segunda-feira, 15 de junho de 2020

DO TEMPO DA OUTRA SENHORA - 14 DE JUNHO DE 2020


020 11:09
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Do Tempo da Outra Senhora


Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge

Posted: 11 Jun 2020 10:03 AM PDT


 Fig. 3 – Ricardo Jorge no Laboratório. Ricardo Fonseca (2020).
Fotografia de Luís Mendeiros (2020).
Introdução
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. Por sugestão e com indicações minhas ocorreu em primeiro lugar, a criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de “SÃO ROQUE”, invocado pela comunidade católica como Santo Protector contra as epidemias. Seguiu-se a criação pelas Irmãs Flores das figuras “PERALTA NA PANDEMIA” e “SÉCIA NA PANDEMIA”, retratando em contexto social a resposta possível à pandemia, através do uso de máscaras comunitárias. Finalmente, a criação por Ricardo Fonseca da figura de “RICARDO JORGE”, figura maior da Medicina Social em Portugal, que em 1899 concebeu medidas profiláticas que ainda hoje são usadas no combate às pandemias (Vide Biografia de Ricardo Jorge).
A materialização duma ideia
Contactei o barrista Ricardo Fonseca a quem dei conta da minha intenção de ver modelada a figura de Ricardo Jorge, visando assinalar no barro a figura emblemática máxima do combate às epidemias em Portugal. Lancei-lhe então o repto de ser ele a materializar no barro a ideia que me surgira na mente. Ele foi receptivo e aceitou entusiasticamente a missão que eu lhe atribuíra.
Fontes documentais
Como fontes de inspiração documental, forneci ao barrista duas imagens de Ricardo Jorge em 1899, com a idade de 41 anos. Uma (Fig. 1) da autoria do fotógrafo Guedes de Oliveira, que retrata o médico sentado à sua mesa de trabalho, efectuando uma observação microscópica. Outra (Fig. 2) da autoria do fotógrafo Aurélio Paz dos Reis, que mostra o cientista em pé, frente a uma bancada de laboratório, repleta de utensílios e montagens laboratoriais usadas em Química.
Atributos
Sugeri ao barrista que modelasse a figura de Ricardo Jorge, envergando um traje como o da Fig. 2, mas sentado à mesa de trabalho como na Fig.1. De resto, sublinhei a importância de quatro atributos em Ricardo Jorge. Dois deles de natureza física: uma barba abundante e a utilização de óculos com aros circulares. Os outros dois inerentes à sua actividade profissional: a observação microscópica e o registo de observações. E mais não disse, nem tinha que dizer, pois “Quem sabe da poda é o podador”.
Modelação
No acto da encomenda disse ao barrista que não queria “Obras de Santa Engrácia” e apesar de que “Sem tempo nada se faz”, tinha que ser “Obra começada, obra acabada”. E assim foi. Ricardo Fonseca seguiu “Tintim por tintim” e “Com todos os efes-e-erres”, aquilo que lhe tinha sido sugerido. “Mão vai, mão vem”, a obra lá nasceu, já que “O olho do mestre é régua”. Como é sabido, “As obras mostram quem cada um é”. Neste caso e como sempre, a modelação da figura de Ricardo Jorge pelo barrista Ricardo Fonseca, revelou toda a sua mestria, bom gosto e fidelidade aos cânones da modelação de Bonecos ao modo de Estremoz. A Ricardo Fonseca, o meu muito obrigado pela rápida resposta à chamada e pelo êxito no cumprimento da missão que lhe foi confiada.
Ricardo Jorge por Ricardo Fonseca
Figura antropomórfica masculina, sentada numa cadeira de quatro pés e com costas, tendo as mãos sobre uma mesa de trabalho, também de quatro pés, cujo aspecto castanho-escuro configura madeira, o mesmo se passando com a cadeira. A mão direita empunha aquilo que parece ser uma caneta preta por cima daquilo que figura ser uma folha de papel branco, no qual são visíveis anotações manuscritas. A mão esquerda está apoiada na base daquilo que simula ser um microscópio com componentes cor de latão, à excepção da base circular assente na mesa e que é negra.
Na cabeça, o cabelo é castanho-escuro e a face está coberta por uma barba cerrada. Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, imitando as pestanas e as sobrancelhas. Os olhos estão potenciados por óculos de aros redondos em arame.
Traja um fato castanho-escuro com corte à maneira dos finais do séc. XIX, sendo o casaco do tipo paletó com virados e bolsos de fora, de chapa, do qual não é visível a abotoadura. A parte detrás do casaco ostenta ao fundo uma abertura longitudinal, central. Usa uma camisa branca com colarinhos, cujos punhos saem das mangas do casaco. Sob o colarinho está presa um gravata preta com nó, parcialmente encoberta por um colete cinzento com virados como os do casaco e com uma abotoadura de quatro casas.
A figura usa sapatos negros. Estes, a mesa e a cadeira assentam numa base rectangular cor barro, configurando um chão de tijoleira quadrada.

Biografia de Ricardo Jorge

Nascimento e estudos
Ricardo de Almeida Jorge nasceu na cidade do Porto, a 9 de Maio de 1858, no seio de uma família modesta. Com 16 anos apenas, ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a qual frequentou com brilhantismo, vindo a licenciar-se aos 21 anos com as mais altas classificações.
Vida profissional
Iniciou a sua vida profissional, em 1880, como professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, ocupação que conciliava com a actividade clínica. Em 1883 deslocou-se a Estrasburgo e a Paris em busca de uma aprendizagem impossível de receber em Portugal. Após o regresso a Portugal, iniciou um Curso de Anatomia dos Centros Nervosos e criou o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto.
A Hidroterapia é o interesse que sucedeu à Neurologia, abandonando esta última em 1884, na sequência da epidemia de cólera de 1883. Dedicou-se então à Higiene Social, proferindo conferências que o prestigiaram, o que constituiu um momento chave do sanitarismo em Portugal. Por isso, a Câmara Municipal do Porto convidou-o a associar-se a uma comissão de estudo das condições sanitárias da cidade, no âmbito da qual realizou um inquérito sobre as condições de salubridade urbana. O relatório final (O Saneamento do Porto) foi apresentado em 1888.
Em 1885 elaborou e apresentou no Conselho Superior Público, um relatório sobre o ensino médico em Portugal, que considerava obsoleto face às orientações modernas vigentes noutros países europeus. Este relatório viria depois a servir de base ao Regulamento Geral de Saúde de 1901.
Em 1892 foi convidado para dirigir os Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e chefiar o Laboratório Municipal de Bacteriologia.
Em 1895 foi indigitado professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, o que consolidou o seu prestígio como higienista.
A erradicação da peste bubónica
Entre Junho e Setembro de 1899, o Porto foi assolado pela peste bubónica, a qual diagnosticou, chegando à sua prova clínica e epidemiológica. Visando eliminar a pandemia preconizou a tomada de medidas profiláticas tais como: isolamento de doentes, evacuação de casas, isolamento e desinfecção de locais onde se verificaram ocorrências. Tais medidas conduziram à sua consagração como epidemiologista de renome, mas simultaneamente suscitaram a ira popular, que acicatada por grupos políticos, o forçaram a abandonar a cidade.
A ida para Lisboa
Em Outubro de 1899, já em Lisboa, foi nomeado Inspector-Geral de Saúde e professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Funda em 28 de Dezembro de 1899, o Instituto Central de Higiene, com o intuito de formar sanitaristas e de desenvolver a investigação na área da Saúde Pública. A reforma dos serviços sanitários que promoveu, conduziu à publicação do Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, em 24 de Dezembro de 1901.
Participa em inúmeras iniciativas como a organização da Assistência Nacional Contra a Tuberculose e o Congresso Internacional de Medicina de 1906, no qual presidiu à Secção de Higiene e Epidemiologia. Em 1911 colabora na reforma do ensino médico e em 1912 inicia os seus trabalhos no Office Internacional de Higiene, em Paris, onde se celebrizou. Em 1913 começou a publicar os Arquivos do Instituto Central de Higiene e, em 1914, principiou a edição da série estatística Movimento Fisiológico da População (1914-1925).
Entre 1914 e 1915 preside à Sociedade das Ciências Médicas e nos anos seguintes visita formações sanitárias na zona de guerra em França. Organiza depois a luta contra as epidemias de gripe pneumónica (gripe espanhola), do tifo exantemático e varíola de 1918, consequências das más condições sanitárias do pós-guerra.
Em 1926 foi encarregue de reformar o seu Regulamento de Saúde Pública, de 1901. Por mérito próprio foi escolhido para representar Portugal no Comité de Higiene da Sociedade das Nações. Em 1929 foi nomeado Presidente do Conselho Técnico Superior de Higiene. Mesmo nos últimos anos da sua vida manteve uma intensa actividade.
Médico e Humanista
Os interesses de Ricardo Jorge não se limitaram ao campo da Medicina, da qual foi um ilustre professor e a figura maior da Medicina Social. Foi também um grande humanista cuja vasta obra inclui publicações em âmbitos tão diversos como Arte, Literatura, História e Política. Faleceu em Lisboa, a 29 de Julho de 1939.
Estremoz, Maio de 2020
(Jornal E nº 248, de 11-06-2020)

Fig. 1 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Guedes de Oliveira (1885-1932). Arquivo Municipal do Porto.

Fig. 2 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Aurélio Paz dos Reis (1862-1931). Centro Português de Fotografia, Porto.






2020 10:31
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Do Tempo da Outra Senhora


Auto do desconfinamento de Santo António

Posted: 12 Jun 2020 04:05 PM PDT


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?

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