No domingo, passei à porta da prisão de Évora onde José Sócrates cumpre “a pena preventiva” de prisão preventiva. Já a noite se instalara, as câmaras e repórteres de televisão ali acampados tinham-se retirado e apenas escuridão vinha lá de dentro. Nunca estive preso e custa-me imaginar o que possa ser tal violência, muito embora já tenha visitado vários presos, a começar pelo meu pai, no Forte de PIDE, em Caxias, onde às vezes cumpria uma espécie de penas preventivas pelo crime de querer viver em liberdade. Anos vividos em estado de excepção de direitos e garantias individuais e anos de prática de advocacia criminal não me permitiram ficar imune à violência que estar preso representa sempre, sobretudo se preventivamente. Não quer dizer que me oponha à prisão preventiva ou que não entenda a sua necessidade e fundamento em determinadas situações, apenas que não abdico da exigência de que ela seja absolutamente excepcional e fundamentada. Na minha maneira de ver, a prisão preventiva serve, nomeadamente, para que um marido que já agrediu a mulher e prometeu matá-la, não fique em liberdade para cumprir a promessa, como várias vezes vimos suceder. Mas não pode servir, por exemplo, para facilitar a investigação ou pressionar os presos preventivos a confessarem o que se pretende, desse modo dispensando a investigação de mais trabalhos e canseiras.
Os que alegremente vibram de entusiasmo com a prisão preventiva de José Sócrates, sem poder ter qualquer convicção séria sobre a sua inocência ou culpabilidade (como eu próprio não tenho), e que engolem, sem se questionar, todas as teses sem contraditório que a acusação vende nos pasquins que cultiva, são, quer o admitam quer não, gente para quem o Estado de direito é apenas uma ficção piedosa. Dizia há dias o deputado do PSD Carlos Abreu Amorim, sobre a prisão de Sócrates: “Congratulo-me por a Justiça ter tido o atrevimento, a coragem, de investigar até ao ponto a que chegou”. Mas qual é o ponto a que chegou? É o ponto a que chegaram o “Sol” ou o “Correio da Manhã”? A fazer fé no relato dos jornais, o que até agora sabemos da tese da acusação é que ela assenta numa série de presunções, cuja prova terá de fazer (e não é nos jornais e sem contraditório): presume que 22 milhões de euros que estavam numa conta da Suíça em nome do amigo do ex-primeiro-ministro eram, de facto, deste; presume que esse dinheiro lhe veio por corrupção; presume que Sócrates levava uma vida de luxo em Paris, paga pelo amigo, embora com dinheiro seu; presume que o trabalho de Sócrates numa empresa farmacêutica era fictício e apenas para lhe permitir reaver dinheiro seu, sob a forma de salário; e presume que o dinheiro da Suíça, depois de ter regressado a Portugal, sempre em nome de Carlos Silva, emigrava para Paris com destino a José Sócrates, em malas carregadas pelo seu motorista, viajando de carro — num esquema de lavagem de dinheiro absolutamente incompreensível e absurdo.
Para começar a desmanchar esta meada de presunções, a acusação, aparentemente, começou por baixo e não por cima: pelo motorista e as tais viagens a Paris. Há quinze dias, escrevi aqui que havia qualquer coisa de curioso nas notícias que davam conta da vontade de João Perna de proceder a novas declarações e na eventualidade de vir a beneficiar do estatuto de arrependido. Ora, sucedeu que, de facto: a) prestou novas declarações; b) o seu advogado apareceu a falar de uma “mudança de estratégia” e a insinuar viagens dele ao estrangeiro, como pretendia a investigação; e c) após isto, foi mandado para casa, passar o Natal. Concluam o que quiserem, mas uma conclusão impõe-se por si só: nunca houve razão válida para lhe determinar a prisão preventiva. Talvez tenha havido razão, mas não foi válida.
A esta luz, compreende-se bem a decisão do procurador e do juiz de recusarem a Sócrates e a este jornal a possibilidade de uma entrevista presencial. Sócrates não estará, manifestamente, disposto a “colaborar” com a investigação: ele quer, sim, ter hipótese de a contraditar — o que é diferente de a perturbar. As explicações contidas no despacho de recusa são absolutamente pífias, pressupondo que alguém tenha de ficar preso preventivamente até que a investigação apure tudo o que pretende. O que incomoda o tribunal não é que Sócrates pudesse perturbar a investigação (não precisam dele preso para obter informações de agências de viagem, por exemplo). O que os incomoda é que, falando, Sócrates pudesse perturbar a verdade estabelecida e divulgada publicamente pela acusação. Assim, é, sem dúvida, mais fácil acusar, formar a opinião pública e condicionar a própria convicção do tribunal de julgamento.
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