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FILIPE SANTOS COSTA
JORNALISTA DA SECÇÃO POLÍTICA
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Já nem os apoiantes de Trump o percebem
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Bom dia.
"Quero trazer as nossas tropas de volta a casa", dizia, há menos de duas semanas, Donald Trump, sobre os militares norte-americanos destacados na Síria. A guerra estava ganha, dizia ele, tinham derrotado o Estado Islâmico, dizia ele, "está na hora" dos EUA se preocuparem mais com questões internas e menos com serem os polícias do mundo. Já se sabe que o que ele diz não se escreve, e que o que ele pensa é pouco pensado. Nem duas semanas passadas, tudo mudou: na sexta-feira, os EUA comandaram um ataque contra a Síria (com a colaboração da França e do Reino Unido), na sequência de acusações de ataques químicos do regime de Bashar al-Assad contra civis.
Trump foi rápido a declarar "missão cumprida", mas mais parece uma "missão comprida", como escreve o Ferreira Fernandes. A prova? Emmanuel Macron veio anunciarque, afinal, os norte-americanos já não vão sair da Síria. "Nós convencêmo-lo de que era necessário ficar, permanecer de maneira duradoura", garantiu o presidente francês, revelando as conversas que manteve com Trump.
Nikki Haley, a embaixadora de Trump nas Nações Unidas, passou o dia de ontem a tentar fugir às perguntas para que parece não ter ainda resposta (os EUA saem ou ficam na Síria? Vão retaliar sempre que Assad voltar a usar armas químicas contra os sírios?), mas já anunciou os próximos dois passos: antes de mais, os Estados Unidos vão avançar com novas sanções à Rússia, para punir o seu apoio ao regime sírio. Um dos alvos das sanções serão companhias russas que tenham contribuído para o arsenal químico de Damasco. (Por falar em Rússia, Putin já veio avisar que "se estas ações, cometidas em violação das regras da ONU, continuarem, será inevitável o caos nas relações internacionais”.)
O outro passo anunciado por Nikki Haley acontece já esta segunda-feira: depois da Rússia ter falhado uma condenação do ataque aliado na ONU, EUA, França e Reino Unido vão apresentar uma proposta de resolução no Conselho de Segurança das Nações Unidas que determine a obrigação da Síria eliminar todo o seu arsenal químico, bem como uma investigação mais aprofundadaao uso desse armamento por parte das tropas de Assad, que permita saber quem foram os responsáveis do ataques em Douma.
Pode ler aqui um bom ponto da situação sobre as indecisões e incoerências de Washington em todo este processo, referindo também o braço de ferro que se desenrola nos bastidores entre Trump e os responsáveis do Pentágono.
E há outro dano colateral deste ataque. A direita isolacionista norte-americana, que elegeu Trump porque este prometia "America first", não gostou desta guinada da Casa Branca. E esses apoiantes não tardaram a criticar os ziguezagues do presidente. Vale a pena ler este texto da Vox sobre a reação dos media conservadores à "traição" de Trump. Com pouco mais de um ano em funções, o presidente ainda não construiu "o muro", e continua a comportar-se como "polícia do mundo" - e não foi para isso que a direita o elegeu.
Por cá, o Governo compreende e apoia a operação militar. E conta com o apoio da oposição, e a oposição dos seus apoiantes. |
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OUTRAS NOTÍCIAS
Rui Rio comentou ontem o Programa de Estabilidade apresentado por Mário Centeno na sexta-feira. E não foi para o elogiar. Apesar de concordar com a trajetória do défice (o ponto que mais separa Centeno do PCP e do BE), o líder do PSD considera que o objetivo de 0,7% é criticável por falta de ambição - e estende essa crítica a todo o documento. Rio garante que, ao contrário do que o Governo apregoa, "não há qualquer milagre económico", o que há é falta de ambição no crescimento, falta de ambição na redução do défice, e falta de vontade para aumentar os salários da função pública. A defesa da atualização salarial dos funcionários públicos foi a maior novidade do discurso do líder social-democrata. Segundo o i, esta novidade surpreendeu o CDS e os "passistas" do PSD.
Por outro lado, Rio voltou a um tema caro a Pedro Passos Coelho - a exigência de informação sobre quem são os grandes devedores da Caixa Geral de Depósitos -, carregando bastante nas críticas. E, de repente, o discurso de Rio sobre a banca parecia ultrapassar pela esquerda o PCP e o BE.
Rio falou no final do congresso da JSD, que tem nova liderança. A importância relativa desta notícia mede-se facilmente: sabe quem era o líder anterior? Pois… As juventudes partidárias há muito deixaram de ter a relevância de outros tempos. Em todo o caso, os novos tempos na JSD escrevem-se no feminino — Margarida Balseiro Lopes, deputada eleita por Leiria, é a primeira mulher a dirigir a organização. E não apoiou Rui Rio nas últimas diretas.
Ainda sobre o Programa de Estabilidade: segundo o Público, Centeno quer bater o recorde europeu de redução da dívida.
Depois da manchete do Expresso sobre deputados das ilhas que recebem o reembolso de viagens que não pagam, Carlos César, um dos deputados apanhados neste esquema, fez um "esclarecimento". Mas não esclarece o que importa: fala muito sobre o subsídio que recebe legalmente da Assembleia da República para se deslocar aos Açores, mas nada diz sobre o facto de, depois, pedir ao Estado o reembolso de viagens que nunca pagou do seu bolso, aproveitando-se do subsídio de mobilidade de que beneficiam os cidadãos das ilhas. A resposta de César tem, porém, a vantagem de confirmar o que o Expresso escreveu - o presidente do PS nem tenta desmentir que recebe mesmo duas vezes pela mesma viagem. "Este Parlamento envergonha-nos", escreveAlexandre Homem Cristo.
Deve ficar hoje fechado, em linhas gerais, o acordo entre o Governo e o PSD sobre descentralização. E o acordo sobre os fundos europeus também está por dias, apontando para a reivindicação de 25 mil milhões de euros em Bruxelas, disse ontem Marques Mendes na SIC.
Marcelo Rebelo de Sousa inicia hoje uma visita de três dias a Madrid. E o DN publica uma entrevista a Mariano Rajoy.
O Porto venceu ontem o Benfica, na Luz, com um golo de Herrera ao minuto 90. Com esta vitória, os portistas voltaram ao primeiro lugar na Liga e só dependem de si para interromper a sequência de quatro campeonatos nacionais conquistados pelo Benfica.
Numa altura em que se sucedem as notícias sobre cancelamentos de voos da TAP, o Negócios revelaque a companhia aérea teve um lucro histórico de 100 milhões de euros.
Se é cliente da Galp, tenha atenção à notícia sobre atrasos nas faturas de luz e gás.
O Público de hoje tem uma bela reportagem sobre o fim da era Castro em Cuba. Da Rita Siza e do Adriano Miranda.
Manuel Luís Goucha casou. Beyonce arrasou.
AS MANCHETES DE HOJE
Público: "Autoeuropa acelera produção dos T-Roc e faz sair 29 carros por hora"
Diário de Notícias: "Aumento de vagas nas creches de Lisboa só se notará em 2020"
Jornal de Notícias: "Entrega de armas atinge recorde"
i: "Quando foi aprovada a lei dos maus-tratos, houve mais gente a abandonar animais"
Negócios: "TAP com lucro histórico de 100 milhões"
Correio da Manhã: "Predador do Facebook despe 22 rapazes"
O QUE VOU LER
A série mais viciante da atualidade não é "La Casa de Papel", nem passa no Netflix. É norte-americana e está disponível diariamente nos canais de notícias, nos jornais e nas redes sociais. Chama-se ‘A Loucura do Presidente Trump’ e, embora tenha tons de comédia negra, tudo indica que se tornará uma tragédia.
O mais recente episódio desta novela da vida real será posto à venda amanhã: as memórias de James B. Comey, o homem que chefiava o FBI até Donald Trump o demitir em maio do ano passado. Comey, que os relatos independentes descrevem como um cavalheiro e um servidor da coisa pública, era o homem errado no lugar errado: foi ele quem, a onze dias das eleições presidenciais de 2016, revelou que tinha sido reaberta a investigação federal aos e-mails de Hillary Clinton, dando com isso um renovado fôlego à narrativa de Trump sobre a “crooked Hillary”, e, muito provavelmente, inclinando de vez o resultado para o lado dos republicanos. É verdade que, em cima das eleições, Comey declarou que tinha voltado a encerrar a investigação, ilibando Clinton, mas o mal já estava feito.
Durante algum tempo Comey foi o homem mais odiado pelo Partido Democrata, mas tornou-se o alvo preferencial de Trump mal este tomou posse e tentou que o diretor do FBI lhe fizesse uns jeitinhos, como deixar em paz o novo conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, Michael T. Flynn (que acabou por ser afastado por ser a ponta solta que permitiu puxar o novelo do envolvimento russo na manipulação das eleições de 2016— e essa é toda uma novela paralela, de contornos ainda por compreender, que daria um excelente spin-off da trama principal).
O homem que tramou Hillary e foi demitido antes que pudesse tramar Donald escreveu as suas memórias. Já tenho na minha estante um cantinho para “A Higher Loyalty”, ao lado de “What Happened”, de Hillary Clinton, e do ultra-polémico “Fire and Fury”, de Michael Wolff.
O que já foi antecipado sobre o livro foi suficiente para o catapultar para o top de vendas mesmo antes de chegar às livrarias, e para desencadear o fogo e a fúria de Trump. O presidente dos EUA atacou, como de costume, no Twitter, chamando tudo a Comey, de incompetente, fraco e desonesto até “slime ball”, uma magnífica expressão, quase intraduzível, que se aplica a gente repulsiva, mentirosa e mal formada, mas que também carrega o sentido literal (e muito gráfico) de “bola de lodo”, ou de “gosma”. E tudo isto, ainda antes da entrevista que Comey deu na noite passada à ABC, em que reitera que Trump é "moralmente incapaz" e que poderá ser chantageado pela Rússia.
Para além do relato factual dos encontros com Trump e outras interações com a Casa Branca (que o New York Times classifica como detalhado, bem sustentado e credível), o ex-diretor do FBI faz um retrato esmagador do homem mais poderoso do mundo. Trump não só é alguém “sem ética, desligado da verdade e dos valores institucionais”, como atua à semelhança de um padrinho da máfia. Comey sabe do que fala, pois teve de lidar com genuínos mafiosos quando foi procurador federal. “O círculo silencioso de consentimento. O chefe a controlar tudo. Os juramentos de lealdade. A visão do mundo nós-contra-eles. A mentira sobre todas as coisas, grandes e pequenas, ao serviço de um qualquer código de lealdade que põe a organização acima da moralidade e acima da verdade” (tradução minha).
“Estamos a viver tempos perigosos no nosso país, com um ambiente político em que os factos básicos são contestados, as verdades fundamentais são questionadas, a mentira está normalizada e os comportamentos sem ética são ignorados, perdoados ou recompensados”, escreve Comey. E, com isto, mais do que a radiografia de um país ou de uma administração, James Comey parece escrever sobre o estado do mundo. Sim, vivemos tempos perigosos.
Fico por aqui. Tenha uma excelente semana. |
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