A não ser que aconteça uma surpresa enorme, Jair Bolsonaro e Fernando Haddad serão os dois candidatos mais votados na primeira volta das eleições presidenciais brasileiras, que têm lugar este domingo. Ambos terão de disputar depois uma segunda volta, que terá lugar passadas três semanas. As sondagens mais recentes acentuaram a clivagem entre os dois candidatos, que têm ambos elevadíssimas taxas de rejeição, indicador. A polarização do eleitorado é enorme.
Como se chegou a este ponto? E será que O Brasil corre mesmo o risco de uma ruptura radical? Este foi precisamente o ponto de partida de mais um Conversas à Quinta, onde eu estive esta semana com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto a tentar compreender como é que, no país irmão, o centro político colapsou e estamos confrontados com um país petista e lulista entrincheirado atrás de Fernando Haddad e um outro o país ferozmente anti-petista que parece condenado a Jair Bolsonaro, o candidato que lidera as sondagens. Tudo num clima em que volta a falar-se dos militares, mesmo que estes tenham estado menos presentes na política brasileira do às vezes se pensa (em dois séculos intervieram quatro vezes, o que para os padrões da América Latina nem é muito). A polarização é contudo tão grande que a dúvida é se o Brasil vai aguentar a tensão, sobretudo se vai aguentar a tensão sem violência política – porque da outra violência já tem que sobre, uma vez que há 60 mil assassinatos por ano no país, 164 por dia, mais ou menos tantas mortes violentas quantas as registadas num ano inteiro em Portugal. De tudo isto se fala neste Conversas à Quinta, como sempre muito didático e informativo, e que também estará disponível em podcast aqui.
Este tema da segurança é de resto o que também é destacado pelo Financial Times em Brazilians in search of security look to Jair Bolsonaro, uma respostagem onde se nota algo verdadeiramente surpreendente: “More Brazilians were murdered in the decade to 2016 than in Syria’s civil war”. Ora “Mr Bolsonaro’s Rio constituency is the epicentre of this crisis, with gunfights worsening in the city’s slums, or favelas.”
Mas se a segurança tem sido um tema central da campanha eleitoral, nenhum candidato tem sido sincero sobre como tenciona enfrentar os dilemas económicos e financeiros do país – e estes são gigantescos. Disso mesmo nos dão conta artigos no Wall Street Journal, e na The Economist. No primeiro destes jornais, em In Brazil, Big Plans and No Money, escreve-se que “Just days before Sunday’s pivotal presidential election, Brazilian candidates are promising to crack down on spiraling violence, improve weak educational and health systems and shore up the country’s crumbling infrastructure. But none of the leading candidates mention Brazil’s biggest problem: There is no money to do any of that. After years of overspending followed by a deep recession, Brazil’s next president will run a government living on borrowed money to pay salaries and pensions and keep schools and hospitals open. Brazil’s public spending outstrips revenue by an amount equal to 7% of annual economic output, double the rate of last year’s U.S. budget deficit.” Com um défice público desta dimensão não parece haver forma de fugir à austeridade orçamental, só que “If there are questions about Mr. Bolsonaro’s commitment to austerity, there is outright alarm over his major opponents, especially former São Paulo Mayor Fernando Haddad.”
Pode ser que a realidade se sobreponha às promessas de campanha, mas a verdade é que, explica a revista inglesa, os compromissos com o actual sistema de pensões são tão elevados que há uma espécie de “parede orçamental” com que qualquer governo chocará daqui por alguns meses. Isso mesmo se explica em Brazil is shaping up for a unique kind of financial crisis, um texto algo melancólico onde se expressam poucas experanças de que o sistema tenha energias suficientes para evitar o desastre: “Nothing is ever entirely new. The symptoms of Brazil’s past crises were high inflation and external deficits. But below the surface, the underlying problem was lax fiscal policy, says Armínio Fraga of Gávea Investimentos, a hedge fund, and a former governor of Brazil’s central bank. In the slow-burning sort of crisis, said Dornbusch, a mid-course correction can prevent the worst. Brazil might yet manage that. If it cannot, events are likely to speed up dramatically.”
Este quadro de emergência económica agrava-se se pensarmos que “Nem Haddad nem Bolsonaro representam votos de pacificação, os seus governos serão votados ao fracasso”, como pensa Valmir Lopes, professor na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, entrevistado por Clara Barata do Público. Na opinião deste politólogo brasileiro “A simpatia e a antipatia pelo PT tomaram conta do debate público, e está-se a fazer uma campanha eleitoral sem temas. Ninguém imaginava que se iria chegar a este ponto de inviabilização do próximo governo – nenhum candidato na segunda volta conseguirá mais de 60% dos votos. É impossível neste quadro algum candidato ganhar por uma margem muito grande. Assim, não poderá apresentar propostas de reformas impopulares, como a reforma da previdência, que é urgente, mas gera muita antipatia, em parte porque há grande desinformação. Em breve, o país estará a canalizar todo o dinheiro cobrado pelos impostos para pagar aos reformados.”
Este cenário de paralisação e polarização também foi relatado pelo pela Quartz, em Brazil’s presidential election is so crazy that it’s even drawing comparisons to the US, um texto onde se sublinha que muitos brasileiros podem pura e simplesmente ficar sem escolha na segunda volta destas presidenciais: “[Anthony Pereira, director of King College’s Brazil Institute in London], warns that if voters are left with a choice between a far-right extremist and a man seen as a symbol of establishment-sanctioned corruption, Brazilian democracy may suffer: ”Even if people vote, and if we have the second round that everyone is predicting now … you’re going to have up to a third, maybe a slightly larger, portion of the electorate that doesn’t accept the election of one of these two candidates.” Algo que a reportagem depois ilustra com um caso concreto: “Atamai Moraes, a 23 year old medical student from the southern city of Curitiba, tells Quartz that he plans on voting null, or anular, if faced with a choice between Bolsonaro and Haddad in the second round. “Anular is a sign of contempt, a sign of not agreeing with those candidates and their two positions,” he writes over WhatsApp. “There is no actual ideal outcome. Either possibilities are hugely capable [of] irreversibly impair[ing] our democracy.”
Para se ter chegado a este ponto muito contribuiu o colapso do centro político, e neste do PSDB, o partido da social-democracia brasileira, o partido de Fernando Henrique Cardoso, o partido cujo candidato, Geraldo Alckmin, está em quarto lugar nas sondagens e é, como nos contou no Observador João de Almeida Dias, “o gelado mais sensaborão que alguém pode imaginar”. O maior partido do Brasil corre o risco de quase desaparecer nestas eleições, algo que leva Carlos Ranulfo Meloa interrogar-se na edição brasileira do El Pais: E agora, PSDB? Este analista avança uma explicação: “A estratégia traçada após a eleição de 2014 terminou sendo pródiga em efeitos não esperados e negativos para o partido : (a) abreviou o calvário pelo qual passaria Dilma tendo que governar sem base no Congresso e em um quadro de aguda recessão; (b) permitiu ao PT passar a um terreno que conhece bem —o da oposição; e (c) levou os tucanos a participar do impopular governo Temer. Desse modo, enquanto o PT se recompunha, reorganizava suas forças junto à sociedade civil e encontrava um discurso político eficaz, o PSDB, na condição de sócio menor de Temer, assistia e pagava o ônus da lenta decomposição do governo.”
No Público Francisco Assis critica o PT por no passado ter seguido uma estratégia populista contra o PSDB de Fernando Henrique Cardoso – a figura política brasileira porventura ideologicamente mais próxima do eurodeputado socialista – mas, ao contrário daqueles eleitores que anunciam que vão anular o voto, faz uma escolha, optando por Fernando Haddad, a melhor solução política para o Brasil. Na sua opinião, este, “Uma vez eleito terá condições para estabelecer compromissos com outros sectores da esquerda democrática e mesmo com as áreas mais progressistas do centro político brasileiro, de modo a liderar um projecto de modernização do país sem preconceitos ideológicos primários nem aventureirismos irresponsáveis.”
No Brasil o receio de muitos é que Haddad esteja hoje prisioneiro do lulismo, já que a sua candidatura é apenas a face possível do antigo presidente preso por corrupção. E o receio ainda maior é que, uma vez eleito, siga o apelo da sua base eleitoral e indulte Lula da Silva, um gesto que poderia desencadear uma reacção militar. Talvez por isso se fale de novo, como aqui no El Pais, de La alargada e incómoda sombra de los militares en las elecciones brasileñas, considerando que “El Ejército recobra protagonismo en el mayor país de América Latina por primera vez en 30 años de democracia”.
Seja lá como for este domingo apenas se joga o primeiro acto pois ninguém imagina que algum dos candidatos reúna mais de metade dos votos para ser eleito logo na primeira volta. Teremos depois mais três semanas intensas e um resultado final que, neste momento, parece totalmente em aberto. Mas por hoje é tudo. Tenham um bom fim-de-semana, incluindo nele o feriado do 5 de Outubro. E com o bom tempo ainda a fazer-nos companhia.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio.