Reveladas histórias de resistência ucraniana após a retirada de Kherson
Dois soldados russos caminhavam numa rua em Kherson numa noite de primavera no início de março, poucos dias depois de Moscovo ter capturado a cidade. A temperatura naquela noite ainda estava abaixo de zero e não havia energia, deixando a cidade em plena escuridão enquanto os soldados regressavam ao acampamento depois de umas bebidas.
Quando um tropeçou, o outro parou para urinar do lado da calçada. De repente, espetaram-lhe uma faca do lado direito do pescoço. Caiu na relva. Momentos depois, o segundo soldado russo, embriagado e sem ter consciência disso, teve o mesmo destino.
"Matei o primeiro imediatamente e depois apanhei o outro e matei-o ali mesmo", diz Archie, um combatente ucraniano da resistência que descreveu a cena acima à CNN. Diz que avançou por puro instinto. "Vi os orcs (soldados russos) fardados e pensei, porque não?", acrescenta Archie, usando um termo depreciativo para os russos, enquanto caminha pela mesma rua. "Não havia pessoas nem luz e aproveitei a oportunidade."
O jovem de 20 anos é um lutador de artes marciais mistas experiente, com pés ágeis e reflexos aguçados, que já andava sempre com um uma faca para autodefesa, mas nunca tinha matado ninguém. A CNN refere-se a ele pelo seu nome de código para proteger a sua identidade.
"A adrenalina foi essencial. Não tive medo nem tempo para pensar", conta. "Nos primeiros dias senti-me muito mal, mas depois apercebi-me que eram meus inimigos. Eles invadiram a minha terra e querem ficar com ela.”
O relato de Archie foi confirmado por fontes militares e de informações ucranianas que trocaram comunicações com ele e outros combatentes. Foi um dos muitos combatentes da resistência em Kherson, uma cidade com 290 mil pessoas antes da invasão, que a Rússia tentou vergar, mas não conseguiu quebrar. As pessoas em Kherson deixaram as suas posições claras logo após a tomada da cidade pela Rússia a 2 de março, iam para a praça principal para protestos diários com a bandeira azul e amarela da Ucrânia.
Mas Kherson, a primeira grande cidade e única capital regional que as tropas russas conseguiram ocupar desde o início da invasão, foi um símbolo importante para Moscovo. A dissidência não podia ser tolerada. Os manifestantes foram recebidos com gás lacrimogéneo e balas, e os organizadores e os residentes mais aguerridos foram presos e torturados. Quando as manifestações pacíficas não funcionaram, o povo de Kherson recorreu à resistência e cidadãos comuns como Archie começaram a agir por conta própria.
"Não fui o único em Kherson", diz Archie. "Havia muitos guerrilheiros inteligentes. Todas as noites, foram mortos pelo menos 10 russos."
Inicialmente em operações individuais, os residentes mais decididos começaram a organizar-se em grupos, coordenando as suas ações com os militares ucranianos e o serviço de informações fora da cidade. "Tenho um amigo com quem íamos à cidade à procura de ajuntamentos de soldados russos", diz. "Verificávamos as rotas de patrulha deles e depois dávamos toda a informação aos operacionais da linha da frente e eles sabiam a quem passar as informações."
Os soldados russos não foram os únicos alvos de assassínio. Vários funcionários do governo instalados em Moscovo foram visados durante os oito meses da ocupação russa. Os seus rostos foram impressos em cartazes colocados por toda a cidade, prometendo vingança pela sua colaboração com o Kremlin, numa guerra psicológica que durou toda a ocupação. Muitas dessas promessas foram cumpridas, tendo alguns desses funcionários sido abatidos e outros mortos nos seus carros em incidentes que as autoridades locais pró-russas descreveram como "ataques terroristas".
Archie foi detido pelas autoridades ocupantes no dia 9 de maio, depois de assistir a um desfile do dia da vitória, celebrando a vitória da União Soviética na Segunda Guerra Mundial, usando uma faixa amarela e azul na t-shirt.
Foi levado para um centro de detenção local, que tinha sido tomado pelo Serviço Federal de Segurança (FSB) da Rússia e usado para torturar soldados ucranianos, funcionários dos serviços de informações e guerrilheiros, segundo Archie. "Eles espancaram-me, eletrocutaram-me, deram-me pontapés e bateram-me com bastões", recorda Archie. "Não posso dizer que me mataram à fome, mas não davam muito o que comer."
"Nada de bom aconteceu lá", disse. Archie teve a sorte de ser libertado após nove dias e depois de ter sido obrigado a gravar um vídeo a dizer que tinha concordado trabalhar com os ocupantes russos. O seu relato do que se passou nas instalações foi confirmado por fontes militares ucranianas e outros detidos. Mas muitos outros nunca partiram, de acordo com Archie e outros combatentes da resistência, bem como fontes militares e dos serviços de informações ucranianos.
Ihor, que pediu à CNN para não revelar o seu apelido para a sua proteção, também foi detido nessas instalações. "Retiveram-me aqui durante 11 dias e durante esse tempo ouvia gritos da cave", conta o jovem de 29 anos. "As pessoas eram torturadas, espancadas com paus nos braços e nas pernas, aguilhões, e até ligadas a baterias e eletrocutadas ou afogadas parcialmente."
Ihor foi apanhado a transportar armas e diz que "felizmente" só foi espancado. "Cheguei depois da época em que as pessoas eram espancadas até à morte aqui", recorda. "Fui atacado nas pernas com um taser, eles usam-nos como boas-vindas. Um deles perguntou-me porque que me tinham trazido e outros dois começaram a bater-me nas costelas."
Durante a sua detenção, Ihor conseguiu esconder que era membro da resistência de Kherson e que transportar armas não foi a única coisa que fez. Ihor diz que também forneceu informações aos militares ucranianos – uma atividade que lhe teria valido punições muito mais brutais. "Se encontrássemos algo, víamos, (nós) tirávamos uma fotografia ou fazíamos um vídeo (e) enviávamo-los para as forças ucranianas, que depois decidiriam se a atacariam ou não", explica.
Entre as coordenadas que comunicou aos militares ucranianos está um armazém na cidade de Kherson. "Os militares russos mantinham entre 20 a 30 veículos aqui, havia camiões blindados, veículos blindados de transporte de pessoal, e viviam aqui alguns russos", diz Ihor.
As forças russas foram rápidas a esvaziar o que restava do valioso interior, mas o edifício destruído tem as marcas do ataque violento. A maior parte do telhado desmoronou, as paredes estavam destruídas e os vidros partidos ainda cobrem a maior parte do chão. A estrutura permanece de pé, mas o metal foi parcialmente destruído pela explosão.
Ihor usou a aplicação de mensagens Telegram para comunicar as coordenadas do edifício à sua ligação militar, a quem ele se referiu como "o fumo". Com a informação, enviou um vídeo que gravou secretamente. "Liguei a câmara, apontei-a para o edifício e depois andei e falei ao telefone enquanto a câmara estava a filmar", explica. "Depois apaguei o vídeo, claro, porque se me mandassem parar nalgum sítio e verificassem os meus vídeos e fotografias, haveria perguntas..." Ele enviou a informação em meados de setembro e, apenas um dia depois, as instalações foram alvo da artilharia ucraniana.
Os Estados Unidos e a NATO avaliaram que, quando a Rússia iniciou a sua invasão da Ucrânia, o Kremlin esperava que as suas forças fossem recebidas como salvadoras, acolhidas de braços abertos. A realidade não correspondeu às expectativas, não só nos territórios onde os exércitos de Moscovo foram obrigados a recuar, mas também nas áreas que conseguiu capturar.
O ataque ao armazém que Ihor denunciou é um dos muitos envidos por resistentes ucranianos dentro de Kherson que trabalhavam incansavelmente e com grande risco para perturbar as atividades russas dentro da cidade.
Oito meses depois de ter sido ocupada pela Rússia, a cidade de Kherson está agora de volta ao controlo ucraniano e os exércitos de Moscovo estão de pé atrás, obrigados a retirar-se da margem ocidental do rio Dnipro. Mas, apesar de alcançar a vitória aqui, a Ucrânia continua a enfrentar ataques de mísseis quase diários em quase todo o lado, enquanto as forças russas continuam a pressionar no Leste.
Olhando para trás, Ihor, pai de uma filha de três meses, diz que teve sorte de não ter sido apanhado. "Não foi difícil, mas foi perigoso", explica. "Se me apanhassem a filmar tal coisa, deter-me-iam e provavelmente não me deixariam sair vivo."