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Por Filipe Santos Costa
Jornalista da secção Política
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19 de Outubro de 2016 |
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O pior espetáculo do mundo
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Bom dia!
Sente o cheio a napalm pela manhã? Vem da América. O countdown já começou. Esta noite - na verdade, esta madrugada, às duas da manhã, hora de Portugal - é a noite do tira-teimas, do tudo ou nada, do grande combate de boxe,
do derradeiro embate em que vale tudo menos arrancar olhos. A metáfora
pugilística aplica-se na perfeição ao terceiro e último confronto entre
Hillary Clinton e Donald Trump, tendo em conta que o milionário que passou um debate a fungar sugeriu que a sua adversária se submeta a um teste de drogas,
por entre uma avalanche de acusações, bravatas, golpes mais ou menos
baixos, mais ou menos irregulares, mais ou menos escandalosos. Trump
sendo Trump…
A campanha chegou a um nível tal que não falta quem se preocupe com o exemplo que está a ser dado aos mais jovens
- como explicar aos alunos uma campanha como esta, em que um candidato
fala de mulheres como objetos sexuais, incita o ódio contra os
muçulmanos, promete fazer muralhas contra os mexicanos, goza de
deficientes e denigre prisioneiros de guerra?, questiona-se o New York
Times, que conta o caso de um professor que, tendo em conta o que se passou no debate precedente, não quer que os seus alunos vejam o recontro desta noite.
Os especialistas em comportamentos eleitorais garantem que, nesta altura do campeonato, não um debate que irá mudar o rumo dos acontecimentos, salvo um deslize de dimensões colossais de um ou outro lado. Como escreve o site Vox, “não
é provável que Trump, por si, possa fazer alguma coisa significativa
para dar a volta à situação durante um debate. Nesta fase, ele é
simplesmente demasiado conhecido e demasiado detestado (...) Por isso, a
questão principal neste último debate não é realmente sobre Trump. É,
antes, sobre se Hillary Clinton conseguirá evitar grandes deslizes.”
Ora bem: qual dos dois candidatos é mais propenso a deslizes e qual
cumpre o seu guião com disciplina estóica? Pois... E qual está mais
pressionado para fazer qualquer coisa espetacular que vire as sondagens,
que dão uma vantagem média de cerca de sete pontos à ex-primeira-dama? Pois, outra vez… Tudo se encaminha para o que poderá ser o pior espetáculo do mundo.
Não são só as sondagens que se inclinam para uma vitória certa de Clinton (ao ponto de ser pertinente perguntar se “Esta eleição já acabou?”). Trump acumula todos os sinais exteriores de derrota: o desvario dos ataques à adversária - Hillary não só é “vigarista” e “mentirosa” e “devia estar presa”, como é “feia“-, os tiros contra o establishment do “seu” Partido Republicano, a teoria da conspiração que envolve os media, as empresas de sondagens e o mundo em geral (não perca o hilariante diagrama de Stephen Colbert a explicar a cabala), tudo culminando em acusações de fraude - uma tática que está a levantar receios de violência e intimidação
e, ironicamente, cai em cima dos republicanos, pois os principais
"swing states" (os estados onde o resultado está mais disputado) são
dominados pelo Partido Republicano.
Barak Obama veio ontem a jogo recomendar a Trump que deixe de se lamuriar com teorias conspirativas sobre fraude numa eleição que ainda nem aconteceu.
Hillary está tão confortável nas sondagens que nem as revelações embaraçosas do Wikileaks a parecem beliscar (o Washington Post faz um bom resumo sobre o caso dos emails). Já agora: a
campanha pró-Trump da Wikileaks é tão descarada que até o Equador, que
deu asilo a Julian Assange na sua embaixada em Londres, cortou a ligação à internet ao fundador da organização.
As coisas correm tão bem aos democratas que estes até já sonham com um terramoto eleitoral que lhes permita arrebatar não só a Casa Branca como o Senado e a Câmara dos Representantes. Enquanto Clinton aposta forte em bastiões que deviam estar seguros para os conservadores, a campanha republicana toca a rebate: a questão já não é só quão baixo pode ser o resultado de Trump, mas o salve-se quem puder
para segurar a maioria no Congresso. Até ver, a máxima de Napoleão
serve na perfeição ao lado de Hillary: “Nunca interrompas o teu
adversário quando ele estiver a cometer um erro”.
Entretanto, conte com mais dois protagonistas nesta novela: Melania Trump voltou e o realizador Michael Moore também. Melania, para falar de harmonia doméstica e de conspirações vis, Moore para mostrar os podres da Trumpland.
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OUTRAS NOTÍCIAS
Cá dentro
Na ressaca da entrega do Orçamento do Estado, a guerra partidária vai de vento em poupa e previsível. Para a direita, que aumentou impostos como nunca, o OE define-se por “aumento de impostos”, “instabilidade fiscal” e um curioso conceito de “justiça social”. Para o PS, Maria Luís Albuquerque, que atacou o documento, tem “um descaramento sem limites”. O único rasgo de originalidade vem do BE, que consegue em simultâneo apoiar o Orçamento, dizer que este não é de esquerda e defender que “o PSD devia dar o parabéns pelo OE”.
Com as coordenadas baralhadas entre esquerda e direita, Fernando
Rocha Andrade veio dar o seu contributo para deixar PCP e BE à beira de
um ataque de nervos. Na sua primeira entrevista desde que se viu embrulhado no caso das viagens pagas pela GALP para ir ver jogos da seleção, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais defende, no DN e na TSF, que "a sustentabilidade das finanças públicas tem de ser uma bandeira da esquerda".
Ontem à noite, o BE acrescentou novos dados aos que já se sabia sobre o OE. Por acordo com os bloquistas, o Governo vai mudar as regras para calcular as contribuições dos recibos verdes, beneficiando os trabalhadores. Mas o Jornal de Negócios de hoje avisa que estamos perante más notícias para os trabalhadores dependentes com recibos verdes.
O Público, por seu lado, conta em manchete que um dos expedientes do Governo para compor o défice de 2017 está a causar tensão entre as Finanças e o Banco de Portugal. Carlos Costa não gostou da ideia do banco central ter de pagar, no ano que vem, 450 milhões de euros em dividendos ao Estado, o que significa mais 303 milhões do que este ano.
Por outro lado, há um curioso efeito dos cálculos falhados de Mário Centeno. Quase
todas as previsões que o ministro inscreveu no OE deste ano foram tiros
na água, mas pelo menos num caso isso é uma boa notícia. O João Silvestre explica-lhe “como o menor crescimento do PIB vai ajudar Centeno a convencer Bruxelas”.
Ainda sobre as contas nacionais: a contenção de despesa decretada pelo
Ministério das Finanças não tem como único efeito compor os resultados
do Exel para Bruxelas ver. Também resulta nisto: escolas que desde a abertura do ano letivo (a tal que foi um sucesso, lembra-se?) não têm assistentes operacionais, com umas a fechar e outras a cortar no horário dos serviços, como conta a Isabel Leiria no Expresso Diário.
Como não podia faltar, duas notícias da banca nacional, sempre tão pródiga em novidades. Primeira: António Domingues, o novo presidente da Caixa Geral de Depósitos, vai receber um salário mensal superior a 30 mil euros. Toda a nova administração terá salários que, em geral, duplicam o valor que era pago à administração anterior.
A notícia foi dada no Parlamento pelo ministro das Finanças. Só o PS
não viu razões para criticar esta engorda dos salários da administração
da Caixa. Em resposta às críticas da oposição, Mário Centeno disse uma piada de Herman José, como relata o Adriano Nobre. Entretanto, o Jornal de Negócios fez contas e concluiu que Domingues vai ganhar mais do que os presidentes do BCP e do Novo Banco, mas menos do que os do Santander e do BPI.
Segunda: há um falso banco Finantia que se faz passar pelo verdadeiro Banco Finantia. O aviso está feito pela CMVM.
Mas sobre dinheiro, a notícia mais insólita das últimas horas foi dada pelo Observador: o PS,
com um passivo acumulado superior a 21 milhões de euros, pede aos seus
autarcas e candidatos que contribuam para as despesas de campanha
eleitoral das autárquicas. A carta do partido seguiu já com o NIB e tudo. Podia dar um título de revista no Parque Mayer: “Queres ser eleito? Paga!”
Na Liga dos Campeões, o Sporting começou a perder com o Borussia
Dortmund e acabou derrotado e o Porto começou a perder contra o Bruges e
terminou vencedor. Na Tribuna Expresso está tudo bem explicado. Hoje entra em campo o Benfica, na Ucrânia, contra o Dínamo Kiev, mas o jogo do dia é o regresso de Guardiola a Camp Nou, para dirigir o seu Manchester City contra o seu “ex” Barcelona.
Lá fora
A grande ofensiva das forças iraquianas e seus aliados para reconquistar Mossul,
a segunda principal cidade do Iraque, ao ISIS tem sido descrita como um
golpe definitivo para o Estado Islâmico, mas esta pode ser uma boa
notícia que esconde outra, má. A queda de Mossul pode ter como reverso um aumento do número de jihiadistas na Europa e no Magrebe, devido ao regresso dos soldados do “califado” aos seus países de origem. É a batalha “onde o Daesh pode ganhar mesmo que perca”. O El País tem dois mapas preciosos para perceber a batalha de Mossul e o Guardian, no terreno, faz o relato de uma luta que será longa, pois “o ISIS não vai desistir”. E vale a pena ler este texto de opinião, para não termos a ilusão de que em Mossul há um confronto entre o bem e o mal. É um bocadinho mais complicado.
“Entre agora e dezembro, se não se encontrar uma solução, Aleppo deixará de existir” - o aviso é do enviado especial da ONU para a Síria.
A Rússia anunciou a suspensão temporária dos voos e bombardeamentos, em
antecipação de uma trégua prevista para quinta-feira, por razões
humanitárias. Mas a paz continua a ser uma miragem na cidade-mártir da
Síria.
MARQUE NA AGENDA
Arranca amanhã o Doc Lisboa, o festival de cinema documental. O “Jornal de Letras” fez uma lista de dez filmes a não perder durante o Doc, e destaco, desta lista, “As Cartas do Rei Artur”, de Cláudia Rita Oliveira, que já tive oportunidade de ver (pode ver aqui o trailer). A
partir das cartas que Artur Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny trocaram
ao longo de décadas, a realizadora faz um retrato dos autores, nomes
maiores do movimento surrealista português, mas também do seu tempo e
sobretudo da sua relação, que Seixas resume com estas palavras: “Amei muito o Mário, o que não quer dizer que fôssemos amantes”.
Uma história de obsessão, de reconhecimento e de caminhos
desencontrados, de um artista que fazia questão de ocupar o centro do
palco e de outro que optou por ficar dois passos ao lado dos holofotes.
“Eu tomei o partido de me isolar para deixar o Mário com todo o seu
público… Eu estava ali um bocadinho a mais. Resolvi: tenho de provar a
mim mesmo se realmente valho a pena ou se não valho a pena. E então
comecei a isolar-me”, conta, às tantas, Cruzeiro Seixas, cujos
depoimentos, memórias e diários complementam a troca epistolar como
espinha dorsal deste documentário. O artista plástico e escritor, hoje
com 95 anos, estará no domingo, às 18h45, no Cinema São Jorge, para
assistir ao vivo à estreia mundial do filme, que volta a ser projetado
no dia seguinte na Culturgest (espreite neste link a programação completa do Doc Lisboa).
O QUE ANDO A LER
Todos os dias o noticiário sobre a Síria mostra que as notícias sobre
a morte da guerra fria foram exageradas. O mesmo com as acusações
norte-americanas sobre o envolvimento de hackers russos na obtenção dos
documentos relativos a Hillary Clinton que têm sido divulgados pela
Wikileaks. A nova literatura de espionagem tem pano para mangas, mas nos
últimos tempos entretive-me, não com uma ficção de espiões high-tech,
mas com um relato verídico do tempo em que a espionagem se fazia
com gente de carne e osso que calcorreava as ruas, deixava marcas em
postes de eletricidade, fazia entregas em troncos ocos de árvores e não
se escondia atrás de computadores. “The Billion Dollar Spy”, do
vencedor do Pulitzer David E. Hoffman, tem como subtítulo “Uma história
verídica de espionagem e traição na Guerra Fria”.
Em janeiro de 1977, um agente da CIA em Moscovo foi abordado por um
homem russo de meia idade numa bomba de gasolina. O estranho conseguiu
lançar para dentro do carro do americano um bilhete manuscrito no qual
se propunha falar de “assuntos estritamente confidenciais” com o “agente
apropriado”. Os americanos não ligaram. Eram os tempos áureos da
espionagem e da contra-espionagem, quando havia armadilhas a cada
esquina. O russo precisou de fazer mais três abordagens
parecidas, ao longo de mais de um ano, até ser levado a sério. Adolf
Tolkachev tornou-se no mais precioso espião que alguma vez trabalhou
para os EUA. Era um russo normal, que odiava o regime soviético com
todas as suas forças e se propunha fazer-lhe “o máximo de mal possível
no mínimo tempo possível”. Estava numa posição privilegiada: era engenheiro-chefe no Instituto de Pesquisa de Rádio-Engenharia, tendo acesso a todos os segredos dos radares e da aviação soviética.
Hoffman relata cada operação, cada encontro, cada movimento, cada
gadget (sim, há máquinas fotográficas miniatura e comprimidos de cianeto
escondidos nas canetas) e cada manobra de despistagem de vigilância com
um rigor e um ritmo que criam o suspense dos melhores livros de Le
Carré ou Graham Greene. E não esquece o elemento essencial sobre o qual
Greene nos deixou tratados: o fator humano. Tolkachev, para além de
exigir grandes quantidades de dólares que nunca poderia gastar, apenas
para sentir o seu trabalho valorizado, pedia também, como pagamento, cassetes com música ocidental para o filho. As escolhas incluíam Alice Cooper e Nazareth (!!!).
Fico por aqui, com sinceros votos de que a banda sonora do seu dia seja
melhor do que o gosto musical do jovem Tolkachev. Experimente ouvir isto,
por exemplo. Vai bem com o outono. Mas quem percebe mesmo de música é o
Miguel Cadete, que está cá amanhã para lhe tirar outro Expresso Curto.
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