from a gender imbalance (...). As a result, a significant share of eastern Germany’s young male population has little chance of finding a partner and starting a family. Research shows that when there are significantly more men than women, the increased competition for female partners can lend itself to violence.”
Na Suécia, onde se tem também registado um aumento da violência (é recordar, por exemplo, este texto da BBC: Sweden's deadly problem with hand grenades), onde um em cada seis habitantes não nasceu no país, o tema se tenha tornado central, como sublinha enfaticamente Matthew Goodwin no Washington Post em Why a far-right party with white supremacist roots is on the rise — in Sweden. Basta olhar para os números dos estudos de opinião: “In 1987, only 7 percent of Swedes saw immigration as important. This jumped to 20 percent in 2002 and then 27 percent in 2014. It then surged to 53 percent in 2015, when more than 160,000 asylum seekers arrived in Sweden.”
É por isso que o Wall Street Journal, num editorial – Sweden’s Political Warning – em que se recorda precisamente “Sweden’s decision to accept the highest number of Middle Eastern migrants relative to population of any European country in the 2015 crisis”, se alerte de novo para a erosão dos partidos centrais que não conseguiram identificar o problema e a solução: “What’s really on display is weakening public trust in mainstream politicians and parties. Voters increasingly doubt that the Social Democrats or Moderates will deliver on promises to stem immigration or reduce waiting times for doctors. Maybe the Sweden Democrats would fail if they take power, but they haven’t been promising and failing for years.”
E porque é que isso aconteceu? Uma resposta interessante foi a dada por João Carlos Espadano Observador, em Agora, até na Suécia!… O seu argumento central é que factos como os que tenho vindo a elencar “estão a refutar as respostas politicamente correctas que até aqui têm inundado a comunicação social e os meios ‘bem pensantes’. Dizem eles que está a ocorrer uma onda ‘nacionalista’, ‘soberanista’ e ‘extremista’ contra os ideais ‘trans-nacionais’ ou ‘supra-nacionais’ ou ‘multiculturais’ da democracia liberal.” Ora, escreve mais adiante, “Como escreveu o norte-americano William Galston na mais recente edição da britânica The Spectator, ‘um internacionalismo desenfreado alimentará a sua antítese: um nacionalismo desenfreado’.” Em concreto, “se os partidos clássicos aceitarem a errónea identificação da democracia liberal com a utopia supra-nacional e a imigração ilimitada, alguém vai aparecer no mercado eleitoral para oferecer o que os partidos clássicos não oferecem: a defesa do legítimo sentimento nacional.” Nessa altura podem surgir políticos tudo menos recomendáveis, mas se o texto da Spectator que referi mais atrás estiver certo, não foi que, pelo menos para já, aconteceu na Suécia.
Guardei para o fim deste Macroscópio três textos que não se referem directamente a estas eleições, mas abordam os fenómenos que se estão a passar na Europa por ângulos originais e desafiadores:
- ¿Brexit como alternativa a una Europa ultra?, um texto do sempre imprevisível John Gray, no El Pais, onde se escreve que, “Ante el avance de la extrema derecha, los defensores del proyecto europeo exigen “más Europa”, es decir, un giro más decidido hacia un Estado europeo transnacional. Niegan la evidencia de que es precisamente ese proyecto el que ha impulsado a las fuerzas antiliberales en todo el continente. Con su intento de que la inmigración deje de ser competencia de los Gobiernos nacionales, la UE ha dejado a muchos ciudadanos con la sensación de que no tienen ningún control democrático de su vida. El empeño en promover un Gobierno transnacional que la mayoría de los europeos no desean ha resultado en el ascenso del peor nacionalismo.”
- The inevitability of Fortress Europe, de R.W. Johnson na última edição da Standpoint, um ensaio com algum fôlego e bem argumentado cuja tese é que “Watching European attempts to come to terms with the problem of migrants from the Third World is to watch a slow-motion train crash. All manner of liberal nostrums about the duty to accept refugees, the right to free movement within the EU and even the notion of a secular indifference to religious distinctions are all being tested to destruction. There seems only one possible conclusion: a Fortress Europe with distinct echoes from its past as Christendom. This may not be what Europe’s elites would choose but popular pressure seems unlikely to allow anything else.” Até porque a história e a memória dos povos pesa muito: “The furiously resistant response that the migrant crisis has met in Eastern and central Europe can only be understood with reference to the fact that for generations these were the borderlands where the Turks and Islam were prevented from pouring into Europe. The scars left by those clashes also explain the ferocity of such conflicts in the Balkans.”
- Can the EU resist a far-right, nationalist takeover?, o primeiro de uma série de seis grandes reportagens do The Telegraph dedicadas aoFuture of Europe e que começa por nos contar a história de uma aldeia polaca, Kobylin-Borzymy: “Some 85 per cent of the villagers cast their votes for a party that promised a mixture of cash handouts for the poor and an unapologetic defence of Poland’s “thousand year-old Christian heritage” against a rising tide of liberalism and uncontrolled migration. This, then, is that “other” Europe – monocultural, conservative and deeply Christian – that the multicultural, liberal and secular Europe had assumed would quietly fade away after the Soviet empire crumbled and its satellite states voted to join the EU in 2004.But history did not “end”, as Francis Fukuyama predicted. Instead over the last decade in Europe it has been reawakened with a vengeance.”
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