Há poucas semanas, minutos antes do clássico que decidiria o título, alguns adeptos presentes no estádio exibiram uma tarja que dizia “Maior que Portugal”. A minha costela de hooligan romântico exultou educadamente perante a actualização do conhecido slogan “O Maior de Portugal”. Assim sim. Inchem, amigos portistas e demais adeptos da modalidade. Nisto passaram-se alguns segundos e, tal como no sketch do Gato Fedorento, logo fui mandado parar pela polícia do bom senso. Que ímpeto expansionista foi este? Veia de descobridor ou ADN de taberneiro? Nem foi preciso soprar no balão: a taxa de bazófia disparou bem acima dos limites legais. Logo eu que me julgava imune à falta de noção, essa epidemia que tão bem descreve um dia passado no mundo em 2018.
Depressa caí em mim e olhei em redor para ver se alguém tinha reparado na minha figura vagamente triste. Percebi que ninguém tinha reparado. Felizmente a minha interpretação algo jagunça não chegara a abandonar as imediações do cérebro. Apressei-me a condenar o excesso algo bacoco da tarja, observando no entanto que o seu único defeito fora ter passado da ideia à execução. É um instante fatal que sempre separa a burrice da infelicidade, quiçá da boçalidade, que hoje se vê acometido pela vertigem das redes sociais. Imaginem que, nesse preciso instante, um amigo ou camarada adepto tinha interrompido para dizer “espera lá, isso talvez seja demais… fica antes o maior de portugal”. Mas nem sempre os correligionários estão lá para nos ajudar. O silêncio, que tantas vezes é de ouro, neste caso foi de lata, ou de bronze. A tarja acabou por ver a luz do dia. O clássico, esse, terminou como se sabe. Quer o destino que o Benfica esteja hoje em vias de acabar num indigno terceiro lugar. Há quem lhe chame crueldade, mas a crueldade não é, certamente, e a injustiça não acontece assim. É mesmo o karma. Um pentamelão.
No fundo, se todos nos limitássemos a guardar para nós pensamentos pouco inspirados ou inadequados, se nos limitássemos, porque não a partilhá-los com alguns correligionários capazes de compreender o contexto, talvez evitássemos eternizar tanta patacoada, ou lhes déssemos uma última oportunidade antes de passarem da má ideia à execução, o que nas redes sociais se traduz frequentemente em passar da intimidade à figura de urso. É como se caíssemos nas armadilhas montadas pelo nosso próprio cérebro, que se convence da importância ou da acutilância intelectual do que tem para dizer. Ainda que lutemos estoicamente contra isso, é quase sempre falso que tenhamos alguma coisa importante para dizer ao mundo. Estão à vontade para usar esse argumento contra mim.
Vem isto a propósito da reacção de milhares de benfiquistas nas redes sociais ao facto de ontem, em pleno Estádio do Dragão, o treinador campeão ter festejado na companhia dos que mais ama. Para quem não sabe, o Rodrigo é um dos cinco filhos de Sérgio Conceição e representa a equipa júnior do Sport Lisboa e Benfica. Foi vingando a tese de que um atleta do clube não poderia pisar assim o relvado do Dragão e eu pergunto: que adeptos são estes que condenam um atleta por querer estar com o pai num dos momentos mais importantes da sua vida? Será que esta gente tem noção dos limites do clubismo? É uma pergunta retórica. Está visto que não.
Por isso, apelo a um último reduto. Relembre-se o contexto, sem caridade nem ignorância, simplesmente com um pingo de humanidade. Sérgio Conceição perdeu o pai aos dezasseis anos de idade. Perdeu a mãe dois anos depois. É um de oito irmãos que, segundo ele, viveram dias muito complicados para fazer a sua vida funcionar. Não é difícil perceber porquê. Construiu uma família, linda por sinal. Tem cinco filhos. Agora coloquem-se no lugar de um filho educado por este pai. Eu posso não gostar do clube representado por Sérgio Conceição, posso reconhecer defeitos nos dirigentes do seu clube, quiçá até em alguns dos seus adeptos, mas, talvez por já ser pai de dois rapazes, sou incapaz de olhar para a imagem de Sérgio Conceição com a sua família, conhecendo a sua história de vida, e não ficar comovido. É que nem me passou pela cabeça criticar o filho dele.
Custa-me perceber como é que chegámos aqui. Neste caso, trata-se de uma comoção que deve tanto ao respeito pelo homem quanto à felicidade associada à conquista de um título nacional. Não deveríamos ter que ser adeptos do Futebol Clube do Porto para ver ali um homem que, goste-se ou não, trabalhou que se desunhou para chegar onde chegou. Não deveríamos ter que ser adeptos do Futebol Clube do Porto para conseguir reconhecer a importância simbólica daquele momento, mesmo que a contra-gosto clubístico. Como os bons entendedores nem sempre entendem meias palavras, Sérgio Conceição fez questão de explicar, ainda na noite de sábado, quando dedicou a vitória aos seus falecidos pais, momentos antes de deixar que a emoção levasse a melhor. Neste caso, fez bem em não guardar para si.
Estou confiante de que há em todos os adeptos incapazes de ver isto uma réstia de bom senso ou decência que acabará por imperar sobre as suas costelas de hooligan. Escusam de dizer que pensaram melhor e que agora concordam. Basta guardarem para vocês. Quanto ao Benfica, se quiser ser maior que Portugal, terá que avançar legalmente com vista à definição de um território independente. A tarefa não se antevê fácil. Talvez seja melhor começarmos por ser maiores que o Porto - dentro de campo, onde muitos de nós se comoveram pela primeira vez, de felicidade ou tristeza.
Recolhido através de TRIBUNA EXPRESSO, hoje dia 8-5-2018
ANTÓNIO FONSECA