A agenda do debate público tem, por definição, de ser aberta. E plural. Não depende, nem devia depender, das conveniências dos partidos, dos governos ou das oposições. Por isso qualquer altura é boa para abrir um debate, sobretudo quando esse debate é sobre o texto fundamental do nosso regime democrático – a Constituição da República –, sobretudo quando estamos a comemorar 40 anos da eleição da Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975. De facto, como hoje se escrevia no
editorial do Observador, “
discutir a Constituição é a melhor homenagem que podemos prestar aos primeiros constituintes e uma excelente forma de continuar a desenvolver a nossa democracia.”
É precisamente isso que o Observador pretende ao lançar um debate em termos que consideramos originais e com uma grande abertura. Sendo que este debate é tão ou mais importante quanto “
quase todos os protagonistas da nossa vida pública dão a entender” que a Constituição é um problema, mesmo que o façam com motivações opostas. Só que “
acontece esta coisa espantosa: nem uns nem outros estão dispostos a discutir a Constituição. Estamos assim na pior situação: parece haver um problema, mas ninguém o quer discutir abertamente.”
O obje tivo do Observador não é, naturalmente, “
protagonizar qualquer processo de revisão constitucional”, pois “
o que nos interessa é o debate público”. É algo que, de resto, decorre directamente de um dos pontos do nosso
Estatuto Editorial:
O Observador quer contribuir para uma opinião pública informada e interveniente. Valoriza a controvérsia e a discussão franca e descomplexada. Mas antes de vos falar um pouco mais desta iniciativa – a que hoje dedicarei o Macroscópio – deixem-me recordar que o tema da revisão da Constituição, apesar de depender dos partidos, está longe de ser um tema dos partidos. Há apenas um ano, o Instituto de Ciênci as Sociais, em parceria com o Expresso e a Sic Noticias e com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, realizou uma grande estudo sobre “As atitudes dos portugueses em relação aos 40 anos do 25 de Abril”. Consultando o
relatório que Marina Costa Lobo apresentou numa conferência na Gulbenkian, verificamos que nele se escrevia que “
cerca de 40% dos inquiridos considera que a Constituição tem de ser alterada para cumprir os compromissos financeiros e outro tanto que ela está desadequada da realidade.” Apenas metade tinham opinião contrária, como se pode ver nas figuras então publicadas nesse relatório:
Entre os defensores mais desassombrados da necessidade de rever a Constituição encontra-se António Barreto. Na sua mais recente entrevista, dada ao
jornal I, onde depois de chamar “funesta” à actual Constituição, ou mesmo “um monstro”, defendia “
Uma Constituição que dê mais liberdade às gerações actuais, que lhes permita eleger os seus partidos, os seus políticos e que tenha uma maior margem de liberdade nas suas decisões. Em muitas matérias laborais, de saúde, de educação, de segurança social, de organização do Estado, função das autarquias e justi&cce dil;a, a Constituição, em vez de definir as grandes estruturas e deixar o tempo e as classes preencherem os conteúdos, fixou-os. Podia ser muito limpa de todos os ónus ideológicos.”
O mesmo António Barreto, na sua
intervenção na cerimónia do 10 de Junho de 2011, defendera o direito a uma revisão profunda do texto constitucional pelas novas gerações:
Como disse um grande jurista, “cada geração tem o direito de rever a Constituição”. As jovens gerações têm esse direito. Não é verdade que tudo dependa da Constituição. Nem que a sua revisão seja solução para a maior parte das nossas dificuldades. Mas a adequaç ;ão, à sociedade presente, desta Constituição anacrónica, barroca e excessivamente programática afigura-se indispensável. (…) Uma nova Constituição, ou uma Constituição renovada, implica um novo sistema eleitoral, com o qual se estabeleçam condições de confiança, de lealdade e de responsabilidade, hoje pouco frequentes na nossa vida política. Uma nova Constituição implica um reexame das relações entre os grandes órgãos de soberania, actualmente de muito confusa configuração. Uma Constituição renovada permitirá pôr termo à permanente ameaça de governos minoritários e de Parlamentos instáveis. Uma Constituição renovada será ainda, finalmente, o ponto de partida para uma profunda reforma da Justiça portuguesa, que é actualmente uma das fontes de perigos maiores para a democracia. A proposta de revisão da Constituição que o Observou divulgou hoje resultou em boa parte desta ideia de que
“cada geração tem o direito de rever a Constituição”. Basta olhar para a lista dos
cinco autores da proposta: Gonçalo Coelho, Guilherme Vasconcelos Vilaça, Jorge Fernandes, Pedro Caro de Sousa e Tiago Fidalgo de Freitas. Têm todos em comum o facto de terem nascido bem depois do 25 de Abril e de serem jovens académicos com passagem por escolas internacionais. Foi esta equipa que, em total liberdade, “
produziu uma versão profundamente revista da Constituição Portuguesa, que o Observador entendeu ser um excelente ponto de partida para a discussão”, como se explica no
texto de lançamento da
página especial que criámos no nosso site.
Esta iniciativa incluirá três conferências, a primeira das quais já na próxima semana, a 23 de Abril, na Faculdade de Direito de Lisboa. O tema será
Democracia e os dois debates agendados contarão com a participação de Diogo Pires Aurélio, Jaime Gama e Miguel Nogueira de Brito e Carlos Blanco de Morais, Ca rlos Jalili e Manuel Braga da Cruz. Uma
Comissão Científica está a ajudar o Observador a organizar estas conferências, a que chamámos Conferências Constituintes e onde se irá discutir o texto de uma proposta de nova Constituição. Ao partirmos de uma texto já elaborado, esperamos poder recolher nesses debates os necessários contributos para chegarmos, no fim, a uma melhor proposta.
Na página especial animaremos o debate com “
textos de opinião sobre a Constituição; entrevistas de Rui Ramos a deputados da Constituinte; reportagens de Miguel Pinheiro que recordam os acontecimentos e os protagonistas da Assembleia Constituinte (…); notícias sobre a sensibilidade dos atuais partidos à que stão constitucional; e muito mais. Para abrir o apetite e começar a aquecer os motores, nada como passar os olhos por este Explicador.”
Mas vamos agora ao que mais interessará do que divulgámos até ao momento: o texto da proposta de revisão da Constituição. Ele pode ser consultado
aqui, num documento em que o vai comparando com o texto da actual Constituição, colocando os artigos lado a lado. Levantando um pouco o véu sobre esse documento, dir-vos-ei que enquanto a actual Constituição tem um total de 296 artigos, o texto da proposta de nova Constituição teria apenas 122 ar tigos. Mas ambos – e admito que esse seja um dos temas de controvérsia – mantêm o preâmbulo da actual, aquele onde se manifesta a vontade de “abrir caminho para uma sociedade socialista”.
Para compreender melhor a forma como trabalharam, e as opções que tomaram, os cinco autores do projecto escreveram um texto cuja leitura também recomendo:
(Re)pensar a Constituição Portuguesa. Assumindo-se como “
cinco estrangeirados nascidos e criados depois de a Constituição ter sido aprovada”, explicam que “
Surpreendentemente ou não, os pontos de acordo entre todos foram muito mais do que aqueles que suscitaram discórdia profunda. Em termos de método, cumpre salientar que, embora este pro jeto seja o resultado de um trabalho conjunto, as opções individuais não foram necessariamente aprovadas por todos os participantes, mas sujeitas a discussão e, se necessário, votação. A final, apresenta-se o texto do articulado resultante em singelo, isto é, como diz a própria Constituição, com “as alterações […] inseridas no lugar próprio, mediante as substituições, as supressões e os aditamentos necessários”.” Há pois já muito para ler, meditar e debater. Afinal,
Todos somos constituintes. Isso mesmo: “
discutir a Constituição (…) também corresponde ao dever de continuar a desenvolver a democracia entendida como um projeto que une as várias gerações de portugueses. Todos somos fundadores, todos somos constituintes. A democracia é isso, e é isso que importa ao Observador nesta iniciativa.” Ao longo do dia de hoje, algumas reacções indignadas e exaltadas nas redes sociais e na blogosfera só vieram reforçar esta nossa convicção de que temos o dever de abrir debates e de chamar a eles a sociedade civil. Sem temas proibidos, com a maior abertura, com toda a pluralidade que está bem demonstrada nos painéis de todos os nossos três debates.
Julgo que nunca um Macroscópio tinha sido tão centrado no Observador. Só espero que, quando voltar ao tema para vos dar conta do andamento das discussões, esta se tenha disseminado e incluído outros órgãos de informação. Mas2C por hoje, é tudo.
Bom descanso, boas leituras… constitucionais.
PS. Já que esquecia: Sabe qual é o único nome próprio referido na nossa Constituição? Pois é, não sabe. Mas pode ficar a saber.