Eu sei: o final de Agosto aproxima-se e, com a chegada de Setembro,
acaba o tempo mais tradicional para as férias. Mas o Macroscópio
atrasou-se, pelo que esta é a última destas newsletters antes de uma
interrupção para merecido descanso. Também por isso não será
monotemática, antes combinará uma discussão destes dias – a sobre o
burkini – com algumas reflexões sobre a sociedade dos nossos dias e o
lugar que nela ocupam as mulheres, e o sexo. Reflexões interessantes,
controversas e perturbadoras, como verão.
O Conselho de Estado francês
suspendeu esta sexta-feira a decisão de uma comuna do sul de França de proibir o uso de burkini nas suas praias, uma decisão que
desagradou à direita francesa e sublinhou as divisões na esquerda,
nomeadamente no seio de governo de Manuel Valls. O Observador procurou
hoje enquadrar esta discussão no debate mais geral sobre a integração
dos muçulmanos na Europa, em
Tapar ou destapar? Guerra ao burkini em 3 questões, a saber:
Onde é que isto começou? Proibir o burkini é eficaz? E o hábito de uma freira, não é igual? Interessante,
antes de passar à troca de argumentos, é conhecer o que diz a criadora
desta peça de vestuário, a australiana Aheda Zanetti que, em entrevista
ao Expresso Diário (paywall), considerou que
“Nós, mulheres muçulmanas, somos sempre o alvo”.
Passemos agora a algumas opiniões publicadas nos últimos dias na
imprensa portuguesa, nem sempre coincidentes (assim como não é
coincidente a forma como escrevem o nome desta indumentária…):
- O burkini e os nossos valores, de Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, no Observador: “Não
pode exigir-se dos muçulmanos que deixem de o ser para se integrarem
nas sociedades europeias. O preço dessa integração não pode ser a
renúncia à sua identidade. (…) Se prevalecer a ideia de que a integração
dos muçulmanos nas sociedades europeias implica alguma forma de
renúncia à sua identidade, maior será, neles, a tendência para recusar
essa integração, para o ódio ao Ocidente, para o isolamento e para a
radicalização.”
- Deixem o burkini em paz, de João Miguel Tavares no Público: “Qualquer
bom liberal tem de ter um cuidado extremo com a supressão de direitos
individuais, entre os quais obviamente se inclui a roupa que cada um de
nós leva à rua. O excesso multiculturalista é um mal e acho importante
que o ocidente estabeleça linhas vermelhas na sua relação com as
comunidades islâmicas, até para impedir o descontrolo da xenofobia. Mas
traçar essa linha na areia da praia é um péssimo sítio por onde começar.”
- Feminismos à medida, de Luis-Aguiar Conraria no Observador: “O
burquíni é um símbolo da opressão das mulheres e é socialmente
identificado com o extremismo islâmico com quem estamos em guerra. Claro
que o burquíni não faz das famílias que os usam cúmplices dos atentados
terroristas, mas torna-as cúmplices dos avanços do fundamentalismo
islâmico e de um retrocesso de décadas na luta pelos direitos das
mulheres. Isso não tem qualquer comparação com as roupas das freiras ou
das judias ortodoxas ou com os fatos de surf. Dizer que para se proibir
uma coisa se tem de proibir as outras é o mesmo que dizer que para se
proibir a cruz suástica se tem de proibir todas as cruzes.”
- Laicismo, burquíni e estupidez, de Henrique Monteiro no Expresso Diário (paywall): “Podemos
deplorar que uma mulher se sujeite a usar um(a) burquíni na praia, ou
que um padre use sotaina e cabeção, ou que um budista use sandálias e um
balandrau laranja. Mas, na verdade, nada temos com isso e muito menos
tem o Estado. A verdadeira pedagogia do laicismo é vive e deixa viver
(de acordo com a lei). E não, como pensam aqueles que são donos da
razão, uma espécie de ideologia onde só cabem os que não são diferentes
de nós.”
Ainda sobre esta matéria, e como complemento a um outro Macroscópio que
já dediquei a este tema, deixem-me indicar mais dois textos da imprensa
internacional com argumentos que me pareceram interessantes:
- Fear Unveiled: Why Banning the Burqa Makes No Sense
é um editorial de Christiane Hoffmann na Spiegel que reflecte um pouca
da discussão alemã, que não é bem a discussão francesa. Aqui o que está
em causa não é o burkini, mas a burqa propriamente dita: “A few
fully covered women do not threaten our freedoms. Nor will they set back
women's emancipation in Europe. Of course we expect Muslims in Germany
to adhere to our constitution. But that same constitution also sets high
hurdles when it comes to curbing religious freedoms or other civil
liberties. And clothing rules are a massive incursion on personal rights.”
- Brigitte Bardot vs. the Burkini é um texto de Sophie Fuggle na Foreign Policy que segue por caminhos diferentes, e bem originais: “Why
are the French so worked up about a bathing suit? Because for France,
the beach is more than just a coastline – it’s a symbol of national
identity”. E explica-se porquê: “In the postwar 1950s and 1960s
the French idea of the beach began to transform. The combined power of
French cinema and brands like Club Med promoted the beach as a mythical
site of hedonistic freedom and sexual transgression. At the same time,
the beach was held up as a place of social equality. (...) Henri
Raymond’s 1960 sociological study of
a Club Med village de vacances, or vacation village, made note of a
common assertion repeated by holidaymakers: “There are no social
differences when everyone is in a swimming costume.”
As raparigas, a tristeza do sexo e a escolha da solidão
Ao mesmo tempo que nos envolvemos em acaloradas discussões sobre
indumentárias de praia damos porventura demasiado pouca atenção ao que
se passa nas nossas casas – isto é, nas nossas sociedades, mesmo aquelas
onde não há problemas de integração dos muçulmanos. Os três textos com
que me despeço antes de ir de férias são bastante perturbadores porque
olham para sinais de mau estar que nos passam despercebidos. Um fala-nos
de raparigas, outro de mulheres, o último de jovens dos dois sexos:
- ‘Hot’ Sex & Young Girls é um texto de Zoë Heller na New York Review of Books onde a autora escreve sobre dois livros recentes, American Girls: Social Media and the Secret Lives of Teenagers, de Nancy Jo Sales, e Girls and Sex: Navigating the Complicated New Landscape,
de Peggy Orenstein. O que esses livros revelam é que neste tempo de
“emancipação sexual” a vida sexual das raparigas não parece ser nem mais
feliz, nem mais conseguida, nem mais autêntica do que noutras eras.
Senão reparemos nesta passagem deste pequeno ensaio: “Some of the
misery of teenage girls’ sexual experiences is attributable, Orenstein
contends, to the “hookup culture” in which sex, “rather than being a
product of intimacy…has become its precursor, or sometimes its
replacement.” (Rates of female orgasm are much lower for casual
encounters, she notes, than for sex that takes place within committed
relationships.) Another contributing factor, she suggests, is the part
that pornography now plays in determining normative standards of teenage
sexual behavior. As one example of this, she points to the fact that
most of her interview subjects had been dutifully shaving or waxing
their “bikini areas” since the age of fourteen.”
- The rise of marriage for one,
de Ariane Sherine na Spectator, introduziu-me a uma realidade que eu
desconhecia em absoluto, os casamentos consigo mesmo, algo a que a
autora dá toda a atenção pois considera que “The women taking the ‘we’ out of wedding are representative of a much bigger social trend”. Em concreto: “Marriage
has been on the wane for some time. But what’s new is the decline in
the number of women who are looking for a partner, let alone a husband.
This is not a Bridget Jones-like tragic story. If we can’t find a knight
in shining armour, we make alternative arrangements: the act of
self-marrying is merely an extreme way of declaring that there is no
hole in our lives.”
- The Rise of Victimhood Culture é um trabalho de Conor Friedersdorf para a The Atlantic onde se refere que “A recent scholarly paper on “microaggressions” uses them to chart the ascendance of a new moral code in American life”.
Ora esse código moral, a que poderíamos chamar uma mistura de
“queixinhas” com “bulliyng” adolescente, parece estar a substituir os
códigos de defesa da honra que eram comuns quer nas nossas culturas.
Como aqui se explica, “The culture on display on many college and
university campuses, by way of contrast, is “characterized by
concern with status and sensitivity to slight combined with a heavy
reliance on third parties. People are intolerant of insults, even if
unintentional, and react by bringing them to the attention of
authorities or to the public at large. Domination is the main form of
deviance, and victimization a way of attracting sympathy, so rather than
emphasize either their strength or inner worth, the aggrieved emphasize
their oppression and social marginalization.” It is, they say, “a
victimhood culture.”
E por aqui me fico, despedindo-me por mais alguns dias do que é habitual
pois, como avisei logo na entrada, o Macroscópio também vai de férias.
De onde promete vir revigorado e de baterias recarregadas. Como espero
que muitos leitores já se sintam por esta altura em que o tempo de
descanso alargado já estará a acabar para a maioria.
Até já.
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