segunda-feira, 14 de novembro de 2016

OBSERVADOR

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


António Barreto começava a sua crónica desta semana no Diário de Notícias de uma forma sugestiva: “Há uma espécie de concurso entre as elites europeias e americanas de esquerda: quem insulta mais Donald Trump? Quem consegue escolher os epítetos mais violentos? Racista, boçal, cretino, sexista, corrupto, inculto e xenófobo estão entre os mais utilizados.” Claro está que esta espécie de concurso não leva a lado nenhum. Assim como nada nos ensina desqualificar os seus eleitores, ideia com que eu próprio abri uma coluna no Observador: “Lixo branco. “White trash”. Aqui chegámos. De uma forma ou outra, quem votou em Donald Trump não presta. São velhos. Incultos. Pobres. Vivem longe do cosmopolitismo dos centros urbanos. E, claro, são racistas. Machistas. Xenófobos. E por aí adiante.”

Depois do choque de uma vitória inesperada, e de uma viragem da América em direcção a um futuro desconhecido, uma boa parte da discussão nos últimos dias tem andado em torno de saber quem votou Trump e porquê. É pois por aí que abro este Macroscópio, começando por alguns trabalhos de reportagem:
  • “Agora já nos ouvem?” é uma reportagem de João Almeida Dias, do Observador, na Pensilvânia, um estado cuja viragem a favor de Trump foi decisiva para a vitória do magnata de Nova Iorque. Ele foi lá ouvir eleitores: “William diz que, tal como “milhões de pessoas”, a sua mulher foi vítima da “ditadura do politicamente correto”, que aos poucos foi “silenciando” todos os que pensam da sua maneira até ao ponto de serem esquecidos “por aqueles que estão no poder”. “Eles esqueceram-se das pessoas normais, da gente comum, durante oito anos não quiseram saber de ninguém que não apoiasse os políticos liberais e as grandes empresas que lucram com eles”, diz.”
  • The Places That Made Donald Trump President é uma outra reportagem, esta do Wall Street Journal, que foi também à Pensilvânia, aos “Rust Belt counties facing declines in manufacturing, shrinking populations, rising immigration and fraying social fabric” que se inclinaram para Trump. Como aí se explica, “The region had been drifting from its New Deal Democratic roots for years, and Mr. Trump took full advantage with its working-class voters. They had long been sympathetic to conservative arguments on issues such as gun control and abortion, while skeptical of the GOP’s perceived catering to the wealthy. Mr. Trump’s brand of populism bridged that divide.”
  • White trash, ou a pobreza enquanto tradição americana, um trabalho do Público que tem como ponto de partida um livro de J. D. Vance que já aqui referi no Macroscópio: Hillbilly Elegy, a Memoir of a Family and Culture in Crises. Um livro onde se escreve, por exemplo, e referindo-se aos pobres das zonas industriais decadentes, que "Para esta gente, a pobreza é uma tradição familiar - os seus antepassados ganhavam à jorna na economia esclavagista do Sul, mais tarde foram rendeiros, e depois trabalhadores nas minas de carvão, e maquinistas e operários fabris nos anos mais recentes. Os americanos chamam-lhes hillbillies, rednecks ou white-trash. Eu chamo-lhes vizinhos, amigos e família." Por isso Vance, nota-se mais adiante, que é um conservador assumido, “na manhã do último dia 9, acusou parte dos media e dos líderes de opinião de não entenderem que possa haver outras motivações que não o racismo a fazer com que muitos americanos brancos, pobres tivessem votado em Trump.”
  • We just saw what voters do when they feel screwed. Here’s the economic theory of why they do it é uma peça muito curiosa da Quartz onde se parte da teoria dos jogos para mostrar que é possível preferir ficar sem nada do que ter a percepção de que a divisão da riqueza é injusta, o que pode ajudar a perceber o que levou tantos eleitores a correrem o risco de um salto no escuro: “These votes on Brexit and Trump that are being so widely decried need to serve as a wake up call. Yes, trade, globalisation, immigration are good things. They have grown the pie immeasurably. But playing the ultimatum game and screwing the second player — those folks being screwed won’t care how much the pie is being grown if they feel they’re not getting a fair slice.”
  • Trump's Truthful Heresy On Globalization And Free Trade, uma opinião de Steve Keen, professor de Economia na Kingston University, que procura explicar porque é que David Ricardo não tinha razão em tudo o que escreveu sobre o comércio livre. Num texto onde até recupera as relações comerciais entre Portugal e o Reino Unido no século XIX para fazer um paralelo com as trocas hoje existentes entre a China e os Estados Unidos, mostra como os sectores industriais podem ficar a perder mesmo quando outros ganham – por enquanto: “Specialization, and the trade it necessitates, generates plenty of financial services and insurance fees, and plenty of international junkets to negotiate trade deals. The wealthy elite that hangs out in the Washington party benefits, but the country as a whole loses, especially its working class. Forget it folks, the party’s over. Go home.”
  • Trump's Voters Knew Who They Were Pulling the Lever For, de Christopher Caldwell, uma análise publicada na Weekly Standart – talvez a revista conservadora que mais se opôs, e até ao fim, a Trump – onde se mostra como esta eleição foi muito uma eleição de escolha por exclusão do que mais se detesta, uma eleição com a “mola no nariz”: “Americans voted for Donald Trump with their eyes open. Only a third considered Trump honest and trustworthy, according to NBC exit polls. Naturally those people all voted for Trump, just as the bare third who trusted Hillary Clinton voted for her. The election was decided by the unusually large group (31 percent) who didn't consider either candidate honest or trustworthy. Such voters had the option of "voting" for Jill Stein or Gary Johnson or Evan McMullin—if one wants to apply that verb to an ambulatory form of sitting out the election. But it is striking how few took it: Of the people holding their noses at the prospect of a Clinton or Trump presidency, 85 percent nonetheless voted for one of the two.”

E que fazer com este conhecimento? Que atenção dar ao que vamos compreendendo do que se passou a 8 de Novembro? Regresso às duas crónicas com que abri esta newsletter:
  • Lições da América é uma reflexão de António Barreto onde, naturalmente, também se olha para o que nos é mais próximo, nomeadamente na Europa. Um texto bastante crítico para “as esquerdas”, que se apresentam “cada vez mais como uma soma de sindicatos e de clientelas: mulheres, negros, operários da indústria, desempregados, pensionistas, homossexuais, artistas, intelectuais, imigrantes, latinos ou muçulmanos. Todas as minorias imagináveis, incluindo as mulheres que o não são. Às vezes, resulta. Mas acaba sempre por não resultar. As esquerdas abandonaram as ideias e os direitos universais dos cidadãos e valorizam as suas circunstâncias étnicas, sociais ou sexuais. Como também abandonaram a capacidade de pensar a identidade nacional. (…) Acima de tudo, a arrogância e a superioridade moral, cultural e política das esquerdas têm destes resultados: afastam-nas do povo e favorecem os inimigos da democracia.”
  • Eles falaram. Mas insistem em não os ouvir., a minha coluna de hoje, onde abro com um apelo que “Trump venceu e vêm aí novas tempestades, agora na Europa. Assim, que tal deixar de insultar e menosprezar os seus eleitores e começar a tentar perceber as (muitas) razões de quem vota nos populistas?” Num texto onde também reflito sobre o ensaio de Jorge Sampaio (que citarei mais adiante), para criticar a sua abordagem, noto: “O clamoroso falhanço da esquerda moderada, que se mostrou incapaz de representar estes novos deserdados – ocupada que estava com as minorias e as causas fracturantes – criou o caldo de cultura dos populismos nacionalistas nos Estados Unidos e na Europa do Norte e dos populismos de esquerda na Europa do Sul. Fingir que o problema não existe ou que pode desaparecer por si é uma perigosa ilusão.”

Outras duas opiniões a merecer a vossa atenção são as de...
Vasco Pulido Valente no Observador, no seu Diário relativo a 7 a 12 de Novembro, 2016, onde cruamente sublinha que “A boa da plebe andava farta de “valores” e de elevados sentimentos: só os censores do jornalismo e da política os levavam a sério. O resto da América sofria no campo, na “cintura da ferrugem” ou nas ruas da violência, onde, com ou sem Obama, começava uma guerra civil larvar. No meio deste caos, apareceu um primitivo que começou a berrar o indizível: sobre raça, sobre a igualdade de género, sobre homossexualidade e por aí fora. Os bem-pensantes pensavam que a tolerância se fazia por decreto e retórica. Tiveram uma triste surpresa. A brutalidade de Trump respondeu ao ressentimento acumulado da populaça.
Miguel Monjardino, no Expresso (paywall), Portugal na “trumpestade”, na qual se sublinha que “O eleitorado populista perdeu a confiança nas suas elites, partidos políticos tradicionais e instituições. Para estas pessoas, a globalização, a tecnologia, a imigração, a demografia e as dificuldades orçamentais põe em causa a sua cultura e nega-lhes um futuro económico. Os populistas são democratas mas acham que a democracia liberal é incapaz de resolver os seus problemas. É um luxo que serve as elites. Coisas como o pluralismo político, o Estado de Direito ou as minorias não lhes interessam. Anseiam é por um líder que resolva as coisas de uma forma rápida e decisiva a seu favor. É por isso que Donald Trump prometeu no seu primeiro discurso após a eleição duplicar o crescimento económico dos EUA.”

Olhando agora um pouco mais para o futuro é indispensável ler Francis Fukuyama no Financial Times, US against the world? Trump’s America and the new global order, tanto mais que “In 1989, the political scientist said liberal democracy signalled ‘the end of history’” e agora se vê obrigado a repensar tudo, ou quase. Duas passagens significativas:
  • Social class, defined today by one’s level of education, appears to have become the single most important social fracture in countless industrialised and emerging-market countries. This, in turn, is driven directly by globalisation and the march of technology, which has been facilitated in turn by the liberal world order created largely by the US since 1945.
  • The Democratic party had become the party of identity politics: a coalition of women, African-Americans, Hispanics, environmentalists, and the LGBT community, that lost its focus on economic issues. The failure of the American left to represent the working class is mirrored in similar failures across Europe. (…)But the broader failure of the left was the same one made in the lead-up to 1914 and the Great war, when, in the apt phrase of the British-Czech philosopher, Ernest Gellner, a letter sent to a mailbox marked “class” was mistakenly delivered to one marked “nation.”

Uma outra análise interessante é a da Reiham Dalan no Wall Street Journal pois nela considera-se que há um precedente para o estilo e as prioridades de Trump, um precedente algo inesperado: Donald Trump as Nixon’s Heir. O autor defende que “The clearest precedent for Trump is the anti-elite, big-government conservatism of NixonThe clearest precedent for Trump is the anti-elite, big-government conservatism of Nixon”. Mais: “Nixon believed that America had been betrayed by feckless, out-of-touch elites who had allowed the country to descend into chaos, and he effectively exploited both racial desegregation and crime as wedge issues. He promised to use the power of government on behalf of decent, law-abiding people—but not to dismantle the power of government. If all of this sounds vaguely Trumpian, it should. Donald Trump is Nixon’s obvious heir.” Para ilustrar esta tese é usado um gráfico onde os presidentes republicanos (e alguns candidatos) são arrumados em quatro quadrantes de acordo com a sua rejeição das elites e a sua aceitação de um papel alargado do governo e do Estado. Por este critério, Trump e Nixon ficam sozinhos num mesmo quadrante.


A seguir igualmente a prudência de Henry Kissinger que deu uma longuíssima entrevista à The Atlantic – The Lessons of Henry Kissinger –, quase toda ela feita antes das eleições, mas que ainda permitiu uma espécie de post-scriptum onde o velho, e sempre controverso, estadista e académico faz a sua previsão do que vem aí: “He told me that he was expecting other nations, particularly the great powers, to enter a period of intense study, in order to understand how they should respond to a Trump presidency. He also said he expected the Islamic State, or other similarly minded jihadist organizations, to test Trump early by launching attacks, in order to provoke a reaction (or, he suggested, an overreaction).”

Regresso agora à Weekly Standart, onde William Kristol – que combateu Trump até ao fim, sendo muito atacado por isso – escreve um texto algo melancólico mas significatico: Onward. Ou seja, seguir em frente. Por outras palavras: “This isn't a bad stance for conservatives in the face of an incoming Trump administration. "Onward" implies resisting the temptation to indulge in a warm bath of nostalgia for the past. It implies resisting the temptation to indulge in lamentations or recriminations or mindless affirmations in the present. It implies resisting the temptation to indulge in the odd attraction of fatalistic surrender to a dark future. We are conservatives—American conservatives, which means we are classical liberals with both a respect for the wisdom of the past and an openness to the lessons of the present. We are neither progressives with a faith in History nor populists with a faith in Vox Populi. If conservatives today have an orthogonal relationship with the main tendencies in American politics—well, that means the insights of American conservatism are more necessary than ever.” Juntamente com este texto também será de ler João Carlos Espada, no Observador, que em Afinal, o “sistema” não estava “viciado” defende que “Não vejo motivo para auto-críticas do chamado “establishment” que era contra Trump: o facto de alguém ganhar eleições não implica que todos os derrotados passem a concordar com ele. Apenas têm de aceitar a derrota e… continuar a criticá-lo, se acharem que ele merece ser criticado. Só nas ditaduras é que a vitória de um candidato implica a unanimidade nacional em torno do vencedor.

A fechar duas referências ao tema do populismo. A primeira é a remissão para o já citado ensaio (longo) de Jorge Sampaio editado hoje pelo Público, A nova Europa dividida num contexto internacional de incertezas. E nós?, de que destaco a passagem onde o antigo Presidente da República faz a ponte entre o que se passou nos Estados Unidos e o que se pode passar na Europa: “Olhando para o resultado das eleições presidenciais americanas, creio que há razões tangíveis que reforçam inquietações e pessimismo, pois está claro que todas estas tendências vão no mesmo sentido, reforçando-se negativamente, sendo impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo.”

Por fim, Democracia e populismo, uma opinião de Vítor Bento no Observador que tem especial interesse por nos chamar a atenção para a forma como uma velha democracia como a inglesa funciona, tudo isto a propósito da decisão judicial que vai levar, em princípio, a que seja o Parlamento a ter a última palavra sobre o Brexit. Nota o autor que, “Num tempo dominado pelas emoções, acirradas por activistas desenfreados e de desvio totalitário, é reconfortante ouvir a consciência da mais antiga democracia funcional contrapor-se à deriva populista”.

E pronto, por hoje é tudo. Já me estendi demasiado, mas os tempos e as muitas leituras apenas tornaram difícil a escolha. Tenham bom descanso, boas leituras, e espero que as minhas sugestões os tenham ajudado a encontrar pistas para perceber melhor estes dias complexos que vivemos.

 
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