Almoço com Sebastião Lancastre, fundador da Easypay
Encontramo-nos no Galito, escolhido tanto por ser perto do DN como pela excelente comida - "não conheço nenhum restaurante alentejano que não seja bom" - horas antes de Sebastião Lancastre embarcar para Zurique, numa viagem de negócios que acredita que irá mudar--lhe a vida. Em mangas de camisa, de discurso claro e riso pronto, é difícil olhar para o fundador da Easypay como alguém cujo trabalho está profundamente ligado ao setor financeiro. A verdade, que hei de entender ao longo das duas horas de conversa, é que dinheiro não é o seu negócio; são as novidades tecnológicas postas ao serviço de todos nós para facilitar-nos a vida (concretamente os pagamentos).
Ainda mal nos sentámos à mesa e já Sebastião Lancastre está a remexer na mochila. Entre nós, põe uma pedra com pepitas de ouro, um cartão Visa e uma bitcoin. Ri-se com a minha expectável surpresa. "Vão ajudar-me a contar a minha história." Um caminho que, para ele, começa na venda porta-a-porta de impressoras laser e hoje se dirige para o cantão suíço de Zug - o chamado Crypto Valley, ecossistema de tecnologias criptográficas e de blockchain. Não é um filme de ficção científica. É o mundo novo que ali está a nascer e onde Sebastião tem um lugar. Já lá iremos.
Enquanto cedemos à tentação das azeitonas e das empadinhas de perdiz, voltamos uma geração atrás e o meu convidado conta-me que a família tinha uma mina em Vila Pouca de Aguiar e o pai passou "literalmente 12 anos debaixo da terra" - de onde trouxe a pedra que ali temos à frente. Até que respondeu a um anúncio de jornal e entrou para a equipa que criou a Unicre, em 1974, onde trabalhou até à reforma e chegou a ocupar um lugar no board mundial - razão pela qual Sebastião diz que não nasceu num berço de ouro mas num de plástico: "Toda a vida ouvi falar em cartões." E como seria mais ou menos inevitável, ele próprio ali passou uma fase da vida.
Ainda assim, foi na Xerox que começou a trabalhar, a vender máquinas nas Avenidas Novas enquanto estudava Engenharia de Sistemas. "Eu queria casar-me mas estava a começar o curso - a minha namorada era cinco anos mais velha -, por isso tinha de ganhar dinheiro. E tinha imenso sucesso nas vendas, porque a licenciatura dava-me conhecimento tecnológico e a formação que tive na empresa, e que uso até hoje, era completíssima." As coisas correram tão bem que, enquanto os colegas partiam para a viagem de finalistas, Sebastião foi de lua-de-mel.
Escolhidos o almoço e o vinho para acompanhar a conversa, conta-me que foi já com o primeiro filho quase a nascer que, vendo-se desempregado depois de uma má experiência profissional (onde, prefere não revelar), concorreu a um lugar de assessor do diretor do sistemas de informação que o levaria também à Unicre. "Fiz lá projetos giríssimos, trabalhei com consultores da McKinsey com quem aprendi imenso, depois passei pelo marketing , ligado aos cartões de crédito, e nessa altura estava a fervilhar de ideias." Incluindo um embrião da Easypay, surgido da observação de uma falha no sistema: "Muitas transações não podiam ser feitas com cartão, como o pagamento dos colégios."
Acreditando que tinha ali um caminho que o podia levar longe - e não vendo interesse da empresa em pegar na ideia -, Sebastião decidiu largar tudo ("o meu pai ficou meses zangado comigo!) e construir o seu projeto. E foi então que as coisas começaram a correr mal.
"Mesmo no ano 2000, ser empresário era tramado", diz-me, quando chegam as minhas iscas à portuguesa e os carapauzinhos com migas bem alentejanos. O primeiro imbróglio foi o registo da marca Easypay: "Por ser uma palavra anglo-saxónica, não era possível registá-la em Portugal e acabei por ter de ir ao Mónaco fazê-lo, perdendo assim a oportunidade de a garantir a nível europeu." O segundo e mais longo e doloroso embate foi com o Banco de Portugal, de que é absolutamente crítico. "Diziam-me que tinha de me incluir na categoria de banco ou, no mínimo, de empresa de factoring, porque era o que havia no cardápio do regulador, mas não fazia sentido, porque a Easypay não ia conceder crédito, ter depósitos nem nada disso - tal como o PayPal não o tem." Era uma intermediária de pagamentos. Sem solução para desenrolar o novelo, o projeto foi para a gaveta sete anos.
Mas Sebastião tinha um trunfo: se do pai herdara a cabeça para a engenharia e a tecnologia, à mãe fora buscar alguma vocação humanística. "É uma pessoa extraordinária, que nos deu uma enorme liberdade de pensamento (ele é o quarto de cinco irmãos) e sempre teve muito interesse na área educativa. Pouco depois de chegarmos às minas, montou uma escola, e ainda noutro dia o filho de um antigo trabalhador quis visitá-la, pelo impacto que teve na vida dele. E quando viemos para Lisboa, a minha mãe fazia serviço educativo na Fundação Ricardo Espírito Santo Silva - e nós íamos lá fazer voluntariado: aprendi a cinzelar, via trabalhar a folha de ouro... Ela sempre teve este bichinho, que mais tarde a levou a criar o Museu das Crianças - hoje no Jardim Zoológico."
Já com três filhos e sem conseguir arrancar com a empresa, tirando partido desse lado mais criativo, Sebastião Lancastre abriu uma agência de marketing direto e relacional - a campanha Message in a Bottle, para o Dan"Up, da Danone, por exemplo, é responsabilidade sua. Daí acabou por evoluir para o marketing digital de marcas como a Frize ou a Compal. E por fim viu-se desafiado a desenhar e construir "a base de dados do Portugal contemporâneo". Foi assim, com uma única frase, que as suas férias no Algarve foram interrompidas para António Barreto e Maria João Valente Rosa lhe passarem o briefing do que nasceria em 2010 como Pordata. "Foi um projeto extraordinário, perceber as estatísticas, pegar na informação e organizá-la de forma útil e em termos que as pessoas entendessem."
Em simultâneo com o desenvolvimento do Pordata, uma diretiva europeia ressuscitava as hipóteses de sucesso da Easypay. Determinava que os bancos centrais dos países membros deviam integrar as empresas de pagamentos e estabelecia o final de 2009 como prazo para o fazerem. E Sebastião voltou a arregaçar as mangas. "Contratei o Miguel Gomes Leal - na altura com 50 anos e um comercialão que foi determinante para o nosso sucesso - e arranquei com o negócio, ainda com medo de retaliações. Se não corresse bem, corria o risco de ir preso... mas lá nos convidaram para entrar no sistema." Não que isso tivesse sido o fim dos berbicachos - longe disso.
Enquanto iscas e carapauzinhos - que estão efetivamente deliciosos, a comprovar a teoria de superioridade gastronómica do Alentejo do meu convidado - vão desaparecendo, Sebastião explica porque é tão crítico da instituição que supervisiona os serviços financeiros em Portugal. E a principal razão é o que entende como desconhecimento generalizado. "Quando as pessoas não dominam um assunto, têm medo de o abordar. No século XXI isto é inaceitável. Se não sabem, têm de estudar. Por isto é que a nossa admissão ao Banco de Portugal foi tão tortuosa que começou em 2009 e só se concretizou plenamente em 2014! E ficamos com a nítida sensação de que o regulador não percebe nada disto - o que dá um certo amargo."
Queixa-se de que ainda hoje sente esse desconhecimento: "Nós recebemos dinheiro de um lado e mandamos para outro, os processos estão todos automatizados e é tudo absolutamente simples. Mas tratam-nos como se fôssemos um banco e vão ao ponto de embirrar com uma palavra num relatório e por isso multar-nos em 25 mil euros." O caso a que se refere tem que ver com o primeiro questionário de autoavaliação da Easypay, em que a empresa não reconhecia deficiências mas dizia-se disposta a fazer melhorias - uma inconformidade, para o regulador. O tratamento formal é outro motivo de crítica: "Se eu quiser alguma coisa, tenho de escrever uma carta em papel! Nesta altura, em que já nem se usa gravata ou tratamentos de senhor doutor. É a este nível que o país precisa de reformas, na mentalidade. Isto afasta as pessoas. O brexit podia ser uma oportunidade para captarmos instituições financeiras que estão a ponderar deixar o Reino Unido, mas as referências que daqui têm não são boas."
O problema está nas instituições ou nas pessoas? "Os exemplos vêm de cima..." Reconhece que o lugar de governador não é fácil de preencher, mas aponta as diferenças entre o regulador português e o inglês: "A Seedrs é uma empresa portuguesa de crowdfunding regulada pelo Banco de Inglaterra; quando se lançou tinha reuniões de acompanhamento mensais. Eu nestes anos todos nunca falei com um governador ou um vice-governador e as duas únicas vezes em que estive com equipas do Banco de Portugal foi por minha iniciativa, porque quis conhecer quem ia tomar conta de mim a nível comportamental, prudencial, etc. A primeira pergunta que me fizeram foi: o que é que você faz mesmo?"
A segunda reunião que pediu ao regulador foi há um ano, quando apresentou um negócio na Web Summit. Não teve resposta. Razão pela qual está em Zurique: "Vamos reunir-nos com advogados e a Abypay vai ser criada em Zug. Não vou repetir o erro de há 17 anos."
Já de barriga cheia apesar de ainda haver comida na mesa - outro traço que não nos deixa esquecer que O Galito é um restaurante alentejano -, explica-me que esta nova vertente decorre de uma abertura a uma nova área de mercado, introduzida por uma diretiva europeia que "vai revolucionar tanto a forma como pagamos quanto os smartphones revolucionaram a forma de consumir conteúdos". E ele próprio, que assume ter defendido durante décadas que os cartões nunca iam desaparecer, hoje acredita que daqui a cinco anos a nossa relação com o dinheiro será radicalmente diferente.
"A diretiva traz duas novidades: pagamentos instantâneos (em dez segundos será possível passar dinheiro de um banco para outro, em países diferentes da Europa, sem ser preciso sequer uma transferência, faz-se um pagamento, por exemplo através de um QR Code) e o credit score consolidado. Ou seja, vou poder agregar a minha informação creditícia numa plataforma, de terceiros ou minha, à qual posso recorrer sempre que precisar de dar garantias." A principal diferença para o sistema que existe nos EUA é que na Europa essa informação será controlada e não de acesso quase público, podendo o utilizador dar acesso a terceiros quando quer, por exemplo, alugar uma casa, criando uma password válida apenas para aquele sujeito e durante o tempo necessário para o processo andar.
"Isto vai trazer enorme transformação. Tendo em conta que os europeus preferem o débito ao crédito, nem vamos precisar de usar cartão, qualquer token - através de uma pulseira, de leitura da íris, da impressão digital, etc. - basta."
É esta visão do futuro que, aos 49 anos, no segundo casamento e com os filhos criados - um empresário aos 25 anos ("tem uma empresa de ervas aromáticas, a Microgreen"), outro de 22, a tirar Finanças, e a mais nova, de 18, a estudar para ser educadora de infância -, Sebastião tem. Com a vantagem de a tecnologia de pagamentos Abypay ("nada que ver com investimentos") juntar moedas "que as pessoas conhecem, como a libra, o euro, o real, as moedas reguladas, a ouro e bitcoins". "Posso estar aqui hoje e no Brasil amanhã, levo o banco comigo, sem abrir ou fechar contas." No telemóvel, mostra-me a simplicidade com que gere a carteira multicurrency, vê saldo, transfere dinheiro, paga contas, podendo escolher a moeda de cada transação. Incluindo criptográficas. Mais uma razão para ter optado pela Suíça - além de que, numa Europa em mutação, o empresário queria um país que juntasse independência e capacidade de albergar uma solução para o mundo.
"Em Zug fala-se alemão, o que é uma dificuldade, mas aí entra o meu sócio, Joaquim Lambiza, que fez a primeira ATM de bitcoins, no Saldanha." E ainda que Sebastião não seja defensor das moedas criptográficas enquanto investimento, entende e preza o seu valor enquanto moeda regular. "Os avisos do Banco de Portugal quanto à bitcoins só servem para assustar - não os consumidores, mas quem trabalha nestas soluções, que ao ver esta atitude se esconde. Nós pedimos que o regulador mudasse de atitude, que explicasse o interesse no blockchain, nas moedas criptográficas... passaram nove meses e o que vemos é que diretores e subdiretores continuam apenas a falar de riscos. Ficou fora da equação quando vimos o Banco da Suíça a emitir regulação sobre moedas criptográficas e bitcoin - que lá até já podem ser usadas para pagar de impostos a bilhetes de comboio."
Pedimos cafés e a conversa passa a desmistificação de uma certa obscuridade que há ainda em volta do blockchain - tecnologia/base de dados cuja criação se atribui a um grupo de pessoas desconhecido e que se nomeou Satoshi Nakamoto para tornar os movimentos de dinheiro mais ágeis, simples e baratos do que na banca tradicional. "Todas as semanas vê-se por aí notícias de possíveis fraudes, mas eu não conheço nenhuma feita em blockchain ou bitcoin - já na banca... Quando vemos pessoas como os governadores ou CEO da JP Morgan alertar para riscos com tantos telhados de vidro", dá que desconfiar. Para Sebastião, a questão é simples: o bitcoin não é moeda para fazer stock de dinheiro nem sequer investimentos, porque não há abertura e fecho de praças, é um sistema sempre aberto: "Eu posso ir para a cama com a moeda a valer três mil e acordar com ela nos nove mil ou nos 500. Porque se trata de uma moeda deflacionária, ou seja, depende unicamente da oferta e da procura, e se não houver transações ela perde valor todos os dias. Além disso, é limitada, não dá para imprimir mais quando há problemas, e tudo o que acontece pode ser auditado ou verificado por qualquer pessoa."
E não pode ser usada para fugir ao fisco ou lavar dinheiro? "É impossível comprar por exemplo dez milhões em bitcoins porque não há. Tinha de estar dez anos a comprar moeda. O que vejo aqui é o que aconteceu com o mp3, quando a indústria discográfica não quis olhar para a avalanche provocada pela internet. É querer parar o vento com as mãos."
Com o nosso encontro a chegar ao fim, pergunto-lhe que desafios vê no seu futuro e diz-me que há dois claríssimos e decorrentes do software que idealizou e criou. O primeiro, entrar na área dos pagamentos completamente desmaterializados (com a Abypay); o segundo, o desenvolvimento em Portugal da Easypay, onde trabalham 17 pessoas e cujo rendimento vem, naturalmente, das comissões cobradas (logo em 2014, chegou a um milhão de euros de lucro, segundo foi noticiado na altura).
Dada a paixão de Sebastião pelo mar - faz windsurf, kitesurf "e vela menos porque a vida não permite" -, também tem um projeto nesta área. "Estou a "construir" um barco com materiais portugueses. Um catamarã que está a ser feito em Vila Real de Santo António, com moldes da Figueira da Foz, a partir do briefing que passei a um arquiteto naval porque não encontrava o barco dos meus sonhos: em fibra de vidro, com motores fora de bordo e pouco calado para poder andar em águas pouco profundas."
Levamos a conversa dos barcos até à despedida e Sebastião diz lamentar que Portugal não se abra verdadeiramente ao mar. "Dizemos que somos um país de marinheiros, mas ninguém sabe fazer nós e a maioria das pessoas não sabe navegar ou sequer nadar. Em Espanha há uma marina em cada esquina, na Suíça as escolas organizam semanas na neve. Está na altura de nos virarmos para o mar."
O Galito
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