Não sei – não posso saber, não sou o Mark Zuckerberg... – quantos dos leitores desta newsletter costumam seguir o Netflix. Mas a todos que tiverem acesso a este serviço de televisão faço uma recomendação: vejam, na primeira oportunidade, uma série que acaba de estrear, O Mecanismo, dirigida pelo mesmo José Padilha que também realizou a famosa série Narcos. E preparem-se para alguma controvérsia, mesmo sendo ceto que, seja qual for o julgamento que fizermos do que se está a passar na terras de Vera Cruz, esta nova série de José Padilha acaba de vez com as ilusões sobre a política brasileira. Independentemente da informação básica que podem obter directamente no site do Netflixou do que possam descobrir vendo o trailer que está disponível no YouTube, fiquem desde já a saber que se trata de uma ficção mas que tem como ponto de partida uma grande investigação jornalística publicada em livro – Lava Jato: Os bastidores da operação que abalou o Brasil e o mundo, de Vladimir Netto que é, entre outras coisas, vice-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Mais: a trama já provocou polémica, com Lula da Silva a ameaçar com os tribunais e Dilma Roussef a falar em “fake news”. A história, contudo, está longe de se limitar aos dirigentes do PT, pois as investigações do juiz de Curitiba têm atingido gente de todos os grandes partidos, uns já presos, outros acusados, assim como líderes das maiores empresas brasileiras.
Estou certo que, se assistirem a O Mecanismo, terão uma ideia mais aproximada do grau de corrupção que mina o sistema político brasileiro e está a abalarprofundamente as suas instituições. Mais: identifiquemos ou não directamente alguns dos seus personagens com Lula, Dilma ou Temer, o que ali se revela não é apenas uma invenção sem qualquer relação com a realidade, como acontece com uma série como House of Cards– o que ali se passa é mesmo o retrato do Brasil, tal como Narcos é um retrato do mundo do tráfico de droga e dos seus grandes barões. Isso ajudar-nos-á a por em perspectiva algumas das críticas que foram feitas em Portugal às decisões judiciais que levaram à prisão de Lula da Silva.
Há, de facto, em Portugal um discurso político que considera que a prisão de Lula é "um golpe da direita reacionária, racista, fascista", e cito declarações de Catarina Martins. Mesmo não indo tão longe na condenação das decisões dos juízes brasileiros, dois dos comentadores residentes da Quadratura do Círculo, Pacheco Pereira e Jorge Coelho, também consideraram que estamos sobretudo perante uma forte politização da decisão, um decisão tomada para impedir que o antigo Presidente voltasse a concorrer e regressasse ao Palácio do Planalto.
Nas colunas de opinião dois comentadores têm-se destacado pela defesa de Lula e da ideia de que estamos perante mais uma etapa de um golpe que tem como único objectivo afastar o Partido dos Trabalhadores do poder. Refiro-me a Daniel Oliveiro, no Expresso, e Boaventura Sousa Santos, no Público. Têm ambos escrito frequentemente sobre o tema, ficando aqui a referências aos seus textos mais recentes: Brasil: quem não tem votos caça com juízes e generais, de Daniel Oliveira, e Lula da Silva: os tribunais o condenam, a história o absolverá, deBoaventura Sousa Santos.
Vale a pena discutir e, se possível, esclarecer alguns dos pontos que habitualmente são utilizados pelos que consideram que estamos a assistir a um golpe. A primeira dessas ideias é que tudo é mesmo uma maquinação da direita e das elites brasileiras para derrubarem Lula da Silva, ou seja que «este julgamento é político», como se disse na já referida Quadratura do Círculo. Uma boa contestação deste argumento é a desenvolvida pelo blogger Rui A. no Blasfémias, em inocentes ou culpados?, um texto onde recorda, por exemplo, que dificilmente se pode falar em golpe da direita quando “5 dos 6 juízes que votaram contra a concessão do habeas corpus a Lula foram nomeados por governos do PT, o partido de Lula da Silva”. Mas este é apenas um dos pontos de alguém que conhece bem o Brasil.
No Observador Miguel Pinheiro recorreu a outro argumento para contrariar a ideia de que isto é tudo “um golpe da direita”. Em A "direita" brasileira é a mais burra do mundorecordou os nomes, os casos e as prisões de figuras gradas da direita que este caso também apanhou. Por isso interroga-se: “Se a Lava Jato é uma invenção da "direita" para prender Lula, então porque é que encheu presídios com políticos, imagine-se, da "direita" e com os responsáveis das maiores construtoras?”
Outro ponto que tem sido muito debatido é se houve ou não uma grave violação dos direitos constitucionais de Lula quando o Supremo Tribunal rejeitou o habeas corpuse permitiu a prisão do ex-Presidente mesmo sem o caso ter transitado em julgado, uma vez que só houve as sentenças da 1ª e 2ª instâncias. Há uma discussão no Brasil sobre este tema, mas a prisão de Lula teria ocorrido noutros países com longas e sólidas tradições democráticas logo após a primeira sentença. Isso mesmo recordou, num especial do Observador, o jurista Nuno Gonçalo Poças em Preso antes do fim dos recursos? Em vários países, é normal. É um texto onde recorda, por exemplo, “Nos países anglo-saxónicos, um condenado em primeira instância começa a cumprir a sua pena de prisão efectiva independentemente do facto de tal decisão poder vir a ser alterada por um tribunal de segunda instância.” Mas não só nesses países, pois também na Alemanha ou em França a sua prisão seria teoricamente possível nesta fase do processo.
Quanto ao que se está a passar no Brasil, Gilmar Mendes, um dos juízes do Supremo Tribunal que votou contra a prisão de Lula, aborda o tema ao explicar a forma como o seu voto tem mudado de caso para caso, o que pode ser lido na entrevista que deu a Cátia Bruno e João Almeida Dias do Observador: "Na Lava Jato, o triplex de Lula deve ser o menor". Nessa entrevista também recusa ser "comparsa" de Lula, como foi acusado, garantindo que ele e o PT são “água e óleo". Este juiz passa de resto muito tempo em Portugal, como contam a Rita Dinis e Manuel Pestana Machado noutro especial do Observador, A vida de "afetos" em Portugal do juiz pró-Lula. Tem mesmo casa e já foi insultado, tendo regresso ao nosso país a correr depois de ter votado em Brasília, e tudo para estar com Marcelo.
Passando a outro tema recorrente na argumentação de quem diz estarmos perante um golpe, importa perceber de que está Lula realmente acusado e quem é o juiz de Curitiba que não desistiu do Lava Jato. Para tal continuo no Observador, começando por As 15 provas que condenaram Lula, um especial de Cátia Bruno onde se recordam indícios como um número rasurado, mensagens de Whatsapps sobre o “chefe” e a “madame” ou o testemunho de um porteiro que diz que “todos sabiam” que o triplex era de Lula. Quanto ao juiz, Mariana Fernandes tratou de saber Quem é Sérgio Moro, o juiz que quer prender Lula . É um texto que não nos fala apenas dele como jurista, mas também nos conta que já fez 45 anos, é casado com uma advogada e tem dois filhos, que estudou num colégio de freiras, foi professor e citava "Breaking Bad" nas aulas.
Ainda no domínio dos textos que ajudam a perceber o que se está a passar e a recordar os principais dados desta crise, deixo-vos ficar as referências de duas peças da edição em português (do Brasil) do diário espanhol El Pais:
- A cronologia da investigação que levou Lula à prisão, onde se vai passo a passo desde o início da Operação Lava Jato até à decisão do Supremo que rejeitou o último recurso do ex-presidente
- Brasil, um gigante abatido, uma análise de Xojé Hermida onde se destaca que esta prisão chega num dos momentos mais frágeis da economia e da democracia do país que há poucos anos inspirava o mundo
Mas se estes são trabalhos mais informativos, há também um conjunto de análises de leitura interessante sobre o momento que vive o Brasil. Eis algumas delas:
- Ninguém pode fazer tanto mal ao Brasil como Lula, de Rui Ramos no Observador, onde se discute a forma como o antigo sindicalista mobilizou o PT contra as decisões dos tribunais: “Por piores que sejam os actuais governantes, nenhum pode fazer tanto mal ao Brasil como Lula. Basta que consiga divorciar uma parte da população da legalidade e da democracia.”
- Quantos vão virar Lula? , interroga-se no Expresso o seu editor de Internacional,Pedro Cordeiro. Eis uma passagem da sua análise: “24 horas depois do prazo dado pelo juiz Sérgio Moro, Lula entregou-se finalmente, Deixou pelo seu pé a sede do Sindicato dos Metalurgícos e entrou num carro da Polícia Federal. Horas antes, dirigiu-se aos apoiantes com um marcante discurso político, no qual disse "já não sou um ser humano: sou uma ideia”. Foi o discurso de um líder acossado, mas ainda líder. Tentou tirar o máximo proveito do seu carisma e popularidade. Resta saber se, ao fim de tanto tempo, de tanto mérito e tropeção, o apelo ainda cala fundo em gente que chegue”.
- A perigosa encruzilhada brasileira, de Manuel Villaverde Cabral no Observador, é o texto de um profundo conhecedor da realidade política do país irmão, um texto onde se passa em revista as diferentes opções políticas e o que podem fazer os protagonistas no terreno, isto sem deixar de sublinhar que “É muito difícil acreditar que Lula ignorasse a corrupção promovida pelo PT logo em 2005, pelo que, do ponto de vista da reconstrução de uma democracia viável no Brasil, o seu tempo e do PT já passou”.
- Eu sou Lula?, do Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto André Lamas Leite, no Público, é uma crítica ao estratégia de vitimização a que estamos a assistir: “A estratégia é velha de séculos, diria, e entre nós foi ensaiada, em tempos mais recentes, por José Sócrates, com os resultados conhecidos. Simplesmente, para nosso bem, as magistraturas souberam, em geral, afastar-se da arena política e limitar-se àquilo que efectivamente lhes compete.”
- Lula: o passado do futuro, de Álvaro Vasconcelos também no Público, uma opinião onde se carrega muito na tecla daquilo que Lula fez de bom pelo Brasil e se manifestam alguns receios: “O paradoxo brasileiro é que, como em outros países, a nova classe média, empoderada pela educação e com voz nas redes sociais, não aceita a corrupção, mas pode eleger candidatos populistas iliberais na sua revolta.”
- E agora, Brasil?, de João Marques de Almeida de novo no Observador, uma análise onde se sublinham também alguns dos riscos da actual situação, mas num registo mais crítico para com a estratégia do PT, que pode conduzir à pior das reacções: “No meio desta radicalização, alguns generais do Exército brasileiro fizeram declarações preocupantes. O que fará o Exército se houver conflitos e violência nas ruas nos próximos dias?”
Fecho este Macroscópio com mais três referências, agora três textos mais políticos e que criticam a forma como uma parte da esquerda portuguesa defende Lula por Lula ser “um dos nossos”, fechando os olhos a todas as suspeitas e a todas as provas que já foram carreadas para os tribunais não apenas neste caso, mas noutros casos de corrupção que envolvem o seu PT desde os tempos do “Mensalão”:
- A corrupção e a superioridade moral da esquerda, de Luís Rosa no Observador: “A corrupção não é de esquerda nem de direita, não é católica nem protestante, não é branca nem preta e não é do norte nem do sul. A corrupção atinge todos os países, partidos e grupos sociais.”
- De Lula a Bruno de Carvalho: olhar e não querer ver, de João Miguel Tavares no Público: “Na medida em que admitir que eles falharam é admitir que nós falhámos, preferimos fechar os olhos à realidade e aderir acefalamente a quem está sempre disponível para pensar por nós.”
- A coisa, de Helena Matos no Observador: “A coisa tornou-se óbvia em 2003 durante o processo Casa Pia. Depois veio José Sócrates e a coisa agigantou-se. A coisa primeiro estranha-se. Depois entranha-se”.
E por aqui me fico, já um pouco fora de horas e cheio de vontade de ver os episódios deO Mecanismoque ainda me faltam ver. Isto enquanto não consigo passar por uma livraria para apanhar um exemplar de Lava Jato: Os bastidores da operação que abalou o Brasil e o mundo. De resto, desejos bom descanso e boas leituras.
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