Macroscópio – Uma noite de festa não é uma noite de bárbaros
Macroscópio – Uma noite de festa não é uma noite de bárbaros
Esta devia ter sido uma noite de festa para os benfiquistas. Não foi. Pelo menos não foi como devia ter sido, apesar de a esmagadora maioria dos que foram a Guimarães ou convergiram para o Marquês de Pombal apenas teram cantado, saltado e brindado. Infelizmente – para os benfiquistas, para todos os que passaram o dia a ver as imagens de violência, também para PSP devido ao comportamento de um seu agente – foi um dia para esquecer. Tudo isto depois de, no que toca a preocupantes sinais de violência, termos vivido uma semana para esquecer.
Começo por isso este Macroscópio por um texto que é – não exagero – brutal: o que hoje de manhã Pedro Santos Guerreiro escreveu no Expresso: O filho do pai e o filho da mãe. Primeiro a síntese do que aconteceu na festa do Benfica – “Adeptos do Benfica vandalizaram e agrediram em Guimarães. Claques ou gangues ou bêbados ou lá o que foi destruíram garrafas, destruíram o Marquês e destruíram a festa do Benfica, precipitando uma carga policial que levou a eito no centro de Lisboa.” – depois “o caso do pai açoitado em Guimarães”. Mesmo supondo – o que é difícil de supor, convenhamos, que “a besta quadrada até foi o agredido”, o que vimos não permite muitas hesitações: “a reação do agente policial é injustificável, pela desproporção, pela gratuitidade da violência e pela cegueira de sovar um pai à frente do filho. Foi tão escabroso que há um polícia que acode imediatamente ao miúdo, afastando-o e tapando-lhe a visão. E foi tão evidente que o operador de câmara da CMTV, inteligente, cedo percebe que a “notícia” não é o homem que está a apanhar, é o miúdo que está a ver – para quem ele desvia a câmara.” O autor pede, por isso, a expulsão do agente da força policial.
Eu não fui tão longe no texto que escrevi para o Observador - Há coisas que me cansam. Mesmo. – mas não deixo de sublinhar que “a forma como a PSP está a reagir é a pior de todas. Primeiro, porque anda à procura de uma desculpa (a alegada “cuspidela”). Depois, porque o inquérito já aberto devia ter sido acompanhado pela imediata suspensão do agente envolvido. Era o mínimo, mas sobre isso nada sabemos.” O ponto central desse meu artigo é, no entanto, outro, pois ele debruça-se sobretudo sobre os casos de violência que fomos conhecendo ao longo da semana passada, do bullying da Figueira da Foz ao assassinato de um adolescente em Salvaterra de Magos, passando pelo comportamento dos adeptos do Benfica. Defendo a ideia de que toleramos demasiadas vezes o que não devíamos tolerar, até aceitamos como normais comportamentos condenáveis, pelo que estamos de alguma forma a colher os frutos do que semeámos: “Uma sociedade decente é uma sociedade com regras, uma sociedade onde se ensina às crianças e aos jovens quais os limites e onde moram as virtudes. Isto não é moralismo, é realismo, é humanismo. E se deve começar na casa de cada um, tem de prolongar-se no espaço público e nas instituições do Estado. Mas às vezes parece que não somos uma sociedade decente.”
Seguindo por outros caminhos para chegar a conclusões semelhantes, Henrique Raposo, no Expresso, em O seu filho não é bom (link para assinantes) recorda episódios da infância precisamente para reforçar a ideia de que o bullying não é coisa nova, que “A natureza humana não precisa de “companhias” para encontrar a perversão e a humilhação dos mais fracos”. É um raciocínio que o leva a concluir: “bondade é uma construção moral e racional que nada deve à natureza humana. Nós, por natureza, não somos bons. Por outras palavras, devíamos passar menos tempo a educar os filhos dos outros ou a desenvolver teorias abstratas sobre a infância ou juventude; devíamos, isso sim, olhar com mais dureza para os maus selvagens que temos dentro de casa. Lamento, meu caro amigo, mas o seu filho não é especial, o seu filho não é bom por natureza. Ou melhor, será bom se você compreender que criar um ser humano decente é o trabalho mais difícil que alguma vez terá entre mãos.”
A perspectiva de Graça Franco, na Rádio Renascença, é algo diferente. Em O "bullying", a directora da emissora do Patriarcado de Lisboa, depois de recordar o que se passou com as praxes – “O que fizemos para acabar com a cultura praxista de humilhação gratuita, que começa no secundário (quando não no básico) e se prolonga ostensivamente pela universidade, à vista de nós todos, culminando nessa coisa absurda que se chama autoridade dos veteranos ou poder dos "dux"? Uns eternos imberbes que se arrastam pelas universidades.” – e a inacção política no que toca a legislar sobre bullying, acaba também a lembrar as circunstâncias sociais de um destes casos: “A mãe de uma das agressoras desabafa que "educou sozinha dois filhos, a trabalhar diariamente 16 horas, sem folgas nem férias". Querem ainda acusá-la de não ter conseguido mais? Ouviram bem a sua história? Será preciso gritar. Querem ainda acusá-la de não ter conseguido mais? Não se trata de negar o direito ao trabalho das mulheres, mas de garantir o seu direito ao mais básico descanso. Alguém duvidará que esta mulher sempre quis ter mais tempo para dedicar aos filhos e nunca terá visto a sua escravatura laboral como sinal de uma falsa emancipação?”
Julgo que haverá já neste conjunto de textos matéria suficiente para reflexão sobre estes acontecimentos, pelo que, rapidamente, vos deixo algumas sugestões soltas de leitura:
- Silvia Goméz Ríos, filha de uma família assassinada pela ETA, escreveu no El Mundo uma carta aberta a Iñake Rekarte, o etarra responsável pelo atentado e que hoje se apresenta como arrependido: 'Ni con tres vidas que vivieras cumplirías tu condena'. É um documento que mostra a profundidade das feridas abertas na sociedade espanhola pelos terroristas bascos. Pequeno extrato: “Tienes una vida completa: has tenido hijos, supongo que habrás plantado un árbol, ahora has escrito un libro y, además, has matado a cuatro personas y herido a muchas más, destrozando así la vida de demasiadas familias... Serás un ex etarra, pero siempre serás un asesino. Y aun así, yo no te deseo ningún mal. Espero que vivas todo lo que puedas en compañía de tus seres queridos. Tú, Iñaki, que puedes disfrutar de esta segunda oportunidad que, como bien dices, te ha dado la vida. Pero, por favor, sólo te pido que nos evites el tener que verte y oírte más... pues duele demasiado.”
- Boris Johnson, o aguerrido Mayor de Londres, faz um apelo fortíssimo no Telegraph de hoje: We must save Palmyra or the maniacs will raze civilisation. Em causa está, naturalmente, a jóia arqueológica no deserto sírio que o Estado Islâmico promete arrasar caso conquiste a região. Como escreve, “We have lost so much already: Nimrud and Hatra have gone; large parts of Aleppo have been wrecked. If we don’t make a stand now, in the face of this barbarism, when will we stick up for our common human heritage? What about the Umayyad mosque in Damascus – is that to be condemned for having gorgeous figurative Byzantine mosaics? Must we prepare ourselves for the loss of Leptis Magna?” E se “Palmyra embodies the great ideas we owe to the Greeks and the Romans: openness, generosity to other cultures – and above all the ideal of religious and intellectual freedom and tolerance. That is worth fighting for.” Como? Nem que seja ajudando o exército sírio com ataques aéreos visando as tropas do EI.
- Uma leitura mais longa, mas muito a propósito já que o Observador completa amanhã um ano de existência, é a de um ensaio na New York Review of Books – Digital Journalism: How Good Is It? É um texto que comenta nada menos que seis livros recentes sobre jornalismo no tempo da Internet e que merece leitura atenta. Eis como termina este que é apenas o primeiro de uma série de três artigos: “And so it goes for the first generation of digital sites as a whole. They helped lead journalism out of the kingdom of traditional print and broadcasting into the liberating land of the Internet, only to become stranded. Meanwhile, a new generation of high-profile ventures has emerged. Have they made it to the promised land of true digital innovation? To find out, I set off on the second leg of my tour, beginning with a visit to the most-talked-about site of them all, BuzzFeed.”
E por aqui me fico por hoje. O primeiro Macroscópio foi escrito a 19 de Maio de 2014. Estamos a 18 de Maio de 2015 e é difícil imaginar o caminho que já percorremos. Com todos os nossos leitores, claro está.
Amanhã estarei de regresso, em dia de festa. Desejo-vos, como sempre, bom descanso e boas leituras.
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antónio fonseca