(Nicolau Santos, in Expresso Diário, 09/02/2015)
Vítor Bento acaba de publicar uma excelente reflexão sobre o que se passou na zona euro, seis anos após o início da crise. Ele diz que não mudou, que já tudo estava nos livros que escreveu. Mas é pelo menos surpreendente que diga agora que a Eurolândia está pior que os Estados Unidos ou os países europeus fora da zona euro – porque seguiu uma receita errada ou porque esta não funcionou. E, surpresa das surpresas, desta vez a culpa não é dos países deficitários (ou periféricos) mas dos excedentários.
Vítor Bento é um excelente economista e seguramente uma pessoa séria. Mas neste processo de ajustamento sempre esteve ao lado da receita contemplada no memorando de entendimento. Que era preciso aplicarmos toda a austeridade e reduzir salários. E que não era a austeridade que travava o crescimento. Agora Bento constata que na zona euro «A situação de 2014 é, do ponto de vista macroeconómico, pior do que era em 2008 e caracteriza-se por um duplo desequilíbrio – interno (elevado desemprego) e externo (excedente)».
Depois Bento compara a situação na Eurolândia com os Estados Unidos e com o grupo de “membros da UE não euro” e conclui: «Desta comparação parece resultar claro que o mau desempenho da zona euro durante a crise não era inevitável; que esse desempenho poderia ter sido melhor; que se o não foi, tal não pode deixar decorrer da política económica seguida; e que, por conseguinte, tudo sugere que a política económica usada pela zona euro para responder à crise foi desadequada. De facto, se os três blocos comparados sofreram o mesmo choque e ao mesmo tempo, a diferença de resultados só pode ficar a dever-se à diferentes níveis de fragilidade com que as economias receberam a crise e, sobretudo, à forma como as autoridades responderam ao choque».
Eu peço muita desculpa a Vítor Bento, mas por mais que ele diga que tudo isto estava nos seus livros e nas suas intervenções anteriores, pois devia estar muito bem escondido e, em qualquer caso, nunca Bento colocou a tónica neles. Pelo contrário, sempre defendeu os processos de ajustamento que estavam a decorrer na Europa e não me lembro que tenha sublinhado que não deviam ser aplicados ao mesmo tempo em vários países. Não me lembro também que ele tenha insistido que o problema europeu resultava da insuficiência da procura interna – porque, se assim fosse, então não deveria ter insistido com tanta veemência na desvalorização salarial.
Vítor Bento sempre defendeu os processos de ajustamento que estavam a decorrer na Europa e não me lembro que tenha sublinhado que não deviam ser aplicados ao mesmo tempo em vários países
E que dizer desta frase: “é razoável concluir-se que a zona euro dedicou mais de um terço da sua vida a um ajustamento desequilibrado, que empobreceu toda a zona. Os custos desse ajustamento recaíram quase exclusivamente sobre os países mais pobres, empobrecendo-os ainda mais e aumentando o seu desnível para com os mais ricos”. Quem a escreveu? Um economista do Bloco de Esquerda? Não. Vítor Bento. Digamos que é, no mínimo, surpreendente.
Mais: “E ao fim deste tempo todo, os Deficitários estão presos numa armadilha: atingiram o equilíbrio externo, à custa do equilíbrio interno (visível nos níveis de desemprego). Pelo que, sem um choque de procura externa, só conseguirão recuperar o equilíbrio interno, sacrificando o equilíbrio externo e só conseguirão manter este, continuando a sacrificar o equilíbrio interno (isto é, a manter elevados níveis de desemprego). Com uma elevada alavancagem financeira, dificilmente conseguirão sair deste círculo vicioso sem um choque financeiro de origem externa, mas que não lhes aumente a dívida”.
Bento faz ainda outra afirmação verdadeiramente surpreendente (para quem lhe segue o pensamento): “O problema tem sido, desde o início, identificado como um problema de finanças públicas e de dívida soberana, quando o não é. Há, de facto, problemas de finanças públicas e de dívidas excessivas, e que têm que ser resolvidos, mas não são estes que estão na origem da crise da zona euro, nem eram o seu principal problema, quando esta eclodiu. Pelo contrário, os problemas das finanças públicas agravaram-se profundamente em consequência da crise e da forma como esta tem sido tratada”.
E assim, remata, “centrar a abordagem da crise nas finanças públicas, como tem sido feito, nunca poderia conduzir a uma boa solução, como se tem visto, pelo impacto negativo que essa abordagem tem tido no crescimento económico. E porque não é a situação das finanças públicas que tem entravado o crescimento, é a insuficiência de procura (em boa parte causada por um excesso de austeridade sistémica) que entrava o crescimento e dificulta o ajustamento das finanças públicas”.
E a concluir: “É claro que também há problemas sérios de finanças públicas e de sustentabilidade das dívidas, que têm que ser resolvidos. Mas a sua resolução não tem sido facilitada pela forma como se tem reagido à crise, porque a reação foi excessivamente recessiva. A abordagem prosseguida nas finanças públicas enferma, aliás, de um interessante paradoxo: a receita recomendável para cada caso individual é inadequada para o todo. Paradoxo que é bem conhecido da dialéctica hegeliana (e marxista) – alterações de quantidade modificam a qualidade. E é deste paradoxo que decorre a principal falha conceptual do Tratado Orçamental: a receita prescrita para cada país é certa – cada um deverá fazer o ajustamento prescrito –, mas a sua aplicação por todos os países ao mesmo tempo, conduzirá, como tem vindo a conduzir, a um resultado indesejado e à impossibilidade de sucesso a nível individual, porque o seu efeito sistémico é globalmente recessivo”.
Pode ser que Vítor Bento já tivesse dito e escrito tudo isto, que tudo esteja nos seus anteriores livros. Mas ou me engano muito ou ninguém o associava às ideias acima transcritas. Por mim desculpe-me, meu caro Vítor Bento, mas não aguento tanta clarividência vinda do seu lado.
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ANTÓNIO FONSECA