Macroscópio – Uma história americana. De acção de graças
Macroscópio – Uma história americana. De acção de graças
Hoje vamos desanuviar. Porque é dia de acção de graças – não em Portugal, até porque para isso não há grandes razões, mas do outro lado do Atlântico. “Thanksgiving”, festa de família por excelência que se comemora hoje, porque hoje é a quarta quinta-feira do mês de Novembro, é tradição que remonta ao século XVII. Ou talvez não.
Uma das coisas curiosas quando se consulta a imprensa americana nesta época do ano é que ela está cheia de artigos a explicarem este hábito de as famílias se reunirem para partilharem um peru. O que mostra que o Thanksgiving Dayparece necessitar de ser explicado, algo que nunca imaginaríamos ser necessário para, por exemplo, explicar o porquê do nosso Natal. Mas é assim naquela nação de imigrantes, e por isso mesmo decidi fazer hoje um intervalo nos temas mais sérios que costumam ocupar o Macrsocópio para reunir um conjunto variado de textos históricos, linguísticos, comportamentais e até gastronómicos. Alguns bem divertidos. Vamos a isso.
Comecemos por tentar perceber porque razão só os americanos, e em menor grau os canadianos, comemoram este feriado com aparentes conotações religiosas. Isto é, porque têm ele um dia de acção de graças e nós não? Por uma razão simples: essa é uma tradição que remonta ao tempo dos primeiros peregrinos, os que cruzaram o Atlântico em busca de uma vida nova há quase 400 anos. Essa história é-nos contada, por exemplo, neste belo ensaio do Wall Street Journal: “Pilgrims and the Roots of the American Thanksgiving”. O historiador Malcom Gaskill, depois de recordar as condições em que a imigração inglesa foi criando as suas novas comunidades, que se estendiam do Maine, a Norte, à Virgínia, mais a Sul, procura mostrar o que liga os pioneiros de então aos americanos de hoje:
Here we might return to Plymouth in 1621 and to the true story of the first Thanksgiving, which is richer and more edifying than the familiar holiday version. When the Pilgrim William Bradford said, “They began now to gather in the small harvest they had…being all well recovered in health and strength and had all things in good plenty,” he was bearing witness to the fact that, in their first crucial year, they had barely survived. The Pilgrims were not typical settlers in the new land, but they still exemplify the extraordinary imagination and belief, fortitude and courage, shown by colonists across early America—qualities shared today by all manner of Americans, regardless of their ancestry.
Num registo mais leve, o Washington Post é muito directo e quase provocador: “Why we celebrate Thanksgiving every year. It isn’t what you think.”. Por exemplo: “If you think Americans have been celebrating Thanksgiving annually since 1621, guess again. Nobody at the time thought of it as the start of a new tradition, and there had been similar gatherings elsewhere earlier. Historians know there was another feast in the colony in 1623 — but it was held earlier in the year. Different colonies celebrated their own days of thanksgiving during the year.”
E que evento é esse de 1621 que os americanos associam tão fortemente à sua actual tradição? Uma muito particular festa de acção de graças pela boa colheita desse ano, festa que teve lugar na colónia de Plymouth, no Massachusetts, precisamente em 1621 e que é recordada com detalhe pois foi descrita por Nathaniel Morton, o secretário da colónia que nos deixou aquele que é considerado o primeiro texto histórico publicado nos Estados Unidos. Todos os anos, na véspera do Thanksgiving, o Wall Street Journal republica, como editorial, um extracto desse texto, “The Desolate Wilderness”. É um texto belíssimo que descreve a chegada ao Novo Mundo dos imigrantes vindos do outro lado do oceano. Vejam esta passagem:
Being now passed the vast ocean, and a sea of troubles before them in expectations, they had now no friends to welcome them, no inns to entertain or refresh them, no houses, or much less towns, to repair unto to seek for succour; and for the season it was winter
Mas passemos destes temas mais sérios para outro bem mais trivial – mas curioso. Como sabemos dos filmes e das séries, noThanksgiving Day come-se peru. Ora, em inglês, peru diz-se “turkey”. Isto é, turkey como Turkey, Turquia. É por isso que a The Atlantic se interroga: Why Americans Call Turkey 'Turkey'. O tema também é assunto da Vox: Why do Turkey the country and turkey the bird have the same name? Pois bem, ninguém sabe de ciência certa. Até porque se a ave a que chamamos peru e os americanos conhecem por turkey é nativa dos Estados Unidos, isto é, não foi para lá levada por nenhum imigrante vindo do Oriente Próximo. O que me leva a outra questão, para a qual não tenho resposta: e nós porque é que chamamos peru ao peru e Peru ao Peru? Estranha ave que tanto é andina como levantina e afinal não é uma coisa nem outra.
Continuando num registo mais coloquial, chamo-vos a atenção para uma crónica divertida que encontrei no Quartz a propósito do pesadelo que pode ser organizar uma festa familiar num tempo de famílias divididas: Surviving the hollow ache of Thanksgiving with divorced parents. Nós, que não temos dia de acção de graças mas temos Natal (e peru do Natal, já agora), e também muitas famílias divididas, podemos encontrar neste texto curiosos paralelos. Por exemplo: “My parents did one aspect of their divorce right: They remained friends. If my mom was hosting the Big Turkey, my dad and his lady-of-the-moment were always invited. When my dad and his wife took over, my mother and her husband often strolled in for dessert. But eventually, my father and his second wife split, too, and tensions grew strained as we three children learned the dance of deciding our loyalties”.
O mesmo tema – altos e baixos de uma festa de família – também atraiu a atenção da New Republic: “Thanksgiving Is All About Family Guilt”. É uma crónica sobre a culpa de se estar ou não na refeição onde se espera que todos estejam. Termina assim:
It’s the holiday when you’re never where you’re supposed to be. But neither is anyone else, you come to learn. Like you, they were expected somewhere else but they never got there, so, instead, they’re here. And so are you. And all the others, too. Guilty, maybe, but far from lonely.
And so you sit down together and you eat.
Para o fim deixei a parte mais útil, digamos assim, deste Macroscópio. É que encontrei no New York Times um pequeno vídeo depois do qual mais ninguém poderá dizer que não sabe trinchar um peru: How to Carve a Turkey. Confesso que o faço com um lado interesseiro: lá em casa sou sempre eu que tem de trinchar as aves, mas acredito que com esta ajuda vou passar a dividir a tarefa.
Se ainda for a tempo, desejo-vos um bom jantar. Mesmo sem acção de graças. De resto, como de costume, tenham um bom descanso e façam boas leituras.
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ANTÓNIO FONSECA
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