A Carta SECRETA Que Compromete O Ministro Das Finanças
Aí está a carta que os deputados da Comissão de Inquérito à CGD exigiam conhecer e que mostra, sem margem para dúvidas, o compromisso entre António Domingues e o ministro das Finanças para libertar a administração do banco público da entrega da declaração de rendimentos e património no Tribunal Constitucional. A carta tem a data de 15 de novembro, o remetente é Domingues e o destinatário é Centeno: “Foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais”. Mais claro é impossível.
A troca de correspondência entre António Domingues, Mário Centeno e Mourinho Félix, entre outras ‘personagens’ deste filme, como o advogado Francisco Sá Carneiro e técnicos das Finanças, começou muito antes, mais exatamente a 11 de abril de 2016, de acordo com os documentos a que ECO teve acesso. E confirma o que já se suspeitava, apesar das declarações públicas feitas pelo ministro: houve mesmo uma discussão explícita sobre a exigência de Domingues para não entregar a declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional. E um acordo que permitiu a entrada do gestor na Caixa.
Os documentos enviados por Domingues à Comissão de Inquérito, 11 no total, com um conjunto de anexos, nomeadamente por correio eletrónico, servem para mostrar o que suportou a nomeação daquela equipa. Aliás, na carta remetida por Domingues ao presidente da comissão, com data de 31 de janeiro e receção no passado dia 1 de fevereiro, é o gestor que clarifica ao que vai: “considerando que a comissão rejeitou a argumentação aduzida [para não revelar estes documentos], venho juntar cópia de correspondência e documentação trocada (…) após a reunião de 20 de março de 2016, de alguma forma relacionadas com as condições colocadas para a aceitação dos convites para a nova administração da CGD”.
A carta de 15 de novembro é, no entanto, uma das peças que faltava neste puzzle de declarações e meias-declarações, confirmações e desmentidos, no espaço de meses. Nessa missiva — remetida cerca de três semanas depois de Marques Mendes levantar o problema das declarações de rendimento no Constitucional no seu programa na SIC –, António Domingues elenca o que já tinha sido feito no plano de capitalização do banco público. E cita quatro pontos:
A notificação à Comissão Europeia, que desenvolve a versão inicial de julho/agosto;O plano industrial;Os planos operacionais para a gestão dos NPL (crédito malparado);O acordo de objetivos acordados com a Direção-Geral da Concorrência europeia.
“É nestas circunstâncias (…) que surge o debate relativo à declaração de rendimentos e património dos membros do conselho de administração. Foi, desde logo com grande surpresa que vimos serem suscitadas dúvidas sobre as implicações da exclusão dos membros do conselho de administração da CGD do Estatuto do Gestor Público (EGP), concretamente sobre a possível necessidade de envio de tais declarações ao Tribunal Constitucional”.
Domingues insiste: “De facto, a não sujeição da administração a esse estatuto (…) tem, para além do mais, como consequência a não submissão ao dever de entregar ao TC a declaração de património e consistia, desde o início, uma premissa essencial para o projeto de recapitalização da CGD na ótica do investidor privado, na medida em que permitia — como permitiu — atrair para o projeto uma equipa internacional de profissionais (…) e foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais, como de resto o Ministério das Finanças confirmou”.E, na verdade, confirmou, numa resposta oficial ao jornal Público, datada de 25 de outubro, e citada também pelo ECO.
A gestão da CGD estava dispensada de apresentar declarações ao Constitucional, porque já as prestava ao governo como acionista e às entidades de supervisão bancária. Domingues sabia do que falava, mas tinha desde o dia 9 de novembro uma carta do Tribunal Constitucional a exigir as referidas declarações. E ameaças de pedido de demissão, como escreveu na carta ao ministro de dia 15.
António Domingues escreve que a gestão da CGD respeitará as decisões dos tribunais, mas avisa Mário Centeno: “Por lealdade e transparência, não posso deixar de referir a V.Exª, conforme já tive oportunidade de lhe referir que, caso o TC decida pela aplicação aos atuais membros do conselho de administração da CGD da lei 4/83 [uma lei anterior às que tinham sido negociadas entre os dois], obrigando-os em consequência a entregar a as respetivas declarações de património, com as atuais regras de declaração, alguns daqueles membros manifestaram-me a sua intenção de renunciarem às suas funções”. Porquê? “Domingues responde: “Por considerarem que se encontra alterado um dos principais pressupostos que, na sua avaliação pessoal, era central ao convite que lhes formulei e pedido e em nome de V.Exª”.
As condições de Domingues para aceitar o convite
Afinal, quando é que começa a negociação entre Domingues e Centeno e fica claro o compromisso do governo? Logo no primeiro email, datado de 11 de abril de 2016, o gestor, ainda vice-presidente do BPI, envia a Mário Centeno, às 16h27, propostas de alteração de estatutos e propostas de regulamentos do conselho de administração e das respetivas comissões. Mas é numa carta de 14 de abril que Domingues põe em cima da mesa as condições para aceitar o convite que lhe foi feito. “No seguimento das reuniões realizadas com V.Exª conforme então acordado, venho apresentar as bases que entendo necessárias para que a CGD continue a desempenhar o seu relevante papel no sistema financeiro português e que, conforme referi a V.Exª, são essenciais para aceitar o convite que V.Exª me dirigiu para liderar o conselho de administração daquela instituição bancária nacional”.
Domingues cita as reuniões com Centeno e com o secretário de Estado Mourinho Félix, a 18 e 21 de março de 2016. Nesta carta, não é explicitada a questão das declarações ao Tribunal Constitucional, mas é sublinhada a necessidade de garantir que a CGD “opere, interna e externamente, em termos competitivos, sem limitações que afetem a sua capacidade concorrencial ou que a coloquem em desvantagem face aos seus concorrentes diretos”. E, nessa data, é Domingues que sublinha e elogia os pontos de vista que lhe foram transmitidos por Mário Centeno. A carta-base de compromissos tem dois pontos e várias alíneas:
GOVERNO DA EMPRESAMODELO DE REMUNERAÇÃO E INCENTIVOS DA CGDREFORÇO DE CAPITAIS PRÓPRIOS
E outros tantos anexos, com particular realce para os que eram relativos à política de remunerações. Em todos, fica clara a intenção de Domingues de subordinar o banco público às regras bancárias e ao regime das instituições financeiras, excluindo-a das que vigoravam para o Setor Empresarial do Estado e para o Estatuto do Gestor Público, as duas peças legais que viriam a ser determinantes neste processo, e na demissão de António Domingues.
É num quadro-resumo sobre o regime do Setor Empresarial do Estado e num segundo, relativo ao Estatuto do Gestor Público, que fica claro, preto no branco, as exigências do vice-presidente do BPI. “Enunciam-se de seguida os aspetos do regime de Direito Público aplicável aos gestores públicos e às empresas públicas que, por representarem constrangimentos impeditivos do posicionamento da CGD em igualdade com os seus concorrentes no mercado, se entendem que devem ser afastados”. De que é que Domingues está a falar? Sim, adivinhou, entre outros pontos, da “Publicidade, transparência e deveres de declaração a entidades de fiscalização”. Também poderia estar escrito Tribunal Constitucional.
Domingues faz uma descrição do regime em vigor no Estatuto do Gestor Público, nomeadamente a obrigação de declarar “quaisquer participações e interesses patrimoniais que, direta ou indiretamente, detenha na empresa na qual irá exercer funções ou em qualquer outra”, e propõe alterações. “Não devem existir obrigações de publicidade, transparência ou de declaração relativamente à identidade e aos elementos curriculares de todos os membros dos seus órgãos sociais, às respetivas remunerações e outros benefícios além das que já decorrem da lei comercial, incluindo da lei e regulação bancária”.
É a partir daqui que se sucedem as trocas de emails entre membros de gabinetes das Finanças, a diretora-geral do Tesouro, Elsa Roncon Santos, António Domingues e o secretário de Estado Mourinho Félix com um objetivo, expresso numa mensagem com data de 3 de maio de 2016, às 20h51, de Susana Larisma (chefe de gabinete de Mourinho Félix) para a diretora do Tesouro. “Conforme já por nós falamos, muito agradecia que habilitasse este gabinete com as informações necessárias para que a CGD deixe de estar abrangida pelo Estatuto do Gestor Público”. No dia seguinte, 4 de maio, são vários os emails trocados e que já estão na posse dos deputados, sempre com o mesmo tema: Estatuto do Gestor Público.
O CAMINHO PARA ISENTAR OS GESTORES DA CAIXA
E, finalmente, no dia 16, há uma resposta técnica da direção geral do Tesouro, enviada o subdiretor-geral Pedro Ventura e assinada por Cristina Freire. Que se centra, particularmente, na questão da remuneração face ao que é praticado nas outras empresas públicas e às exceções criadas no governo de Pedro Passos Coelho. Avisa para os riscos inerentes a este processo, mas refere: “Tendo em conta a pretensão manifestada no sentido de os administradores da CGD não estarem sujeitos ao Estatuto do Gestor Público, parece-nos que tal só será possível através de uma alteração legislativa, designadamente ao Estatuto, e em concreto ao artigo 28º, que viesse prever uma exceção para os referidos gestores públicos”. Coisa que veio a suceder, sem ter em conta um decreto de 1983 que obrigava os titulares de cargos públicos, incluindo os gestores, a entregar a declaração de rendimentos e património.
No dia 23 de maio, às 23h21, António Domingues reenvia para o secretário de Estado Mourinho Félix um email que tinha recebido minutos antes, do seu advogado, Francisco Sá Carneiro, da sociedade Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados, com uma proposta de diploma legal que excluía a CGD do regime do setor empresarial do Estado e os seus administradores do Estatuto do Gestor Público. Recorde-se, aqueles diplomas que, para Domingues, tinham de ser corrigidos, nomeadamente a questão da declaração de rendimento e património para o Constitucional.
No preâmbulo da proposta de decreto-lei redigida pela equipa de advogados de António Domingues, são várias as justificações para a um novo decreto que estabelece um regime jurídico especial para estas instituições de crédito público, como a CGD, para adaptar os princípios de regras do setor empresarial público e do Estatuto do Gestor Público aos bancos que estão no universo do Estado. Sempre com o argumento da necessidade de permitir uma concorrência entre a CGD e os outros bancos privados, apontam-se dois aspetos: “O primeiro prende-se com a aplicação do regime do setor empresarial do Estado, na medida em que este regime impõe constrangimentos adicionais de informação e de controlo a entidades já fortemente reguladas e obrigadas a exigentes regras de transparência, supervisão e controlo por entidades supervisoras nacionais e internacionais, sem claro benefício para o interesse público e com o inerente custo”. Aqui, a referência às declarações de rendimento é óbvia. O segundo aspeto, claro, tinha a ver com a política de remunerações na CGD.
Em todos os emails, fica claro que estas mudanças seriam suficientes para permitirem uma política remuneratória competitiva com a seguida pelos privados, como também a exclusão de obrigações como as declarações de rendimento. O pior foi, mesmo, a lei de abril de 1983, a que o Constitucional usou para obrigar à entrega das referidas declarações. E que determinou a saída de Domingues e da sua equipa.
Nas semanas seguintes, sucederam-se mais uma vez trocas de documentos entre o Ministério das Finanças e o escritório de Francisco Sá Carneiro, advogado de António Domingues. Com propostas de redação do diploma do Estatuto do Gestor Público. O governo aprova, de resto, no dia 8 de junho, em Conselho de Ministros, o fim das limitações aos salários na Caixa e as mudanças ao Estatuto dos Gestores Públicos, para ‘salvar’ a CGD daquele regime mais restritivo. Nessa data, só se falava dos salários, nunca das obrigações de transparência e publicitação de rendimentos e património.
Na documentação enviada por António Domingues à comissão parlamentar de inquérito, surgem, depois, nos meses de setembro e outubro, muitas trocas de correspondência, emails e cartas, já centrada nas questões relacionadas com a capitalização do banco público. Com Domingues já em funções na CGD, porque tinha começado no dia 31 de agosto.
Foi no dia 19 de outubro, no Parlamento, que Mário Centeno assumiu, pela primeira vez, quanto é que António Domingues ganharia na CGD. Já se sabia que seria um salário competitivo em relação à banca privada, não se sabia o número, que já estava fechado há meses: 423 mil euros brutos por ano, mais 50% de prémio em função de objetivos.
No dia 23 de outubro, quem suscitou publicamente dúvidas sobre a questão da declaração de rendimentos e património foi Marques Mendes. Com ironia, aliás, porque dizia que deveria ter sido, seguramente um esquecimento, uma omissão. Não foi, e Marques Mendes também sabia, à data, que tinha havido um acordo entre António Domingues e Mário Centeno sobre essa questão.
A CARTA COM A RESPOSTA DE MÁRIO CENTENO
O último a perceber o que estava a passar-se e a ficar sem apoio de quem o tinha convidado e aceitado as suas condições foi mesmo António Domingues. Quando, na carta de 15 de novembro, Domingues alerta para o problema da declaração de rendimentos, recebe de volta a resposta de Centeno, logo no dia seguinte.
E o que diz? O ministro é cuidadoso nas palavras e nunca desmente o acordo citado por António Domingues. Mas já estava noutra fase. “Tomo nota das notificações do Tribunal Constitucional de que me dá conhecimento. Permita-me que cumprimente a elevação do conselho de administração da CGD e de cada um dos seus membros na determinação que me comunica de respeitar a decisão do Tribunal. Estou convicto ser do interesse da CGD que tal determinação [do TC] se concretize num prazo muito curto“. Ou seja, nesta data, é Centeno que assume, implicitamente, uma posição totalmente contrária daquela que o próprio ministério tinha assumido quando defendia que a CGD não tinha de prestar contas a não ser ao próprio governo, enquanto acionista. O mundo (já) tinha mudado, até Marcelo Rebelo de Sousa tinha exigido a apresentação da declaração de rendimentos no dia 4 de novembro, numa nota publicada no site da Presidência, e passou a bola para o próprio Constitucional.
O ministro vai, aliás, mais longe. Perante os avisos de Domingues sobre a possível demissão de administradores da CGD pelo não cumprimento de um acordo, Centeno não hesita em dizer ao presidente do banco público que lhe deve entregar uma lista de potenciais candidatos à sua substituição. “Naturalmente, os putativos novos membros dos órgãos sociais da CGD têm de conhecer e estar dispostos a cumprir todas as obrigações legais a que se encontrarão sujeitos”.
No dia 18 de novembro, depois de a questão ter sido levantada por António Lobo Xavier, no programa “Quadratura do Círculo” na SIC Notícias, o ministro das Finanças foi questionado diretamente sobre a existência ou não de um eventual compromisso escrito entre o Governo e o então presidente da CGD que o isentasse de apresentar as declarações no TC. Mas Mário Centeno foi evasivo na resposta: afirmou que “o único compromisso” do Governo em relação à CGD em Portugal “é o de que se manterá um banco público, capitalizado de maneira a poder desempenhar o papel que tem de desempenhar no sistema financeiro e na economia portuguesa e um banco que seja competitivo”.
Dez dias depois da carta de Mário Centeno, a 27 de novembro, António Domingues apresentou a renúncia ao mandato e à presidência da CGD.
Fonte: MSN