Do Tempo da Outra Senhora |
Posted: 07 Feb 2020 02:38 AM PST
Imagem do Museu Municipal de Estremoz. Fotografia de Isabel Água.
Quem procura quer achar
A inventariação e catalogação do figurado em barro de Estremoz está longe de estar completa e ser definitiva. É o que ocorre com exemplares dos sécs. XVIII e XIX, para os quais se desconhece a autoria e data de manufactura, aliada à coexistência de designações distintas para o mesmo espécime.
Caso em estudo
Na Exposição “Barristas do Alentejo” (1) realizada em Évora no ano de 1962, esteve patente ao público um Boneco de Estremoz, ao qual foi atribuído o número 288, identificado como sendo do séc. XVIII, pertença do Eng.º Júlio dos Reis Pereira. A designação atribuída à figura exposta foi a de “Dama orando”. Passo de imediato à sua descrição.
Trata-se de uma figura antropomórfica feminina de mãos postas e levantadas. Traja um vestido comprido com mangas, que lhe encobre os pés e é de cor castanha avermelhada, decorado com motivos florais em cuja composição entra o verde, o vermelho e o zarcão. O vestido apresenta uma gola branca ornamentada por dois folhos igualmente brancos que lhe cobrem os ombros. A cabeça está coberta com uma touca branca com folhos à frente e que lhe cobre o cabelo castanho quase na totalidade. Sobre os punhos do vestido assenta uma toalha branca. A figura enverga um manto com um grande capuz, qualquer deles de cor verde escura e com uma orla denteada, simulando galão dourado. Do lado esquerdo do manto e à altura dos joelhos é visível um enfeite em relevo, constituído por uma flor cor de zarcão e quatro folhas verdes.
A imagem assenta numa peanha paralelepipédica de base quadrada e topo cor de zarcão, a qual configura um andor. As faces laterais são de cor verde e encontram-se ornamentadas com motivos florais centrados e cuja constituição integra o verde, o vermelho e o zarcão. À excepção das arestas da base, todas as outras apresentam uma orla em relevo, de cor amarela dourada e com incisões perpendiculares às arestas. Em cada um dos quatro vértices do topo da peanha são visíveis furos que poderão ter servido de encaixe a arames que suportavam decorações fitomórficas, tal como acontece noutras imagens.
Nomes e mais nomes
A “Dama orando” integra a colecção de Bonecos que a Câmara Municipal de Estremoz adquiriu ao Eng.º Júlio dos Reis Pereira e faz parte do acervo do Museu Municipal. Joaquim Vermelho (7) manteve a designação atribuída por Reis Pereira àquela figura. Também eu (5) possuo na minha colecção um exemplar análogo ao descrito, ainda que sem toalha, pelo que subscrevi igualmente aquela designação.
Actualmente, o exemplar descrito está exposto no Museu Municipal sob a designação “Senhora com Manto / Maria?”, a qual gera dúvidas por ser ambivalente.
Por outro lado, já ouvi alguém sugerir que possa ser uma imagem de “Nossa Senhora das Dores” assente num andor, à semelhança da imagem de Nosso Senhor Jesus dos Passos. Creio que quem produziu o alvitre se baseou no facto de ambos os andores integrarem a Procissão do Senhor dos Passos.
O facto de a figura em estudo ter recebido diferentes designações ao longo do tempo, é revelador da necessidade de aprofundar o estudo da imagem para ver qual das designações é a mais adequada. Foi o que fiz.
Valha-me Frei Agostinho
Não aceitei de bom grado a designação de “Nossa Senhora das Dores”, já que iconograficamente esta é representada com um ou mais dos seguintes atributos: - Uma expressão dolorosa; - Ferida por uma ou sete espadas, simbolizando a dor que a trespassou quando da morte de Jesus; - O Rosário das Lágrimas com 49 contas brancas divididas em sete partes de sete contas cada. Todavia, não excluí a hipótese de se tratar de uma imagem devocional de Nossa Senhora, a quem a intensa devoção dos católicos levou a atribuir-lhe inúmeros títulos.
Pensei de imediato consultar o “Santuario Mariano” (6) e a consulta do tomo VI conduziu-me à leitura proveitosa do “TITULO XXXXII - Da milagrosa Imagem de N. Senhora dos Martyres , da Villa de Estremoz”.
A imagem de Nossa Senhora dos Mártires
Frei Agostinho de Santa Maria (6) menciona a construção do Templo de Nossa Senhora dos Mártires, mas relativamente à miraculosa imagem da Padroeira afirma não ter conseguido apurar nada acerca da sua origem e como apareceu no local. Refere que a imagem é formosíssima, com vestidos, estando a Senhora de pé e de mãos levantadas. Alude que o povo tem pela imagem uma grande devoção, recorrendo a ela nos seus apertos e necessidades, retribuindo a Santa com as suas petições bem despachadas, o que o leva a oferecer-lhe lembranças pelos benefícios recebidos.
Nas Memórias Paroquiais de 1758 (2), Frei João Afonso Magro, prior da freguesia de Santa Maria de Estremoz, referindo-se à Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, relata que no Altar-mor se venera a sagrada, milagrosa e formosíssima imagem de Nossa Senhora dos Mártires, de roca, composta com vestidos, de 6 palmos de altura e que tem as mãos postas e levantadas. Narra ainda que ao Templo concorre todo o povo pela devoção que tem com a Senhora, a quem procura nas suas necessidades e apertos, confiante nos milagrosos despachos às suas petições.
António Henriques da Silveira (4) refere-se à imagem de Nossa Senhora dos Mártires, declarando que: “A imagem da Senhora é perfeitíssima, e de notável veneração”.
Túlio Espanca (3) diz que a imagem de Nossa Senhora dos Mártires não foi alienada na profanação da Igreja em 1912 e é uma imagem de roca, com vestes ricas de tecelagem bordada.
Milagre de Nossa Senhora do Mártires
Frei Agostinho de Santa Maria (6) conta que os milagres de Nossa Senhora dos Mártires são inumeráveis, mas há um em que resplandece a grande piedade da Mãe de Deus para com os miseráveis e pobres pecadores, relatando-o.
Uma mulher nobre da Vila de Estremoz, devota de Nossa Senhora, em sinal de agradecimento por graça recebida, confeccionou uma toalha em pano rico, guarneceu-a com uma renda igualmente rica e ofereceu-a para o Altar de Nossa Senhora, pondo-a com as suas próprias mãos.
Outra mulher, pobre e cheia de necessidade, implorou a Nossa Senhora que lhe valesse e lhe acudisse. Estando sozinha na Igreja e vendo a toalha no Altar, dirigiu-se a Nossa Senhora mais ou menos nestes termos: Bem vedes da minha pobreza e da necessidade que padeço com os meus filhos. Dai-me licença para que vos tire e leve a toalha e a venda para com o valor dela acudir à minha necessidade. Assim na suposição que vós ma dais, tiro-a do vosso Altar e levo-a.
A mulher tomou então a toalha e levou-a consigo, sem que ninguém visse. Como tinha que arranjar quem a comprasse, calhou a ir a casa da devota mulher que a tinha oferecido a Nossa Senhora. À nobre mulher pareceu que a toalha era a sua, mas temendo errar, não disse nada à pobre mulher, dando-lhe alguma coisa para a entreter e mandando-a voltar no dia seguinte, para lhe dar o resto do valor que tinham combinado. Depois, mandou uma criada à Igreja, para ver se no Altar estava a toalha que tinha oferecido a Nossa Senhora. A criada depois de chegar ao Altar achou que a toalha era aquela que a sua ama lhe pusera e regressou a casa para dar conta desse facto à ama. Esta foi certificar-se que era a sua toalha que estava no Altar e depois de a examinar muito bem, concluiu que era. A pobre mulher recebeu então inteiramente o valor da toalha e remediou a seus filhos. Compreendeu-se a piedade que Nossa Senhora usara com a pobre mulher aflita, mandando pôr outra no Altar pelas mãos dos Anjos, tão parecida que não se pudesse julgar que a pobre mulher a tinha furtado. Creu-se assim que tinha ocorrido um Milagre de Nossa Senhora dos Mártires.
Acerto de agulhas
É natural que o “Milagre da toalha” tenha sido perpetuado na iconografia de Nossa Senhora dos Mártires e em particular na barrística popular de Estremoz. Daí que exista uma figura antropomórfica feminina, envergando um manto com um grande capuz, de mãos postas em atitude de oração, tendo ou não uma toalha branca assente sobre os punhos do vestido. A meu ver, deverá ser designada por “Nossa Senhora dos Mártires”, abandonando-se designações como: “Dama orando”, “Senhora com Manto”, “Maria” e “Nossa Senhora das Dores”.
A imagem já não é a mesma
A Capela de Nossa Senhora do Mártires, começou a construir-se em 1371 por iniciativa de D. Fernando I e terminou com D. Nuno Álvares Pereira, tendo sofrido modificações no reinado de D. Manuel I e de D. João V. Foi classificada como Monumento Nacional em 1922 e sofreu múltiplas intervenções no decurso do tempo, reabrindo ao culto em 1972. Pelo caminho ficou a primitiva imagem de Nossa Senhora dos Mártires de mãos postas e levantadas. Foi substituída por outra imagem também de roca, que segura o Menino Jesus ao colo e nada tem a ver com a imagem que está na génese do presente texto e cujo “Milagre da toalha” foi perpetuado na barrística popular de Estremoz.
BIBLIOGRAFIA
1 – Catálogo da Exposição “Barristas do Alentejo” realizada de 24 de Junho a 15 de Julho de 1962 no Palácio de D. Manuel em Évora. Grupo Pró-Évora. Évora, 1962. (págs. 26 e 34)
2 – COSTA, Mário Alberto Nunes. Estremoz e o seu concelho nas “Memórias Paroquiais de 1758”. Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Vol. XXV. Coimbra, 1961. (pág. 57)
3 - ESPANCA, Túlio. Inventário Artístico de Portugal - VIII. Distrito de Évora. Concelhos de Arraiolos, Estremoz, Montemor-o-Novo, Mora e Vendas Novas. Vol. I. Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1975. (pág. 91)
4 - FONSECA, Teresa. António Henriques da Silveira e as Memórias analíticas da vila de Estremoz. Câmara Municipal de Estremoz. Estremoz, 2003 (pág. 180).
5 - MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 2018. (pág. 16)
6 - SANTA MARIA, Frei Agostinho de. Santuario Mariano, tomo VI. Na Officina de António Pedrozo Galram. Lisboa, 1718. (págs. 147, 148 e 149)
7 - VERMELHO, Joaquim. Barros de Estremoz. Limiar. Porto, 1990. (págs. 84 e 106)
Estremoz, 31 de Janeiro de 2020
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