A maldição de S. Brexit
O Reino Unido transformou-se numa fonte inesgotável de notícias políticas, económicas, sociais e financeiras surpreendentes, o que não seria problema se as notícias não fossem todas más. Parece a maldição de S. Brexit, e talvez seja mesmo. Caiu Theresa May mesmo antes do Brexit, caiu Boris Johnson depois, caiu Liz Truss agora, e a cada queda o que mais se discute é se vai ser mais rápida do que a do antecessor. Caiu o crédito do país nos mercados, subiram as taxas de juro, faleceu a Rainha e subiu ao trono o filho, a Escócia quer novo referendo para a independência já para o ano e, como se tudo isto não fosse amplamente suficiente, Ronaldo não tem jogado e ontem até foi irritado para os balneários antes do fim do jogo, quando compreendeu que já não ia entrar. É assim: um dos sistemas políticos democráticos mais estáveis e sólidos do Mundo, referência para tantos, tem-se dedicado num frenesim a mudar de natureza. Na mudança, tem-se mostrado de uma eficiência assinalável: mas isso não parece positivo.
Liz Truss não deve ser totalmente má do ponto de vista político, embora se lhe aponte a facilidade talvez um pouco excessiva com que no passado defendeu uma coisa e o seu contrário. Porém, sejamos justos: chegou ao poder num momento e contexto muito difíceis e em circunstâncias especialíssimas. Não sendo talvez demasiado má para a função, manifestamente não era suficientemente boa para enfrentar com êxito as dificuldades. Também, não teve especial sorte. Foi indigitada pela Rainha em Balmoral, e esta não lhe sobreviveu mais de 72 horas, depois de 73 anos de reinado. Alguém gostava de passar por isto?
Encontrou, depois, um partido muito partido, que vê o futuro próximo a fugir-lhe (nisso, Boris Johnson foi magnífico amplificador).
Mal chegou a Primeira-Ministra, Liz Struss cometeu o pecado capital de apresentar um plano económico que correspondia, ponto por ponto, ao que prometera como candidata à liderança do Partido Conservador. Sim senhora, cumprira aquilo que anunciara. Simplesmente, o plano era tão mau que os “mercados” decretaram que aquilo que se propunha fazer era um disparate, como o jogador compulsivo que, no casino, pede um empréstimo milionário para recuperar a fortuna que perdeu na roleta.
Foi assim. De repente, tudo colapsou. Os juros da dívida dispararam, a libra teve um chilique face ao dólar, e mais coisas fomos sabendo. Por exemplo, que em setembro a inflação no Reino Unido tinha passado a dois dígitos (10,1%). Para estancar a entrada de mais água no Titanic de que ela própria fora o iceberg, Liz Truss mandou borda fora o Ministro das Finanças – dito de modo mais formal, demitiu-o. O senhor portou-se forma digna, foi até um gentleman. Mas, nada feito. A torneira estava aberta e o Governo de Liz Truss começou a desagregar-se. Caiu a seguir a Ministra da Administração Interna, e perpassou logo por terras britânicas um sentimento de fatalidade. Além disso, na segunda-feira, o então “novo” e hoje velho Ministro das Finanças, Jeremy Hunt, tinha apresentado outro “plano” que era, ponto por ponto, um desmentido…daquilo que a sua Primeira-Ministra dissera ser a solução para os problemas do País. Finalmente, um membro do seu Governo de que não recordo o nome deu uma entrevista em que se recusou a dizer se acreditava que a sua chefe ia aguentar até às eleições. Com amigas destas…
A Primeira-Ministra ainda foi ao Parlamento onde, digamos assim, não correu bem e se percebeu que tinha de reforçar o colete anti-bala, mas nas costas, considerado o risco crescente de fogo amigo.
Hoje, seis semanas depois de iniciar funções, demitiu-se. Foi mais rápida e indolor nesse ato do que tinha sido o seu antecessor, mas é impossível não congeminar que, ainda há menos de um dia, declarara no Parlamento que era “uma combatente, não uma desistente”. A política também é isto, com certeza, os dias podem ser muito maus.
Chega de desancar em Liz Truss, como sempre se faz em quem está caído. De facto, como disse o Presidente francês (é certo que com uma pontinha sofisticada de maldade), o que ressalta é que “o Reino Unido precisa de estabilidade”. Precisa o Reino Unido e precisamos nós que o Reino Unido a tenha, mas começa a ser difícil compreender como o fazer sem eleições antecipadas. Vamos para o terceiro líder conservador desde as últimas eleições, e ainda falta um infinito para as próximas. Até para um não britânico, parte “não interessada”, é algo penoso antever mais um processo de seleção de mais um Primeiro-Ministro. E não é por se tratar de um governo conservador, é por poder tratar-se de não se conseguir um governo. É por estar consolidada a convicção de que dali, de um aparelho partidário exangue, dificilmente poderá sair uma solução sobrevivente. Poderá também tratar-se de querer ver coisas onde elas não estão. O certo é que, desde o Brexit, o Reino Unido está pior, mais instável, e de nenhum modo se confirmaram os eldorados que foram prometidos quando da decisão. Perdeu as almofadas institucionais que a União lhe garantia. Sim, a UE tem muitos defeitos. Mas, por estas bandas, ainda ninguém inventou melhor, e muito menos o Reino Unido.
Quem está a rir é Vladimir Putin. Depois de Mario Draghi, dois a zero (Boris Johnson e Liz Truss), e ainda aqui estou, deve estar a dizer para com os seus botões. É claro que estas coisas valem o que valem, e não concebo sequer que dê um qualquer quebranto ao Reino Unido no apoio à Ucrânia. Mas, se pensarmos no que vai por Itália, com Berlusconi a declarar amizade eterna ao líder russo, ou nas manifestações em França, ou nas eleições intercalares americanas que aí vão estar daqui a menos de três semanas, é bom estarmos atentos. São todas coisas diferentes, mas podem confluir num mau resultado. Façamos por que isso não aconteça: está demasiada coisa em jogo.
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