sábado, 17 de março de 2018

OBSERVADOR

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Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!


Já ouviu falar de Martin Selmayr? O mais provável é que não faça a mais pequena ideia de quem é este advogado alemão de 47 anos. Estou seguro que a esmagadora maioria dos europeus também não o conhece. Porém trata-se de um dos mais poderosos homens de Bruxelas. Seguramente o seu mais poderoso eurocrata, porventura o seu mais poderoso dirigente. Acima de Juncker, o presidente da Comissão, acima de Tusk, o presidente do Conselho Europeu. E se agora acrescentar que nos corredores do poder do centro político da União Europeia se está a viver um “selmayrgate” é capaz de ficar ainda mais curioso.

De facto, como escreve a correspondente em Bruxelas do diário alemão Handelsblatt, Ruth Berschens, a verdade é que Rise to power of German ‘Lord of Darkness,’ Martin Selmayr, polarizes Brussels. Mais concretamente: “It’s not quite “House of Cards,” but all Brussels is abuzz about the intimidating power of a German in the European Commission”.

House of Cards? Em Bruxelas? E envolvendo um alemão de quem os cidadãos comuns nunca ouviram falar? Isso mesmo. E as comparações de Selmayr com o Frank Underwood da série televisiva são porventura as mais benevolentes, pois como já veremos chamam-lhe tudo, de “senhor das sombras” a “monstro do Berlaymont”, numa referência ao edifício-sede da Comissão Europeia.

Tudo começou, desta vez, com a sua escolha para secretário-geral da Comissão Europeia, o todo da eurocracia, o lugar de onde se comandam os seus 32 mil funcionários. Uma promoção controversa depois de uma acção que já levantara enorme desconforto como todo-poderoso chefe de gabinete de Jean-Claude Juncker. E tudo continuou com uma revolta no Parlamento Europeu, revolta animada também pelo facto de, com a sua nomeação, ser mais um alemão que é colocado no topo das diferentes hierarquias europeias. Disso mesmo nos dá conta o El Pais em La Eurocámara carga contra la opacidad en la elección del ‘número dos’ de Juncker, texto onde se relata que “Los parlamentarios acusaron a Oettinger de despreciar sus argumentos y criticaron la ausencia de Juncker para dar explicaciones. También se refirieron al creciente poder alemán en el seno de la UE, donde junto al nombramiento de Selmayr y la posible presidencia del BCE, están en manos germanas sillas clave como los secretarios generales del Servicio Exterior y el Parlamento, y las jefaturas del BEI, el Mecanismo de rescate, y la Junta de resolución de bancos.”

No entanto se quisermos reconstituir a história devemos situar o início da controvérsia na perplexidade e indignação de um dos mais antigos e prestigiados jornalistas acreditados em Bruxelas, o correspondente do diário francês Liberation, Jean Quatremer, que não aceitou as explicações dadas na conferência de imprensa onde foi anunciada a sua nomeação e começou a fazer perguntas incómodas. Esse mesmo Jean Quatremer fez na britânica Spectator um excelente resumo do que se passou, pelo que é por aí que começo. Em trata-se de explicar A very EU coup: Martin Selmayr’s astonishing power grab, mais exactgamente “How a bureaucrat seized power in nine minutes”. O relato é extraordinário, a sequência dos factos capaz de ultrapassar a imaginação dos guionistas de “House of Cards”. Senão vejamos:
One commissioner who was present at the meeting where Selmayr was promoted later explained to me what happened (he spoke on condition of anonymity, which is in itself telling as he is supposed to be a heavyweight). They were called to a 9.30 a.m. meeting where Juncker presented them with nominations. Selmayr was named not as the Secretary-General, but as the deputy — a post that was known to be vacant. Selmayr’s promotion was unexpected, but Juncker assured them that all was above board. Then came the coup de grâce. Having appointed Selmayr as deputy, Juncker announced that the Secretary-General — ltalianer — had resigned. So Selmayr, having been deputy for just a few minutes, would take his place from 1 March. ‘It was totally stunning,’ the commissioner told me. ‘We had witnessed an impeccably prepared and audacious power-grab.’ Before anyone else could find out about this unprecedented double-promotion, an email was sent out summoning journalists to the press conference — where Selmayr was confirmed. A fait accompli.

Um golpe florentino a que deve acrescentar-se uma ambição sem limites. Como também escreve Quatremer, “Selmayr declared that the civil service (or, rather, he himself) would act as ‘the heart and soul of the Commission’. With that sentence, Selmayr reduced the role of the 28 European Commissioners to mere extras.”



E já que estamos a citar este jornalista francês, referência para duas crónicas suas no Liberation. A primeira foi escrita ainda antes destes acontecimentos e quando se especulava que a intenção de Selmayr era eternizar-se como chefe de gabinete do presidente da Comissão – Martin Selmayr, en Frank Underwood de la Commission, onde refere que ele mostra ter “Une soif de pouvoir étonnante” e que poderia estar a preparar “La manœuvre byzantine : tout comme il a «inventé» Viviane Reding et Jean-Claude Juncker, il veut inventer le prochain président de la Commission. Son candidat : le Français Les Républicains Michel Barnier, qu’il a déjà propulsé à la tête des négociations sur le Brexit et qu’il veille à garder sous son étroit controle”. A segunda crónica já analisa a sua “conquista do castelo” – Martin Selmayr et les comploteurs de la Commission, onde fazia um dos primeiros relatos do que se passara, revelando as “Deux promotions en moins d’une minute. Du jamais vu, un vrai record mondial. Le tout à la stupéfaction des commissaires européens qui n’ont pas été mis dans la confidence, y compris Günther Oettinger, commissaire pourtant chargé des ressources humaines. Mais avec une dose de courage qui frôle le niveau zéro, personne n’a moufté. Mieux (ou pire), tout ce beau monde a validé ce joli «golpe». Pas mal pour une Commission censée être la gardienne des traités, c’est-à-dire du respect des règles.”

Continuando na imprensa francesa, no Le Monde fala-se de Martin Selmayr ou l’ivresse du pouvoir de Bruxelles(paywall) e faz-se referência à indignação de muitos eurodeputados: “Au Parlement européen, les Verts allemands furent les premiers à se saisir du « Selmayrgate » : « La manière dont Martin Selmayr a été nommé jette le discrédit sur les institutions européennes. Si les règles ont été respectées, alors il faut les changer », estime l’élu Sven Giegold. Lors d’un débat en plénière spécialement programmé, lundi 12 mars, les eurodéputés se sont tous émus du parachutage.”

Do outro lado da Mancha não surpreende que os críticos da União Europeia e da sua forma de trabalhar tenham aproveitado a ocasião para ilustrar o que consideram ser os maus métodos e hábitos de Bruxelas. Um deles foi naturalmente Nigel Farage, que no Telegraph escreveu que The rise of the EU's monster Martin Selmayr shows why its days are numbered. Depois de se lhe referir como “the most powerful bureaucrat in the world”, defende que este caso “shines a bright light on how the unelected, unaccountable EU Commission operates”. No mesmo Telegraph Fraser Nelson usa o caso para reforçar a justeza do Brexit: The stealthy rise of Martin Selmayr, the 'monster' of Brussels, shows why we must go. Num texto onde cita Wolfgang Schauble – “Do you know the difference between Selmayr and God? God knows he’s not Selmayr” – lembra que “He had not been on any shortlist; they had no time to organise against him. But the most ambitious man in Brussels – nicknamed “Rasputin,” “the monster” and worse – will soon be in charge of the whole machine with its 32,000 staff. As one EU official put it: “he takes all the power – completely.” Mais adiante acrescenta que “Selmayr is no fan of the British, and is seen to be behind the decision to send the caustic Michel Barnier to handle the Brexit talks. (...) Kristalina Georgieva, who recently quit as a vice president, says she made up her mind to resign when Barnier was appointed. The Juncker-Selmayr duumvirate, she said, had become “poisonous”.



Mas não é precisa ler um jornal relativamente eurocéptico como Telegraph para encontrar críticas a Selmayr e aos seus métodos, pois elas também surgem no europeísta Financial Times, num texto de título elucidativo – Rasputin of Brussels raises hackles among EU staff –, os argumentos não deixam de fazer a defesa das instituições europeias – “The move is contentious. Mr Selmayr will not just control 30,000 staff and the policy levers in the world’s most important supranational civil service. He will also be privy to the fiercely guarded exchanges between EU leaders at summit meetings — one of the few officials directly in the room when the likes of Emmanuel Macron and Angela Merkel take decisions that will shape the EU during the UK’s exit and beyond. His role, at least on paper, will be to provide the commission’s expertise in policy areas when called on by EU chiefs — but the acutely political Mr Selmayr may prove far more than just a background presence. “There’s nothing we can do about it, but he’ll be more than just a note-taker,” one national official said. (...) Some officials fear Mr Selmayr’s appointment will bring a politicisation of the higher ranks of the civil service and the loss of valuable institutional checks and balances. “

Mesmo na Alemanha se reconhece que a figura deste híper-poderoso eurocrata inspira medo, mesmo a quem lhe reconhece qualidades. Regresso por isso ao texto já citado do Handelsblatt onde se refere que “Eurocrats in Brussels are astonishingly unanimous on the subject of Mr. Selmayr’s personality, both its positive and negative sides. “His intellect is brilliant and he works tirelessly”, says a diplomat. It’s hard to find anybody in Brussels who denies that. But Mr. Selmayr also has a reputation for being a reckless and brutal man. One diplomat remembers how strange it was to have dinner with Mr. Selmayr and his closest colleagues. “The only one to talk about politics was Selmayr himself. All others limited themselves to small talk without daring to mention serious issues in the presence of their boss.” And then the diplomat added: “Selmayr spreads fear and fright.”



Para o fim reservei vários olhares publicados na edição europeia do jornal online norte-americano Politico (que deve ter hoje uma das maiores, senão a maior redação dedicada à cobertura dos assuntos europeus em Bruxelas). São textos que ajudam a compor o retrato deste homem que manda muito nas nossas vidas apesar de nunca ter sido eleito por ninguém. Ei-los:
  • ‘Monster’ at the Berlaymont é um retrato escrito ainda em 2016 por David M. Herszenhorn onde já se refere que “Martin Selmayr is admired, despised and feared”. No texto cita-se um “senior official, who like most people in Brussels requested anonymity to speak about Juncker’s chief of staff out of fear of political reprisal” – muito significativo este medo –, o qual refere que “It’s only natural that once you are in power, you have enemies. The problem with Martin is he has no friends. That means maybe he took it too far.
  • Ryan Heath, que escreve a influente newsletter diária sobre tudo o que é importante na União Europeia descreve-nos Martin Selmayr, consummate politician in civil servant’s clothing. Nesse texto deixa contudo um aviso: “The biggest unknown facing Selmayr in the longer term is who will get the Commission presidency once Juncker leaves at the end of 2019. If it’s an ally, he and presumably Juncker’s legacy are secure. But with a different kind of crew in charge at the Berlaymont building, the potential for trouble is obvious. Selmayr serves at the pleasure of the College of Commissioners.”
  • Em How Martin Selmayr became EU’s top (un)civil servant retoma-se a história contada por Quatremer, considera-se que “Selmayr has shown time and again that he would fit in well with the cast of ruthless characters in the political drama “House of Cards.” e é-se relativamente pessimista sobre a possibilidade de limitar o poder de que já dispõe:  “Selmayr has won fame and disdain and spurred envy and fury by deploying ruthless autocracy in the name of European democracy. His sudden election ensures the German lawyer and avowed European federalist will retain a perch at the apex of power in Brussels beyond the end of Juncker’s mandate in 2019 — for as long as he desires, or until a new set of commissioners dares to try to remove him.”
  • The misunderstood Herr Selmayr, de Tim King, lamenta que os seus métodos sejam tão destrutivos e autocráticos:  “The structure that Juncker introduced for the College of Commissioners — with vice presidents coordinating different policy groups — is just a façade. Behind it, Selmayr has centralized power with the president. Why does that matter? Because the federal quality of the college is part of a delicate institutional balance intended to maintain good relations between the Commission and national governments.” Mais: “The natural response, when the game looks rigged, is to lose faith in the referee. So what loyalty do the member countries now owe the European Commission?

Confesso que, desaparecido Frank Underwood dos ecrãs televisivos, tenho seguido com atenção as manobras de Martins Selmayr desde que descobri o poder que tinha e a forma como o usava para promover, a partir do Berlaymont, uma agenda federalista, centralizadora e com traços autoritários. Agora aguardo para perceber até aonde irá o Parlamento Europeu com o seu “selmayrgate”, tendo no entretanto perdido a quase nenhuma fé que tinha nesta Comissão Europeia “mais política” e no seu inefável presidente, o luxemburguês Jean-Claude Juncker.

Mas por é tudo, Agasalhem-se a aninhem-se, que o fim-de-semana anuncia-se invernoso. Tenham também um bom descanso e melhores leituras.

 
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. 

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