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Por Ricardo Marques
Jornalista
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12 de Agosto de 2016 |
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A cidade e as cinzas
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Imagine que todos os anos o obrigam a entrar num barco velho e esburacado, sempre o mesmo, para uma viagem de dois meses, e que todos
os anos lhe dizem que, mais cedo ou mais tarde, mais depressa ou mais
devagar, por culpa própria ou do mar, que está bravo, o barco acabará no
fundo. E não, não há volta a dar – tem mesmo de subir a bordo.
Os mais avisados poderão levantar a
hipótese de começar a reparar o barco com a colaboração de todos, aos
poucos e por muito trabalho que dê, ainda que demore uns anos e que, pelo meio, a coisa vá mesmo ao fundo uma ou duas vezes. O problema é que ninguém
os quererá ouvir, porque o resto da malta, já com água pela cintura,
estará, pelo enésimo ano seguido, a aplaudir de pé o tipo que se
lembrou, outra vez, de comprar mais boias - mesmo sabendo que nunca
haverá boias suficientes.
E no ano seguinte, como em todos os anteriores, resgatado
o barco às profundezas e pronto para deixar o cais com os buracos do
costume e ainda mais alguns, a discussão sobre a compra de boias
recomeçará.
Nisso, a água é igual ao fogo.
Vejamos três frases da época:
A) “Meios obsoletos e falta de legislação são cúmplices dos incendiários.”
B) “O país assiste, impotente e perplexo, à progressiva destruição da sua imensa riqueza florestal.”
C) “Por
mais meios que tenham (e serão sempre insuficientes), eles não
permitirão colocar um vigilante junto de cada árvore, com equipamento de
primeira intervenção, 24 horas por dia.”
Eis as palavras
que acompanham os dias das cinzas, das paisagens negras e do cheiro a
terra queimada. As serras ficam de luto e a cidade olha-as horrorizada.
Chegam pela televisão aqueles segundos de pânico, de gente a chorar, a
correr e a ver o fogo levar em segundos o que lhes levou uma vida
inteira a conquistar numa aldeia de nome estranho. O horror. O barco a ir ao fundo diante dos nossos olhos e nem uma boia por perto.
Estes são os dias que sempre foram, porque nunca foi de outra maneira. Ouvimos o que se diz hoje com a incómoda sensação de estarmos a escutar um eco. Ou a repetitiva balada das cigarras, que cantam sempre no verão.
Não há prevenção. Ninguém cuida da floresta. Os bombeiros não têm meios. Os bombeiros estão cansados. Os aviões não chegam. Casas ameaçadas. Aldeias cercadas, em risco, destruídas. Pessoas que perdem tudo. Pessoas que perdem a vida. É o inferno e o pesadelo e o terror, quando não os três ao mesmo tempo. Mas
para o ano será melhor, nunca mais será tão mau, vamos estudar isto e
apostar naquilo. Que Diabo, vamos gastar mais. Vem de Lisboa o ministro e
o secretário de Estado, vem a homenagem e a solidariedade à gente das
serras. Das cinzas. Fazemos contas à área ardida. E esperamos encolhidos de medo que passe essa onda de fogo que grassa – para nossa desgraça.
É tudo verdade, porque já lemos coisa igual há dez anos e porque daqui a
vinte não será mentira, e lá estarão os jornais para o confirmar.
“Os
efeitos da catástrofe que na última semana atingiu o País em chamas são
terríveis. Mas quando chegar a estação das chuvas, o pesadelo
esbater-se-á, como de costume, na memória de todos nós. E o País só se
voltará a lembrar do pesadelo no Verão seguinte da prevenção, do
ordenamento da floresta, dos incendiários e pirómanos, da falta de
civismo dos que atiram cigarros pela janela dos automóveis e dos
desnecessários foguetes das romarias.”
Eis
o retrato do país nesta sexta-feira, 12 de agosto de 2016 – só que foi
escrito por Cáceres Monteiro, o eterno repórter, num dia de agosto de
2004.
Lembra-se das três frases que vieram antes, a A,
a B e a C? Leia de novo, se for preciso. A primeira é um título do
Expresso de outubro de 1977. A segunda foi escrita há 30 anos, por Nuno
Brederode Santos. A última tem treze anos, escreveram-na Fernando Páscoa
e Rui Silva.
O verão das águas calmas é sempre o das chamas furiosas. É o das cidades desertas que choram na praia a sorte das aldeias cheias.
O verão é o dos números marcados na página que conta os incêndios. Às
08h00 havia seis situações graves: nos concelhos de Mondim de Basto,
Sever do Vouga, Anadia, Caminha, Arouca e Águeda. Ao todo, estavam
ativos 82 incêndios. O verão é o das promessas feitas no chão queimado, das histórias de solidariedade (esta é nacional e há outra, que vem de Arouca, aqui) e das polémicas que nos fazem olhar para o lado.
Sim, o verão é isto tudo, e mais o canto das cigarras. Mas já não consegue ser uma surpresa.
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OUTRAS NOTÍCIAS
Segue-se uma volta rápida pela atualidade na véspera do fim de semana mais longo de agosto. Em última hora, uma série de explosões na Tailândia.
Nove rebentamentos - que as autoridades classificam como atos de
sabotagem sem qualquer relação com terrorismo internacional - registados
em cinco cidades diferentes nas últimas horas. Pelo menos duas pessoas
terão morrido e cerca de duas dezenas ficaram feridas nos ataques que
atingiram zonas turísticas. Há um ano, a 17 de agosto, um ataque na capita tailandesa provocou 20 mortos.
Quem é mais rápido? Marcelo a promulgar diplomas ou o P3-C da Força Aérea que ontem voou baixinho junto à praia da Costa Nova, em Aveiro e deixou muita gente assustada?
O que é mais quente? O calor que este fim-de-semana promete ou a temperatura que parece estar a subir outra vez na Crimeia? Depois de mais uma troca de acusações entre Moscovo e Kiev, as autoridades ucranianas decidiram colocar as tropas em alerta.
O que aconteceu aos quatro argelinos que há umas semanas desataram a correr pela pista do aeroporto de Lisboa? Após três dias de julgamento, foram condenados a quatro anos de pena suspensa.
Os media norte-americanos, escrevi aqui há uma semana, estão completamente obcecados e em estado de alerta máximo com Donald Trump. Vale a pena perder cinco minutos a espreitar as notícias em destaque em sites como o do New York Times, da CNN ou do Washington Post e perceber que até quando falam de Hillary estão na verdade a falar de Trump. Por este andar, correm o risco de chegar a dezembro e o único assunto ser mesmo o Donald.
Da terra do empresário-milionário que quer ser presidente, vem também a
história de um casal que tem empregos normais, casa própria (com sete
quartos), carro (na verdade, um mini-autocarro), 13 filhos e dinheiro
para os enviar a todos para a faculdade e planos de reforma antecipada. A
única coisa que este casal não tem é dívidas. Saiba como é possível.
Em Espanha, Mariano Rajoy e Albert Rivera parecem cada vez mais próximos
e já fazem planos para a tomada de posse – algures no final do mês ou
na primeira semana de setembro. Antes, claro, o líder do PP tem de garantir que o partido aprova as seis condições impostas pelo homem que lidera o Ciudadanos.
Lembra-se dos ingleses, aqueles que votaram para sair da União Europeia? A discussão por estes dias é quando devem fazê-lo. O Independent olhou para o calendário e chegou à conclusão de que a primeira-ministra Theresa May está ser pressionada para rapidamente desencadear o processo,
uma das condições do Tratado de Lisboa. Ela garantiu que não será antes
de 2017, mas há quem defenda (os mais preocupados em sair) que não pode
ser depois: o processo demorará dois anos e ficará concluído em 2019,
um ano antes das próximas eleições britânicas – que podem levar ao poder
um Governo menos disposto a sair.
Como o tempo parece
correr devagar, atrevo-me a sugerir uma ligação para o que promete ser
um excelente artigo do The New York Times sobre o mundo em que vivemos.
Foram 18 meses de investigação para escrever uma história que
começa com a invasão do Iraque, em 2003, e que termina com a ameaça do
Daesh e com a imensa crise dos refugiados que atinge a Europa. Verifique a bateria antes de abrir a ligação para “Fractured Lands: How the arab world came apart”.
Já
que se falou no início de barcos que vão ao fundo, tenho de confessar
que “tiburón” é uma das minhas palavras preferidas em espanhol. Hoje
tenho também de agradecer a um jornal espanhol, o El Pais, por este
artigo que conta a vida de um tubarão que vive quatro séculos. Como eles dizem acerca de um destes bichinhos capturado por acidente há uns anos: “Nació antes de que Velázquez pintara Las Meninas” (1656). Conheça aqui a história do tubarão da Gronelândia (inclui ligação para o artigo original, da Science). Manchetes
Correio da Manhã: "96 mil jovens sem estudo nem trabaho"
Diário de Notícias: "Governo pressiona juízes para prender mais incendiários"
Jornal de Notícias: "Há mais jovens que nem estudam nem trabalham"
Público: "Governo vai contactar pais de alunos sem vaga na rede pré-escolar"
I: "Toda a história de Paulo, o homem de 24 anos que decidiu acabar com a Madeira"
O QUE ANDO A LER
Hoje é mais o que ando a ver (há uma série de portugueses a competir esta sexta-feira). E o que ando a pensar sobre o que o ando a ver. E sendo que na
última semana tenho dormido pouco por ficar horas a ver os Jogos
Olímpicos, dei comigo a pensar por que razão tenho perdido tantas horas
de sono. A culpa, concluí, é da câmara lenta. Da câmara superlenta.
Tão lenta que na repetição de uma jogada ténis de mesa conseguimos
perceber a rotação da bola enquanto se encaminha em direção à raquete de
uma tenista que nem sequer pestaneja (juro).
O desporto, qualquer desporto, quando praticado ao mais alto nível é espetacular. Que sorte é estar vivo numa altura em que Michael Phelps atravessa piscinas à velocidade de uma lancha, em que Simone Billes diz adeus ao tapete e se lança no ar, e em que Usain Bolt acaba de correr 100 metros nove segundos depois de começar – assistir a tudo isto é mesmo um privilégio.
Mas o melhor mesmo é a certeza de que podemos ver tudo outra vez, em câmara lenta, atentos a cada pormenor, a cada movimento dos olhos, dos músculos. É a certeza de que, tal
como nós, os próprios atletas e treinadores estudam cada imagem à
exaustão e que, por isso, corrigirão as imperfeições e serão ainda
melhores – tal como serão as mais espetaculares as imagens que veremos.
Este fascínio pela câmara lenta é a coisa mais estranha dos nossos dias vividos a mil à hora.
Adiante, que se faz tarde.
Esta noite começa a Liga Portugal, com um Rio Ave – Porto (20h30) e nada melhor do que ler sobre o jogo, e o campeonato todo, na Tribuna – onde só tem lugar o melhor jornalismo desportivo e, claro, os leitores do Expresso. A Tribuna é a mais recente aposta do seu jornal de sempre, já está em campo e não é um mero candidato ao título. Faz parte dele.
Há Diário às seis da tarde, há Expresso na banca amanhã (com Novelas do Minho, de Camilo Castelo Branco), e disponível online toda a informação e mais a da Tribuna, a qualquer hora.
Tenha um dia descansado, um excelente final de férias, se for o caso, um excelente início de férias, se for o caso contrário, mais um bom fim de semana e um extraordinário feriado. Terça-feira cá estaremos.
Talvez já haja alguém a pensar que não é mesmo má ideia perder tempo a arranjar o barco.
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