O próximo evento destinado a promover a união das esquerdas já tem data marcada: será a 31 de janeiro. O anúncio foi feito por Rui Tavares e Ana Drago, que querem construir uma “casa comum” e apresentar uma “candidatura cidadã” às eleições de 2015.
Dir-se-ia ser uma iniciativa própria desta época outonal. Há sensivelmente um ano, um outro grupo de personalidades lançou uma iniciativa parecida, a que chamaram Manifesto 3D – Dignidade, Democracia e Desenvolvimento e tinha como objectivo uma eventual candidatura às europeias. Quando olhamos para a lista dos subscritores do actual “Tempo de Avançar” e do já quase esquecido “Manifesto 3D” encontramos muitas coincidências. Entre os repetentes em ambas as iniciativas estão Daniel Oliveira, Boaventura Sousa Santos, José Reis, Castro Caldas, Jorge Malheiros, Abílio Hernandez, Carlos Brito, Cipriano Justo, Guadalupe Simões, Ivan Nunes, Ricardo Paes Mamede, Paulo Fidalgo, Luis Moita, Isabel do Carmo ou Pilar del Rio, para falar apenas de alguns dos nomes mais conhecidos. Não estão agora, e por agora, Ricardo Araújo Pereira e Manuel Carvalho da Silva.
Desta vez, como entretanto houve um partido que se formou e legalizou nesta área política, o Livre, este poderá servir de chapéua esta candidatura, através de um mecanismo de “primárias”.
Estas movimentações coincidem com a contagem decrescente para o congresso do Bloco de Esquerda, marcado para este fim-de-semana e que será marcado pelo enfrentamento entre os apoiantes da actual direcção bicéfala e os do líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, que conseguiu eleger mais delegados, mas poruma margem muito pequena. Para além das disputas internas, o congresso trar-nos-á a novidade da vinda a Portugal de Pedro Iglesias, líder do Podemos espanhol.
Não surpreende por tudo isto que o tema da “unidade da esquerda” e das razões das suas eternas divisões tenham regressado às páginas dos jornais. Em conjunto com outro tema porventura mais decisivo: pode algumas das esquerdas à esquerda do PS vir a entrar para um possível de António Costa?
Começo precisamente por aqui para vos chamar a atenção para mais uma entrevista de Maria João Avillez, desta vez ao eurodeputado socialista Francisco Assis. Isto porque ele não vê “francamente como é que se possa fazer uma coligação à esquerda”. Isto porque descarta alianças com o Bloco ou o PCP, já qualquer entendimento com eles está a priori afastado pelas “posições assumidas” em temas decisivos da governação de Portugal ou da Europa. Assis, no entanto, não descartou a hipótese de os socialistas se coligarem com o “Partido Livre ou com qualquer outra formação” que surja entretanto, “desde que respeitem as linhas matriciais do PS”, enquanto partido do centro-esquerda.
Há mais temas interessantes neste entrevista – incluindo a ideia de que “há proximidade ideológica entre PS e PSD”, mas para a temática de que hoje se ocupa o Macroscópio interessa sobretudo a forma como olha para a esquerda e para o que deve ser um governo dirigido pelo PS. Foi uma entrevista que, de resto, suscitou de imediato a reacção de um dos animadores do “Tempo de Avançar”. Daniel Oliveira, num post na sua página do Facebook, faz um ataque com contornos muito pessoais: “É delicioso ver o três vezes derrotado Francisco Assis - no combate contra Seguro, no pífio resultado eleitoral nas Europeias que fez cair Seguro e no seu apoio a Seguro - fazer o papel de Oráculo, numa entrevista no Observador. Para o PS, propõe uma aliança governativa, estrutural e quase permanente com a direita. Para o País, uma submissão medrosa a tudo o que venha dos poderes instalados na Europa. Há quem seja derrotado por falta de talento. Assis faz da derrota uma convicção política.”
O tom não parece demasiado promissor para quem procura uma convergência, e não deixa de ilustrar as divisões da esquerda, divisões que José Vitor Malheiros, subscritor do Manifesto 3D e agora do Tempo de Avançar, procura enquadrar na sua coluna do Público. Tomando a defesa de quem se tem afastado de partidos como o Bloco e o PCP, escreve que “as pessoas que saíram de organizações onde militaram têm o direito de o fazer e têm o direito de criar novas organizações. E que estas organizações defendam uma convergência à esquerda não tem nada de contraditório”. Assim, ao mesmo tempo que defende “a convergência da esquerda plural”, defende a ideia de que “a criação de novas organizações, capazes de se apresentar de forma clara ao eleitorado e de ajudar a clarificação das escolhas políticas, é positiva”.
Quando aceitou o convite para estar presente no encerramento da convenção do Livre, no passado mês de Outubro, o candidato a primeiro-ministro do PS disse – o que também era o que naquele fórum se queria ouvir – que "a direita facilmente se junta, a esquerda facilmente se divide”. Acrescentou então que “aquilo que temos de encontrar é o ponto de equilíbrio em que, respeitando as diferenças que existem entre nós, que vêm muito de trás e seguirão muito para diante, encontrar a capacidade de fazer algo em comum". Passado pouco mais de um mês e apresentada a sua moção ao Congresso do PS, terá havido passos nessa direção?
É difícil saber. Procurámos reações a esse documento, e talvez a mais relevante que encontrámos tenha sido a escrita por João Rodrigues no blogue Ladrões de Bicicletas, intitulada “Mais uma década?” Digamos que o olhar é muito crítico:
A agenda para a década de António Costa arrisca-se a colocar mais uma década perdida na agenda. Por que é que sou tão pessimista? Em primeiro lugar, pelas palavras que não estão lá: renegociação e reestruturação da dívida, respectivamente como processo e como resultado da iniciativa corajosa de um governo que defenda os que por aqui vivem. (…) Em segundo lugar, porque no fundo o documento revela como o PS continua dominado por um social-liberalismo que teve na fracassada agenda de Lisboa uma das suas expressões.
A discussão vai seguramente prosseguir. Sendo que depois de as esquerdas espanholas terem posto os olhos no aparente sucesso do nosso Bloco de Esquerda, agora é a vez das esquerdas mais à esquerda portuguesas olharem para Espanha e para o Podemos. Ora o Macroscópio, que não se esquece da promessa de abordar mais em detalhe esse fenómeno, não resiste a regressar a um texto que já aqui referimos ontem, “E depois dos partidos?”, de Maria de Fátima Bonifácio, para citar o que aí se escreve sobre esse fenómeno além-Badajoz:
Na sua diversidade, os novos activismos articulam o mesmo discurso populista e utópico, anti-políticos, anti-partidos, anti-governo e anti-sistema, sem com nada mas nada se comprometerem em concreto. (…) Dedicam-se, exclusivamente, ao protesto e à agitação. O “Podemos”, que tanto entusiasma os nossos esquerdistas alinhados e desalinhados (já começou a romagem ao santuário de Pablo Iglesias), é um típico exemplo de um movimento-partido que acolhe indiscriminadamente todas as aspirações populares, possíveis e impossíveis – sobretudo as impossíveis -, e autoriza todos os sonhos e devaneios, o que enche as pessoas de alegria por se sentirem representadas – embora sem a sombra de uma solução para os seus problemas, porque os “Podemos” pura e simplesmente a não têm.
Ler Fátima Bonifácio, que conhece as esquerdas por dentro, porque as viveu, e também domina a nossa história e as nossas referências, pode parecer demasiado desafiante, mas fica bem no Observador, onde não temos fronteiras e gostamos de por as pessoas a pensar. Hoje fizemos seis meses de vida – seis mesinhos, seis mesões… - e, depois de termos andado a partilhar castanhas no Chiado com os nossos leitores, estamos agora todos na redação a beber um gin, bem a par com o espírito destes tempos e do bairro que nos acolheu, o lisboeta Bairro Alto, velho bairro de jornais e jornalistas.
Por isso me despeço hoje com um abraço de parabéns. Abraço a todos, sobretudo a todos vocês, que são os nossos leitores.
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