Macroscópio – Da Magna Carta à morte aos 75 anos. Por opção.
Macroscópio – Da Magna Carta à morte aos 75 anos. Por opção.
Hoje o Macroscópio vai partir de dois textos que ajudam a pensar para dar algumas sugestões que, espero, desafiem os leitores.
O primeiro desses textos saiu no espanhol El Pais e tem como pretexto uma conferência que está a decorrer em Londres: oGlobal Law Summit, um encontro que se iniciou no dia 23 e terminou hoje. Mas que não é um evento qualquer, pois tem como pretexto a celebração dos 800 anos da Magna Carta, o documento que o Rei João Sem-Terra foi obrigado a assinar em 1215 e que, sobretudo no mundo anglo-saxónico, é visto como o documento fundador daquilo que hoje conhecemos por Estado de Direito. EmCarta Magna, Fernando P. Méndez González, um professor da Universidade de Barcelona, expõe de forma relativamente detalhada não só o que levou à assinatura desse documento, como procura identificar alguns dos outros marcos da evolução da “Rule of Law”. Fala-nos assim do também inglês Bill of Rights de 1689, estabelecido no quadro da “Gloriosa Revolução”, depois daDeclaração de Direitos da Virginia, de 1776, da Constituição dos Estados Unidos, de 1987 (o que faz dela o texto constitucional mais antigo do mundo), da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, produzida logo em 1789, nos alvores da Revolução Francesa, e por aí adiante até à Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Mas um dos pontos interessantes do texto é o seu autor lamentar que, em Espanha, não exista uma idêntica veneração pela Rule of Law. Isto apesar de existirem documentos legais importantes quase contemporâneos da Magna Carta mas a que pouca importância se tem dado historicamente:
Entre nosotros, las Cortes de León de 1188 o las Cortes Catalanas de 1192 tienen una importancia comparable. En algunos aspectos, incluso, fueron más allá de la Carta Magna. Sin embargo, no forman parte de la conciencia popular y, por lo tanto, no hay celebración alguna, o al menos, una celebración comparable.
O que o leva a concluir, com alguma melancolia:
Es frecuente oír que los ingleses son “raros”. Unos individuos acostumbrados a moverse en un medio cuyo líquido amniótico es el law, concebido como fundamento de sus derechos individuales, tienen una plena confianza en el desarrollo de su propio personalidad individual, cada una singular, pero todas ellas coincidentes en la defensa de un law que fundamenta sus libertades, las cuales están dispuestos a defender “con sangre, sudor y lágrimas” como tantas veces han acreditado tan admirablemente. Es muy deseable que los demás asumamos actitudes semejantes. Si eso sucede, los ingleses dejarán de parecernos raros.
O tema da Magna Carta, e do seu relevo da história do Estado de Direito, já suscitou controvérsia aqui no Observador, logo no início de Janeiro, altura em que três académicos – Miguel Morgado, do IEP da Universidade Católica, Gonçalo Almeida Ribeiro, da Faculdade de Direito da mesma Universidade, e André Azevedo Alves, de novo do IEP – aqui trocaram argumentos.
O primeiro texto foi o de Miguel Morgado, “Magna Carta: Os primeiros 800 anos”. A sua leitura é a seguinte: “A Europa demorou muitos séculos a ver na Magna Carta um momento fundamental na longa história da tentativa de limitar o poder dos reis e de proteger juridicamente a esfera pessoal. Mas não a Inglaterra, onde a Magna Carta teve efeitos imediatos, e acabaria, vários séculos depois, às mãos de homens como Edward Coke e John Selden, por se converter num pilar central de uma cultura política que chegou a liderar o mundo.”
Gonçalo Almeida Ribeiro veio discordar em “O mito do gradualismo britânico”. A sua tese é que a Magna Carta não tem a importância histórica que lhe é atribuída, muito menos foi um documento tão singular como muitos hoje defendem. Eis o seu ponto: “O legado garantista da Magna Carta — a salvaguarda das liberdades – não pode ser dissociado do legado elitista – a apologia da ordem social estratificada. A Magna Carta não integra a história da liberdade moderna porque esta em nada se aproxima da ideia de conservação dos privilégios tradicionais. Pelo contrário, implicou o repúdio da ordem antiga.”
A terceira intervenção neste debate nas colunas do Observador foi a de André Azevedo Alves, que veio de novo em defesa do legado singular da Magna Carta em A Magna Carta, a liberdade antiga e os despotismos modernos. O seu argumento foi que “a especial relevância da Magna Carta não está tanto nas limitações específicas do poder previstas no texto, mas no papel – muitas vezes essencialmente simbólico mas nem por isso menos relevante – que progressivamente assumiu no contexto britânico. Se os textos constitucionais valem frequentemente muito pouco, o mesmo já não se pode dizer do que (…) poderíamos designar preconceitos a favor da liberdade. A Magna Carta tem inspirado sustentadamente esse tipo de preconceito em algumas culturas políticas e daí advém em larga medida a sua relevância para a referida corrente do pensamento liberal.”
Esta controvérsia acabou por saltar também para as páginas do Público, pela pena de Paulo Rangel em “A Magna Carta como (pre)texto da superioridade britânica”. O eurodeputado alinha mais pelas teses de Gonçalo Almeida Ribeiro: “uma corrente poderosa da nossa intelectualidade que quer ver na Magna Carta uma prova da excepcionalidade britânica e anglo-saxónica. E com tanta e tão pronta veneração acaba até por transformar a tão celebrada ‘excepcionalidade’ numa indisfarçável ‘superioridade’. Ora, importa dizer que a história constitucional e política inglesa desmente algumas das ideias feitas a propósito do lugar da Magna Carta e do seu pioneirismo na afirmação dos direitos fundamentais ou dos direitos humanos.”
Uma vez que estamos a falar de um documento inglês, não posso deixar de citar um pequeno trabalho para quem quiser conhecer o essencial sobre a história deste texto - The Magna Carta explained, um trabalho recente do Telegraph, num registo próximo dos nossos Explicadores, com perguntas e respostas, e que foi elaborado a propósito de uma exposição que reúne as únicas quatro cópias sobreviventes do acordo assinado por João Sem-Terra. Para uma análise mais profunda, e muito interessante, vou até The Magna Carta at 800: The uses of history, um daqueles trabalhos indispensáveis que são sempre publicados no número especial de Natal e fim-de-ano da Economist. Um dos aspecto que ele salienta é o facto de, hoje, a Magna Carta ser, em muitos aspectos, mais venerada nos Estados Unidos do que no próprio Reino Unido. Um exemplo: “American jurists still refer to it in legal cases: a federal district court judge ruled against delaying Paula Jones’s sexual-harassment suit against Bill Clinton, then America’s president, on the ground that ’our form of government…asserts as did the English in Magna Carta and the Petition of Right, that even the sovereign is subject to God and the law’”.
Como admito que este tema seja demasiado árido para muitos seguidores do Macroscópio, vou aproveitar para vos indicar um texto que me foi sugerido por um leitor, um daqueles textos surpreendentes, até potencialmente desagradáveis, sobretudo para os mais velhos, mas que nos fazem pensar. Trata-se de Why I Hope to Die at 75: An argument that society and families—and you—will be better off if nature takes its course swiftly and promptly. Escrito por Ezekiel J. Emanuel, um renomado bioeticista americano, foi publicado na The Atlantic e suscitou uma verdadeira tempestade. O autor (que por acaso tem exactamente a mesmo idade que eu, mas não foi por isso que li com mais atenção o seu texto) é um opositor da eutanásia mas, mesmo assim, escreve com este desassombro:
But here is a simple truth that many of us seem to resist: living too long is also a loss. It renders many of us, if not disabled, then faltering and declining, a state that may not be worse than death but is nonetheless deprived. It robs us of our creativity and ability to contribute to work, society, the world. It transforms how people experience us, relate to us, and, most important, remember us. We are no longer remembered as vibrant and engaged but as feeble, ineffectual, even pathetic.
Bolas, é forte. E por isso não pode ficar sem contraditório. Deixo-vos duas pistas: um texto de David Geller no Huffington Post, Why I Hope Not to Die at 75. Um dos seus argumentos é que assim é possível “Making a Difference in the Lives of Others”; o outro texto é um pouco mais político, é da National Review, e parte de uma pergunta - Should we hope to die at 75? – a que dá resposta negativa, usando argumentos muito práticos:
Yet our present lives would be poorer had we taken away history’s 75 yearolds. The great Athenian playwright Sophocles (who wrote until his death in his 90s) would never have crafted some of Greece’s greatest tragedies. The Founding Fathers would not have had the sober wisdom of Benjamin Franklin in his later years. The late Jacques Barzun, the greatest contemporary student of Western values and history, published his masterpiece, From Dawn to Decadence, when he was 93. Henry Kissinger, at 91, just published a magnum opus, World Order.
Vou terminar mudando de tema e sugerindo um belo texto de alguém que escreve muito bem, Jorge Silva Melo. É o seu obituário do encenador Luca Ronconi e saiu hoje no Público: Ele inventou um teatro sonâmbulo. Pois, “E o que fica do seu trabalho sempre inesperado serão os actores, aqueles com quem (e à imagem da sua colaboradora, a suprema Marisa Fabbri) sonhou um teatro que voava a partir da poesia.”
Bom descanso, boas leituras.
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ANTÓNIO FONSECA
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