“Borla fiscal, bónus fiscal, alquimia e engenharia contabilística. Estas foram algumas das expressões usadas para qualificar o impacto que a perda de isenção fiscal teve nas contas da associação mutualista Montepio, que é a dona do banco com o mesmo nome.” Assim começava hoje o seu artigo Ana Suspiro, no Observador, sobre A engenharia contabilística que permitiu à dona do Montepio passar de prejuízos a lucros. Mais exactamente de 221 milhões de euros de prejuízos a 587,5 de lucros no exercício de 2017. O que configura a mais recente polémica em torno da associação mutualista e do banco a que está ligada – a mais recente mas não a única.
No texto citado, organizado em forma de perguntas e respostas, procura-se esclarecer uma operação nebulosa e, aparentemente, milagrosa, sendo que a sua leitura pode ser complementada com a leitura de mais dois textos do Expresso, Como a Associação do Montepio conseguiu lucros surpresa à custa de impostos diferidos e Impostos diferidos na Associação do Montepio 'tapam' prejuízo de 221 milhões de euros.
Continuando a procurar perceber a engenharia da coisa, talvez valha a pena continuar pela mão de Ricardo Arroja que, no jornal online Eco, em Um ‘rearranjo’ nas contas do Montepio, trata de explicar como a associação mutualista tirou partido do facto de, legalmente, na rubrica de activos por impostos diferidos, serem reconhecidas – e aqui cita a lei – “[quantias] de impostos sobre rendimento (IRC) recuperáveis em períodos futuros respeitantes a diferenças temporárias dedutíveis, reporte de perdas fiscais não utilizadas e reporte de créditos tributáveis não utilizados”. Trocando por miúdos, a associação dirigida por Tomás Correia arranjou forma de começar a pagar IRC (antes estava isenta), de prever que no futuro irá pagar mais 800 milhões por conta desse imposto o que lhe permitiu deduzir esse montante e obter o tal milagre di prejuízo que se tornou lucro, Contudo, sublinha Ricardo Arroja, “Este “aumento de capital” da Associação Mutualista Montepio serve para recompor o aspecto do balanço, mas não passa disso mesmo: de um rearranjo.”
Num registo crítico mas ainda relativamente suave, André Veríssimo, do Jornal de Negócios, defende em Montepio: Não é milagre, é contabilidade que, mesmo assim, se “a contabilidade pode ser mais ou menos criativa, mas tem como um dos seus princípios a transparência”, o que não se passou neste caso, pois “estamos em Março de 2018 e só agora vão ser conhecidas as contas consolidadas de 2016. Até agora só vimos os números que a associação quis mostrar”.
Pedro Santos Guerreiro, no Expresso Diário, e Helena Garrido, no Observador, têm olhares bem mais críticos. São dois textos de leitura indispensável para quem quiser perceber não só o alcance da manobra, como os riscos que a nossa banca ainda corre.
Começando por Helena Garrido, e por Montepio, Estado de Direito e contabilidade criativa, a sua tese é que “A solução do crédito fiscal para a Associação Mutualista não resolveu problema absolutamente nenhum, apenas o disfarçou contabilisticamente. O buraco está lá na mesma, à espera que o tempo o tape o que, pelo que aconteceu com o GES e o BES, não é uma boa solução. Ganhar tempo não tem resolvido problema nenhum. A saída que se está a ensaiar para aliviar ainda mais a Associação Mutualista, dos problemas que enfrenta, com a entrada no capital do seu banco da Santa Casa da Misericórdia é outra via para não resolver problema nenhum e apenas disfarçá-lo. É preciso ter coragem para enfrentar de facto o que se passa no Grupo Montepio (...) Há um problema financeiro, com raízes em decisões de gestão erradas – entre elas a compra do Finibanco. Se o Governo quer, de facto, resolver o problema, tem de encontrar dinheiro para colocar na Associação Mutualista, torná-la realmente financeiramente sólida.” A autora, que nas últimas semanas já criticara a entrada da Misericórdia no Montepio (Pobres a salvar os pobres dos erros dos ricos?) e alertara para o facto de ainda existirem razões para nos preocuparmos (A banca, ainda um problema), não termina o seu artigo sem pedir um apuramento de responsabilidades.
Já Pedro Santos Guerreiro, em O Montepio descobriu a pólvora seca (obrigadinho, governo), não só alarga as críticas ao Governo, como assume ter dificuldade em encontrar palavras que definir aquilo a que assistimos: “A vergonha está numa ajuda fiscal caída do céu. Parece milagre: uma associação que estaria tecnicamente falida passa subitamente a ter contas robustas. Não é milagre, é pó de arroz para tapar olheiras. Um creditozinho fiscal de 800 milhões de euros, com o alto patrocínio de Mário José Gomes de Freitas Centeno. É um Euromilhões alquímico. Afinal o Montepio encontrou mesmo uma Santa Casa da Misericórdia: o governo. A matéria é complexa mas o truque é tão simples que apetece perguntar como não se tinham lembrado antes disso. Quer saber a resposta? Porque ainda não tinham tido o desplante de fazerem o que fizeram: uma vergonha.”
Mas as coisas, no que toca à Associação Mutualista, não se ficam por aqui, sendo que também haverá esclarecimentos a dar sobre um buraco de 107 milhões que o auditor do Montepio encontrou na Associação Mutualista, de acordo com uma notícia de Cristina Ferreira no Público. Ou ainda sobre a estranha história de uma mina que esteve para ser comprada e afinal não foi.
Este último caso foi abordado por Pedro Sousa Carvalho no jornal online Eco, em Minas e armadilhas na contabilidade do Montepio, onde refere que, “no meio deste turbilhão de notícias houve uma, do Diário de Notícias, que passou relativamente despercebida, mas que é preocupante”. Tem de se ler para se acreditar, sendo que, sublinha o autor, “Para quem não percebeu muito bem esta engenharia financeira, o que importa reter é que o banco Montepio tinha um ativo e constituiu uma empresa ao lado, na qual o Montepio é acionista e que recebe financiamento do próprio Montepio para comprar o ativo do Montepio, o que permitiria ao Montepio registar uma grande mais-valia no balanço do Montepio.”
Confusos? Não é para menos. O tempo vai passando e, de facto, cada vez estou mais pessimista sobre a questão que eu próprio coloquei num artigo no Observador há quase um ano e que onde me interrogava: Tic-Tac, tic-tac. A próxima bomba a explodir será o Montepio? É esse pessimismo que justifica que vos envie este Macroscópio a esta hora tão tardia, já demasiado próximo do trim-trim do despertador de amanhã de manhã. Mas o tema pareceu-me suficientemente importante para não o adiar. Leiam, meditem e preocupem-se. Mas não deixem, mesmo assim, de ter um bom descanso (se este voto ainda fizer sentido à hora a que lerem esta newsletter).
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