Os espanhóis são os nossos vizinhos do lado – são mesmo os únicos vizinhos que temos – e por isso é natural que toda a atenção tenha ido para as eleições autonómicas e municipais deste fim-de-semana. Só que, do outro lado da Europa, um país quase com a mesma dimensão de Espanha, a Polónia também foi a votos e, aí, a surpresa foi total. Primeiro esperou-se que o Presidente Bronislaw Komorowski, de centro-direita, fosse facilmente reeleito na primeira volta. Depois, que ganhasse na segunda volta, derrotando o seu rival conservador, Andrzej Duda, mas foi este que levou a melhor . Sendo um eurocético, a sua eleição, mesmo para um cargo com pouco poder executivo, pode criar um novo foco de instabilidade na União Europeia. E a Espanha ninguém hoje consegue antecipar como será governada no futuro. Que se passa?
Com a distância própria de quem olha para a Europa a partir do outro lado do Canal da Mancha, o editorial do Telegraph de hoje associava os dois resultados e titulava:
All across Europe, the dissatisfaction is clear. É um texto que começa de uma forma muito britânica, mas mesmo assim interessante de considerar: “
It is easy, from this island, to think that dissatisfaction with the European Union is a peculiarly British, Right-wing complaint. Only here, it sometimes seems, with all our many centur ies of history charged by efforts to repel invaders from the Continent, do we prize our sovereignty as it deserves to be prized.” Só que, escreve-se um pouco adiante, “
In fact the reality is that citizens of other countries on the Continent do have a vote on their relationship with the EU, and are exercising it. In Spain and in Poland this weekend, elections have taken place which signal a dramatic popular disapproval with the status quo. In Poland, (…) Mr Duda’s political platform is one of national pride and traditional, Catholic values. During his campaign he voiced criticisms of the EU.”
Não vou hoje desenvolver este problema do crescente divórcio entre as opiniões públicas e a burocracia de Bruxelas, ou o directório Berlim-Paris, que parece querer recomeçar a funcionar, porque sinto que é necessário regressar ao que domin go se passou em Espanha e, também, chamar a atenção para algumas reflexões sobre como é difícil governar nos tempos que correm. É bem provável que Espanha se transforme mesmo num exemplo de ingovernabilidade. Tomando as distâncias devidas e reconhecendo que eleições autárquicas e autonómicas não são exactamente a mesma coisa que eleições nacional, o El Pais projetou os resultados e imaginou que estes se repetiriam na eleição do próximo parlamento espanhol. Conclusão?
Los resultados dejarían un Congreso casi ingobernable en unas generales. É fácil percebê-lo pelos gráficos elaborados por aquele diário espanhol, sendo interessante seguir o método das simulações e a conclusão fatal: seria um Congresso onde seria muito difícil formar uma maioria, mesmo incluindo vários partidos, nacionais e regionais.
Na imprensa portuguesa de hoje só um texto merece referência especial, de novo a análise de Jorge Almeida Fernandes, no Público:
Consagração do multipartidarismo força os espanhóis a repensar a maneira de governar nos próximos anos. Um dos pontos para que chama a atenção é para a dificuldade de consensos e para a possibilidade de, após este voto que rompeu com a tradição, os espanhóis regressarem a cenários mais… tradicionais: “
O que está na ordem do dia são as coligações e pactos que assegurem a governabilidade e a gestão das autonomias, em profunda crise. Questões como o “modelo territorial”, num sentido federal ou outro, exigem largos consensos e só serão abordadas depois das legislativas. Se, inversamente, se entrar num semestre de instabilidade e turbulência, os dois grandes partidos poderão recuperar terreno e votos.” Ora instabilidade e turbulência é algo a que, muito provavelmente, teremos de nos habituar. Pelo menos é isso que acha Francis Fukuyama, o controverso cientista político do “fim da História”, mas que num debate que teve no Observador com Jaime Gama e Jaime Nogeira Pinto:
“Hoje é mais complicado tomar decisões, chegar a consensos&rdq uo;. Como desta vez, além do habitual
podcast, publicámos também a
transcrição integral da entrevista, julgo que vale a pena citar uma das passagens em que procura fundamentar esta opinião: “
há uma crise geral de autoridade. O mundo estava repleto destas estruturas hierárquicas: igrejas, organizações sindicais, corporações, governos; nos quais as pessoas estavam, em grande medida, disponíveis para aceitarem a autoridade de algumas instituições. Agora com a educação, a Internet, as pessoas estarem mais bem informadas, já não estão disponívei s para tal. Num determinado sentido, é excelente. As pessoas pensam por elas mesmas”.
Mas pensam em que enquadramento? Com que referências? Como João Miguel Tavares recorda hoje num artigo que escreveu para o Público,
Prosperidade sem crescimento boa parte dos nosso mal-estar vem do que Tim Jackson escreve num livro chamado, precisamente,
Prosperidade sem crescimento: “
Num mundo de recursos finitos, constrangido por limites ambientais rígidos, ainda caracterizado por ilhas de prosperidade no meio de oceanos de pobreza, será legítimo que o crescimento perpétuo dos rendimentos daqueles que já são ricos sirva de apoio às nossas esperanças e expectativas?” O autor parte dessa constataç&atil de;o para contestar o optimismo das previsões económicas que sustentam as promessas do Partido Socialista, mas o que queria aqui destacar é a ideia de que o crescimento exponencial não pode continuar infinitamente, e por isso nunca mais teremos os crescimentos hercúleos que criaram as expectativas de uma riqueza cada vez maior, de se encontrar sempre dinheiro para tudo.
Isso leva-me a um outro texto,
“The economy, stupid”, publicado este domingo no Observador, escrito por Mário Pinto e que tem uma passagem cuja franqueza surpreende, até desconcerta: “
Sempre me lembro de mim, ao longo de uma vida inteira, a pedir à economia do nosso País para dar mais ao social. E não é que, desde há algum tempo, m e encontro a reconhecer o inverso: isto é, que o social deve conceder mais ânimo ao económico? Foi preciso uma revolução para reequilibrar a favor do social. Será preciso agora outra revolução para reequilibrar a favor da economia? Não aprendemos nada com a história?” Mário Pinto, deputado constituinte, antigo ministro da República para os Açores, professor universitário, esteve não só ligado ao movimento sindical e à fundação da UGT, como sempre norteou a sua vida pela defesa da doutrina social da Igreja. É um texto que merece ser lido, pois nele também se volta a este tema da escassez de recursos – “
O Estado providencialista está arruinando as economias, nos países onde, como no nosso, se conjuga um grande progresso social com um grande atraso da economia.&rdqu o; – e se propõem caminhos que valia a pena discutir.
Foi também uma tentativa de contributo para esta discussão aquela que escrevi este fim-de-semana, infelizmente um texto com uma previsão não muito entusiasta:
Gostava de ter um programa assim onde votar. Mas não vou ter. Sim, porque o que gostava mesmo era que, neste tempo em que lidamos com recursos limitados, não podemos sonhar com os crescimentos milagrosos de outrora, que tudo resolviam, o país mudasse muito mais do que, julgo, está preparado para mudar: “
Gostava de políticos que em vez de prometerem fazer, prometessem deixar fazer. E gostava de um país onde os cidadãos, em vez de pedirem tudo ao Estado, assumissem mais responsabilidades no seu destino .” Como se faz isso? Deixo nesse texto algumas sugestões.
Quero contudo terminar este Macroscópio com novo regresso a Espanha e uma sugestão de leitura mais longa e que, por isso, guardei para o fim. Trata-se de uma reportagem muito bem feita e que nos permite enquadrar melhor as dificuldade que Espanha terá de enfrentar, um belo trabalho de fundo do Financial Times:
Facing up to Franco: Spain 40 years on. Já foi publicado há algumas semanas, mas estava guardado para vos sugerir numa altura mais oportuna – como esta. É um texto que, tendo como âncora a discussão em relação ao futuro do Valle de los Caídos – o monumental monumento aos mortos da Guerra Civis construído por Francisco Franco e onde o própr io está enterrado –, se retratam bem as profundas clivagens ideológicas, sentimentais, que continuam a atravessar Espanha. Eis como termina:
Wandering amid the acres of grey granite, it is not easy to share Ferrandiz’s hope that change is in the air. All that heavy stone and polished bronze convey an aura of timeless permanence. Who will have the strength to push aside the massive slab of stone that covers Franco’s grave? What ghosts will awake the day that Spain starts looking unflinchingly into the past, and attempts to finally separate perpetrators from victims? No one knows. Perhaps the only certainty is contained in the famous line from William Faulkner cited in Cercas’s latest novel, one that could serve as the summary of Spain’s ever-simmering history wars: “The past is never dead. It’s not even past.” E, por hoje, fico-me por aqui. Amanhã voltamos a en contrar-nos. Bom descanso e boas leituras.