No dia em que foi despejado da casa de Arroios, onde vivia com a mãe, a irmã e o primo, Sérgio fez as malas a correr e acabou a dormir numa pensão na zona das Avenidas Novas, num quarto demasiado pequeno para quatro pessoas e pago pela Santa Casa da Misericórdia. A ordem de despejo apanhou a família de surpresa em 2007: a casa onde viveram toda a vida foi vendida e o novo senhorio decidiu pô-los na rua, nem quinze dias depois de Sérgio ter feito o funeral à avó.
Passaram oito anos e a vida do concorrente que anteontem à noite “limpou” quase todas as perguntas do concurso “Quem quer ser milionário”, na RTP1, nunca mais se voltou a endireitar. Sérgio Silva – um autodidacta “apaixonado por Ciência, História e Astronomia” – já viveu em três pensões diferentes. Há três anos, a mãe, diabética e com osteoporose, ficou numa cadeira de rodas e acabou internada num lar. Agora, o génio que respondeu a 12 perguntas sem qualquer ajuda e que arrasou com uma médica neurologista e um doutorado em Ecologia, vive num apartamento partilhado com outras 12 pessoas e continua a tomar conta do primo, que é autista e com quem divide o quarto.
Os 10 mil euros do concurso vieram a calhar: está desempregado há anos, recebe 178 euros do Rendimento Social de Inserção, paga 150 pelo lar da mãe e garante que não consegue arranjar trabalho, apesar de enviar currículos “às centenas” e de acumular formações do Centro de Emprego. A mais recente foi um curso de espanhol – que durou três meses, mas não serviu para nada. Quase todas as semanas, é recusado numa entrevista de emprego. A última foi para a Starbucks, que não o chamou. Há uns tempos, a McDonald’s também não o quis recrutar. “Nem para um part-time”. A culpa, diz, é da idade – já tem 36 anos – e da falta de estudos. É que Sérgio Silva pode até ter uma cultura geral fora do normal e protagonizado um momento “Slumdog Millionaire” na televisão portuguesa, mas nunca chegou a acabar o secundário.
Na manhã em que se ia matricular no 12º ano, foi atropelado por uma Suzuki 1100 que seguia a grande velocidade pelas ruas de Lisboa. Ficou mais de um mês sem andar e quase meio ano a movimentar-se com dificuldade e apoiado numa bengala. Mesmo assim, continuou a ir à escola – e era bom aluno –, mas a medicação para as dores era tão forte que adormecia nas aulas. Chumbou e nunca mais voltou a estudar. Decidiu tornar-se num autodidacta. Aprendeu a traduzir artigos técnicos de Ciência e Astronomia, fala e lê em quatro línguas e anteontem respondeu sem precisar de pensar muito a perguntas sobre Geografia, História, Literatura, Música Clássica, Mecânica ou Ciência. Monopolizou o concurso, deixou para trás os outros cinco concorrentes – que mal participaram – e só não levou 100 mil euros para casa porque hesitou numa pergunta: “De que país é originário o queijo Herve de Denominação de Origem Protegida?”.
Não ter respondido “Bélgica” foi suficiente para baixar o prémio a concurso.
E os 100 mil euros já tinham destino: iam servir para comprar “um T0, daqueles desvalorizados” para viver com o primo e trazer a mãe de volta para casa.
O programa foi gravado há dois meses e Sérgio confessa que já gastou parte dos 10 mil euros. O dinheiro serviu para um roupeiro, um computador, pagar dívidas da irmã e comprar “um stock razoável de comida” para ter no quarto. “Às vezes vou comer àquelas carrinhas que distribuem refeições na rua, mas já me aconteceu ficar doente. Cozinhando, sei o que estou a comer”, explica. Mas há meses em que a única forma de ter acesso a uma refeição é mesmo recorrer à ajuda de rua. Depois de pagar o lar da mãe, Sérgio fica com apenas 28 euros para gerir até ao fim do mês, a que se juntam “uns trocos” que sobram de um subsídio que recebe para comprar fraldas para a mãe. Pelo meio vai fazendo “uns biscates” nas traduções e na área da Informática.
“Mas é muito difícil arranjar coisas para fazer”. Os 300 euros do quarto são pagos pela Santa Casa, com um vale que levanta todos os meses e depois entrega ao senhorio.
Mesmo sem dinheiro, não deixa de ler e de aprender. Conta que lê revistas “científicas e internacionais” velhas que conhecidos já não querem, lê livros emprestados e e-books à borla e passa horas frente à televisão. O apartamento partilhado tem TV cabo e, por isso, não perde os “melhores documentários” do National Geographic, do Odisseia ou do Canal História. Os discos dos Queen, dos Pink Floyd, dos Beatles, do “metal nórdico gótico” e de música clássica de que gosta ouve-os na internet, enquanto actualiza os blogues em que escreve – um é sobre Astronomia.
Também diz que se interessa pelo universo e pelo “funcionamento do mundo”, apesar de só ter saído de Lisboa duas vezes na vida. A mãe conta-lhe que quando tinha um ano o levou ao Porto e, noutra ocasião, visitou uma prima no Algarve. Tirando isso, só foi a Cascais e a Sintra. Se pudesse viajar, ia ao Porto, “pela gastronomia”, e ao Minho, porque a avó fez uma excursão por terras minhotas, há muitos anos, e contou “maravilhas”. Há outra viagem, mas essa é “a utopia total”. O maior sonho do “Slumdog Millionaire” português é um dia visitar o Museu da Ciência em Paris.
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ANTÓNIO FONSECA
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